Maria Cristina Rivé
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A esperança há de vencer o cansaço, porque ela não tem nada a ver com a positividade tóxica, fruto do excesso de desempenho que se precisa ter.
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Estamos cansados! Os dias passam e as horas não se arrastam… Elas “voam”, num piscar de olhos! Parece que o dia virou noite e a noite virou dia. Não nos sentamos mais em frente às nossas casas, nem sequer conhecemos nossos vizinhos — e, muitas vezes, nem os queremos conhecer.
Michel Foucalt, filósofo francês do século passado, a propósito, apresenta uma visão da sociedade como “disciplina” como se tudo fora traçado para que se o comportamento do corpo nos preenchesse. Tudo seria calculado e calcado nos movimentos simétricos do corpo humano. Era a descrição da sociedade disciplinar [1].
Contudo, sob os movimentos simétricos da modernidade do século XX, surgiu, na pós-modernidade, o desempenho. Uma sociedade calcada na capacidade humana de conseguir a cada dia, a cada passo aumentar seu passo, produzir, empreender, superar. Superar a tudo e a todos somente é bom quem é o melhor. Não há importâncias, há produção. Não há vida, há produtos.
Na chamada sociedade disciplinar, embasada no bom e velho patriarcado, quem pode mais chora menos… Contudo, há um fato curioso: as ditas minorias (pois, na realidade, elas são a maioria – negras e negros, mulheres, LGBTs, pobres –) em grande parte amparam essa estrutura daninha, que lhe tira direitos e os mata. Se não com tiros, os mata de fome e de ânsia: essa de ter algo que lhe acalme as necessidades vitais inerentes à sua existência.
Esse modelo anula o pensar e o sentir da criatura humana, a qual é desumanizada e desprezada, justamente por quem ela sustenta. Na estrutura disciplinar, trabalhar era considerado um mal necessário; os corpos dóceis se transformaram, na “sociedade do cansaço”, em meras máquinas de trabalhar incessantemente, a fim de construir riquezas… As quais, nunca desfrutarão.
Na sociedade disciplinar havia o trabalho, mas havia o descanso. Era a brincadeira, após o colégio; era a conversa, depois do trabalho; era a novela, antes de dormir. Na sociedade do cansaço – cunhada pelo filósofo sul-coreano Han [2], temos o desempenho. Se outrora havia a separação entre vida particular e trabalho, na sociedade do desempenho não há essa divisão. Leva-se o trabalho para onde a criatura se movimente. Seu “tripalium” está em seu bolso ou sua bolsa e a cada instante se resolve problemas e se extirpa descanso.
Então, o céu é o limite! A cada solução, um cansaço, a cada passo, um retrocesso. Não se pode pensar, porque urge a atuação em nome de uma meritocracia desleal, em que o esforço pessoal é em prol da exploração do “homem pelo homem”.
O tempo livre é visto como perda de tempo, mas o que diríamos dos filósofos, que enxergavam os problemas através da observação. Ora, para observar, é necessário o passeio dos olhos a enxergar além do que está exposto. É preciso ser uma versão melhor de mim mesma/o e se venceu o dia mesmo que “na força do ódio”. Não há prazer, contudo existe o interesse não de se aprimorar como ser humano, mas como uma máquina que se supera e não se completa.
Somos os seres gregários, mutilados pela força de necessidades desnecessárias, fruto de desempenhos para impressionar a sociedade que desconhece o ser. Como se fossem grupos amorfos, sem identidade e sem pretensões, sem ideia do que signifique o “conhecer-se a si mesmo”, com o intuito de lutar contra as próprias imperfeições, por acreditar que não as tenha. É o jargão de vencer na vida e isso implica, também, a auto exploração.
Inconscientemente, a criatura coloca metas em sua vida. Essas estão em si, pelo que observa na sociedade. Em geral, não há um chefe dizendo: — Faça! Mas, o “chefe interno” de cada um diz: — Produza! Supere! Continue!
O desassossego é, assim, fruto de uma voz interna, na/da sociedade, a qual rechaça a vida contemplativa — vide Aristóteles, sem querermos entrar no mérito de sua obra [3] —, segundo Nietzsche [4], “todos os homens se dividem, como em todos os tempos também ainda atualmente, em escravos e livres; pois quem não tiver para si dois terços do seu dia é um escravo”. Somos escravos e estamos cansados.
O escravo que se escraviza pela voz da sociedade que o impele a produzir, sem lhe dar a chance de se perguntar o porquê. Chega-se a um esgotamento emocional e físico, numa era de superprodução. Ansiedade e esgotamento: é a geração de uma sociedade disforme em que somente há grandes feitos.
Já disse Fernando Pessoa, “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo” [5]. Contudo, a carência está no âmago, no sofrimento silencioso de uma vida de valores efêmeros, sem cooperação e sem esperança.
A esperança há de vencer o cansaço, porque ela não tem nada a ver com a positividade tóxica, fruto do excesso de desempenho que se precisa ter. A esperança é Deus em nós. E para ser feliz, viver em paz, há outras necessidades. Olhar o céu, olhar a terra, sentir a si mesmo, perceber as criaturas, encantar-se com o canto e trabalhar no Bem. Essas são as necessidades de trabalho e de encanto. A produtividade deve estar, sim, diretamente relacionada às necessidades. Não as efêmeras, mas as que elevam a criatura e as acompanha através dos tempos.
Notas do ECK:
[1] Foucault, M. (1999). “Vigiar e Punir: o nascimento da prisão”. 20. ed. São Paulo: Vozes.
[2] Han, B.-C. “Sociedade do cansaço”. Trad. Enio Paulo Giachini. 2. Ed. 2017. Vozes, Petrópolis.
[3] Aristóteles. (1985). “Ética a Nicômaco”. 2. Ed. Brasília: UnB.
[4] Nietzsche, F. (2005). “Humano, demasiado humano”. São Paulo: Companhia das Letras.
[5] Texto poético de Fernando Pessoa (sob o pseudônimo de Álvaro de Campos) “Poema em linha reta”: PESSOA, F. (1993). “Poesias de Álvaro de Campos”. Lisboa: Ática.
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Muito bom, Rivé.
Vivemos, de fato, sob o jugo de metas invisíveis, impostas por vozes internas moldadas por um sistema que nos cobra superação constante, sem espaço para o sentir, o contemplar, o simplesmente ser.
Gratidão por nos lembrar que há outras formas de viver. E que, mesmo cansados, podemos seguir — não pela força do desempenho, mas pela leveza da esperança.