José Fleuri Queiroz
Uns, na própria sublimação, demandam o prazer da Criação, identificando-se com a Origem Divina do Universo, enquanto que outros se fixam no encalço do prazer desenfreado e egoístico da autoadoração. Os primeiros aprendem a amar com Deus. Os segundos aspiram a ser amados a qualquer preço.
A ideia da Divindade, de um poder superior que criou o mundo é inata no homem, como o demonstram as pesquisas antropológicas. Dessa ideia básica em sintonia com o assombro do mundo, misterioso e cheio de seres estranhos, nasceu a Magia. O sentimento mágico do mundo estabeleceu as relações entre os homens e as coisas e os outros seres. A ideia do poder das coisas e dos seres brotou naturalmente das experiências na luta para a sobrevivência.
A lei de adoração, estudada em “O livro dos Espíritos”, levou a imaginação primitiva aos ritos do culto solar e lunar, das montanhas coroadas de nuvens, dos grandes rios misteriosos e assim por diante. A reverência aos chefes poderosos desenvolveu os ritos de submissão, que se estenderam aos pajés e xamãs, sacerdotes mágicos das tribos e das hordas [2], dotados de poderes mediúnicos. Os processos mágicos desenvolveram-se através das manifestações mediúnicas. Abria-se o caminho para o desenvolvimento das religiões mitológicas e das religiões reveladas, estas apoiadas na crença dos homens-deuses, conhecedores dos mistérios da vida e da morte. A evolução espiritual do homem abria a fase das grandes religiões nas regiões em que a civilização avançara. Os dons mediúnicos reafirmavam a crença nos poderes divinos, através dos fenômenos produzidos por indivíduos que os possuíam.
A lei de adoração de que fala Kardec, evolui dos animais para as formas humanas, mas de maneira lenta. Os resíduos animais se conservam ainda nas figuras dos deuses antropológicos, como nas próprias imagens de Hórus [3], com cabeça de falcão. A humanização dos deuses animais, que é fatal, pois a zoolatria não é mais que uma projeção anímica, vai implicar também a organização familiar do panteão divino. Os deuses são reunidos em famílias, e a forma mais simples destas famílias é a tríade, constituída pelo pai, a mãe e o filho, como vimos no caso de Osíris [4]. Essa tríade familiar, derivada do sistema patriarcal do horizonte agrícola, é uma das formas mais antiga da trindade divina. O conceito de Espírito, entretanto, fará sentir a sua influência nesse processo de socialização dos deuses. Assim como, de um lado, os elementos animais serão fundidos nas figuras humanas das divindades, de outro, o conceito de Espírito, ou seja, a ideia de Espírito como forma sobre-humana da existência, fará a sua intervenção, em sentido contrário, na organização das famílias humanas.
Digamos isto de maneira mais clara, se possível. No processo de desenvolvimento da lei de adoração, os resíduos animais são projetados nas figuras humanas dos deuses, como no caso das orelhas e dos chifres da deusa Hator [5]. Mas, ao mesmo tempo, o conhecimento que o homem obteve, através da experiência mediúnica, da existência de seres espirituais, semelhantes aos seres humanos, permitirá o agrupamento dos deuses em famílias e fará que as famílias humanas sofram a intervenção divina. É o caso dos deuses gregos, que se enamoravam das “filhas dos homens”. O caso de Pitágoras que não era filho de seu pai humano, mas do deus Apolo. O caso da teogamia [6] egípcia, de que derivam as doutrinas teogâmicas das religiões cristãs. Pela teogamia egípcia, por outro lado, os Faraós eram portadores de dupla natureza, a humana e a divina, porque eram filhos da rainha com o deus-solar. Não eram, portanto, filhos de um homem e nem mesmo de um homem-deus, mas do próprio Deus, que através de processos divinos fecundava a rainha. O conhecimento desses processos históricos é indispensável ao espírita, para imuniza-lo contra as deturpações místicas ou supersticiosas da doutrina, tão comuns num mundo que, apesar de se orgulhar do seu progresso científico, ainda não se libertou de sua pesada herança mitológica.
O processo histórico não é contraditório, mas progressivo. Quando não sabemos enxergar as linhas da evolução, em seu desenvolvimento natural, enxergamos apenas as aparentes contradições das coisas. Assim como a ideia de Deus evolui com os homens, desde a litolatria [7] até as formas mitológicas, e destas à concepção espiritual que hoje aceitamos, assim também os postulados bíblicos vão atingir sua verdadeira expressão nos Evangelhos, e por fim sua espiritualização no Espiritismo.
Há um encadeamento perfeito no processo histórico, que não podemos perder de vista. Graças a esse encadeamento, os Espíritos puderam dizer a Kardec que o Espiritismo é a última fase do desenvolvimento histórico do Cristianismo. Quando sabemos que este originou-se no solo do Judaísmo, representando um desenvolvimento natural da religião judaica, então compreendemos que o Espiritismo, como queria Kardec e como sustentava León Denis, é o ponto mais alto que podemos atingir, até hoje, em nossa evolução religiosa. Jeová, o deus-agrário, transforma-se no Pai evangélico, para chegar à “Inteligência Suprema”, no Espiritismo. Jeová se depura, e com ele se depuram os ritos do seu culto, que por fim se transformam na “adoração em Espírito e verdade”, de que falava Jesus.
O Catolicismo Romano serviu-se da idolatria para poder atrair o povo idólatra. O protestantismo, com a Reforma da Igreja, aboliu a idolatria, apoiando-se na proibição bíblica. O Espiritismo explicou a Lei de Adoração e mostrou que estamos numa época diferente, em que só podemos adorar a Deus praticando as suas leis.
Por fim, ainda sobre a adoração, num Centro Espírita não devemos usar imagens para tal finalidade. Não devemos encher as paredes do Centro Espírita de quadros e imagens, mas não é justo que deixemos de colocar no Centro uma bela figura de Jesus ou uma fotografia de Kardec ou do patrono da instituição, só porque os ignorantes podem querer adora-los. O Espiritismo nos libertou da idolatria, mas não proíbe o bom gosto e o respeito pelos mestres.
Notas do ECK:
[1] Adaptação de textos publicados pelo autor, na forma de apostilas, intituladas de “Escola de Espiritismo”.
[2] No contexto histórico da Ásia e Europa Oriental, horda, também grafada orda, ordu, ordo ou ordon, é uma estrutura geopolítica e militar histórica que existiu na estepe euroasiática, geralmente associada a povos turcos e mongóis. Em muitos contextos é uma entidade equivalente a um clã ou tribo.
[3] De acordo com uma lenda difundida no Antigo Egito, Hórus foi concebido por Ísis, quando Osíris, seu pai, já estava morto. A lenda sugere que a fecundação ocorreu quando Isis, na forma de um pássaro, pousou sobre a múmia do esposo, que estava deitado em um sofá. Alguns autores sugerem que a história de Jesus pode ter sido baseada em várias outras histórias de deuses mais antigos, principalmente, Hórus.
[4] Osíris também é um deus da mitologia egípcia. Conhecido com o deus dos mortos, além de ser a divindade da vegetação, do julgamento e do além.
[5] Hator é uma das principais divindades na religião do Antigo Egito que desempenha uma variedade de papéis diferentes. Como deusa do céu era a mãe ou consorte do deus do céu, Hórus, e do deus do sol, Rá, ambos os quais eram conectados com a realeza, assim ela era a mãe simbólica de seus representantes terrenos, os faraós.
[6] Teogamia é a união (sexual) entre deuses ou entre um deus e um humano.
[7] Litolatria é o culto às pedras (minerais).
ACESSE OS TEXTOS DA EDIÇÃO:
O espírita perante Deus, por Miguel Vives y Vives (in memoriam)