O mito e sua superação (*), por Paulo César Fernandes

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Por Paulo César Fernandes

O Espiritismo, a partir de Kardec, estabelecendo a primazia da razão, do bom senso, é um elemento importante na crítica ao passado mítico. Através de seus preceitos básicos, principalmente a Lei do Progresso (Princípio da Evolução Infinita) nos coloca diante da necessidade de renovação de nossas estruturas no sentido de perseguirmos nossa libertação.

Introdução
Por que escrever e discutir o mito, essa coisa lá das remotas eras? Alguns hão de fazer-me tal pergunta, a estes eu responderei haver um engano nesse aspecto, o mito foi, e ainda é, um forte componente do dia a dia de todos nós.

Claro, o desenvolvimento cultural da humanidade, acabou trazendo e estabelecendo novas formas de mito, como veremos ao tratar do assunto, nos capítulos relativos ao mito na era moderna.

O ponto de união entre os mitos clássicos, digamos assim, e os mitos modernos é justamente sua irracionalidade, em que pese, muitas vezes, todas as explicações objetivando colocar um mito determinado no patamar da racionalidade.

Assim que iniciei a pensar sobre o tema, encontro um texto de um professor da Unicamp na qual ele afirma de maneira categórica da impossibilidade do homem viver sem o mito. Esse “achado” acabou fazendo com que eu deixasse minhas reflexões em “banho maria”. Para, depois, acreditar viável a possibilidade de discutir a necessidade de superação da mentalidade mítica, enraizada em cada um de nós.

Minha ideia, inicialmente, é trabalhar historicamente a questão do mito. Tanto na Antiguidade como na era moderna, chegando a discutir algo dos mitos das religiões, para depois estabelecer uma análise do mesmo no movimento espírita. Fazer breve discussão de alguns conceitos como mito, signo, significado e significante, o que deverá ajudar na compreensão da própria conformação do mito.

E, ao final estabelecer uma proposta para sua superação, uma vez que, a mentalidade mítica não se coaduna com uma humanidade “no limiar de uma nova era” como costumava dizer José Herculano Pires.

É possível, que no aprofundamento da minha pesquisa, venha a concluir da impossibilidade de tal superação nos próximos séculos, ou, da impossibilidade total de sua superação. Este é um risco calculado que só me debruçando sobre o tema poderei chegar a alguma conclusão. Este trabalho, assim, se insere no momento atual, apenas como um promotor de debates, um “cutucador” de consciências.

Logicamente, pessoas ligadas à história da humanidade, em seu aspecto cultural, pessoas ligadas à antropologia cultural mais especificamente, poderão trazer novas contribuições, novos trabalhos contraditando minhas ideias, ou mesmo, elementos que venham fortalecê-las e aclará-las. Meu mérito, se existe, é trazer ao seio do movimento espírita, um tema que vem se firmando no meio acadêmico, mormente após a derrocada das certezas científicas para dar lugar ao universo das probabilidades, das incertezas.

Conceito
De início, vale a pena estabelecermos uma ideia, um conceito sobre o tema. Mythos quer dizer palavra. “No princípio era o verbo…”, segundo os relatos bíblicos.

Se formos buscar, porém, no dicionário (no Aurélio, por exemplo), encontraremos: – mito – fato, passagem dos tempos fabulosos; – tradição que, sob forma de alegoria, deixa entrever um fato natural histórico ou filosófico; – coisa inacreditável, sem realidade; – representação de fatos ou personagens reais exagerados pelo imaginário popular ou pela tradição.

De todas estas conceituações, a que mais se coaduna com meu projeto, pelo menos no presente momento é a última.

Conversando com uma professora em Santo André, quando disse eu estar trabalhando sobre o tema mito, esta se apressou em afirmar: – Os dogmas, os mitos são temas interessantes. Isto me levou a refletir na necessidade de diferenciação entre um dogma e um mito.

Enquanto o dogma, é algo estático, estabelecido por alguém, por alguma entidade em determinado momento, cabendo-nos apenas aceitá-lo ou rejeitá-lo; o mito, por sua vez se caracteriza pela dinâmica, e pela possibilidade que nos dá para sua construção. No mito, somos também partícipes do processo.

Outro aspecto a considerar sobre o mito, é sua temporalidade presente e sua proximidade geográfica, sempre se trata de algo vivido e presente no aqui e no agora. O mito abrange uma totalidade que a consciência discursiva não consegue apreender, e, recorrendo aos símbolos acaba sintetizando as mais profundas aspirações do ser humano, tais como sua sede de absoluto, de transcendência e sua busca de plenitude. [1]

Campbell nos diz não haver conflito entre o misticismo e a ciência, mas haver distinção entre a ciência de 2000 a C e de 2000 d C, segundo ele “… o que nos perturba é o fato de termos um texto sagrado que foi composto em outro lugar, por outro povo, há muito tempo, e que não tem nada a ver com a experiência de nossas vidas. Há, pois, um distanciamento fundamental. Quando voltamos nosso olhar para esse texto, vemos que se trata de um texto que se refere ao homem como algo superior à natureza, que fala do domínio exercido pelo homem sobre a natureza como algo que lhe foi concedido. Tal é a diferença entre a mitologia considerada como algo petrificado, exaurido, morto, não mais atuante, e a mitologia vista como algo atuante. Quando a mitologia está viva, é desnecessário dizer o que ela significa”. [2]

Para Campbell, o mito estaria ligado à pedagogia do indivíduo, e forneceria a este uma pista que lhe serviria de guia. Até o presente momento pode ter sido realmente assim, mas a proposta é justamente acordarmos para um novo momento onde o mágico e o mítico cedam lugar ao racional, mas um racional que leve em consideração aspectos metafísicos.

Segundo Augusto Novaski, “o mito não é ficção, engano ou falsidade; é, isto sim, um modo de falar, ver e sentir dimensões da realidade inatingíveis racionalmente, dando-lhes significado e consistência”. O autor nos diz ser o mito para os filósofos, um produto deformado da atividade intelectual, uma forma primitiva de pensar, coisa de pessoas de baixa cultura (p. 26). Na sua visão, “o pensamento ou atitudes míticos são um instrumento de controle social. Nessa lógica, a função do mito seria indispensável a toda cultura…”.

Tal observação é importante de ser analisada também ao nível dos nossos mitos. Se os mitos socialmente disseminados agem como elementos restritivos de uma determinada comunidade ou sociedade, não estariam nossos mitos individuais cerceando nossas possibilidades de ampliar concepções.

O emocional dos nossos mitos não estaria aniquilando a possibilidade de novos horizontes racionais? Possibilidades mais amplas de compreensão das Leis Naturais [3]?

O mito no tempo
Como os índios dos filmes de bang-bang, estaremos em cima de um desfiladeiro, olhando embaixo a passagem de alguns flashes, alguns momentos do mito na história. Olhando bem atrás no tempo perceberemos os primitivos, quase macacos, se colocando de pé e deixando livres as mãos para utilizá-las na confecção de instrumentos. Um desses instrumentos, encontrado faz 500.000 aC às margens do Rio Tâmisa, foi chamado pelo poeta californiano Robinson Jeffers de “beleza divinamente supérflua”. Em suas seis ou oito polegadas de nada servia praticamente, mas, ao mesmo tempo muito representava na observação histórica da humanidade.

Muito tempo passou até que surgisse sobre a face da terra o Homo Sapiens, e foi com ele o surgimento dos primeiros traços do pensamento mitológico, expresso nos sepultamentos onde foram encontradas oferendas, mais exatamente por volta de 60.000 aC no período do Homem de Neanderthal.

Uma outra evidência do pensamento mitológico daquela época era a adoração de crânios de ursos nas cavernas. Vestígios de capelas para esse fim foram encontradas na região alpina da Suíça e da Silésia, nestas os crânios de ursos apareciam adornados de pequenos anéis de pedra.

Convém lembrar que mais tarde, no horizonte cultural primitivo, quando o homem se via ante o desafio de explicar um novo fenômeno, se valia do mito como forma de expressão para dar conta desse novo fenômeno. Dessa maneira o mito acabava dando conta da questão do ordenamento social. Eliminava a instabilidade gerada por algo novo. Temos assim que “a consciência filosófica nasceu da consciência mítica.” [4]

O professor José Herculano Pires em seu livro “O Espírito e o tempo”, quando trata do horizonte agrícola diz serem a China e a Índia os dois países que mantém, a mesma estrutura religiosa até os nossos dias. Segundo ele: “Aquilo que chamamos de horizonte agrícola, o mundo das grandes civilizações agrárias, constitui uma espécie de subconsciente coletivo das civilizações modernas. Os resíduos mágicos, anímicos e mitológicos do horizonte tribal e do horizonte agrícola apresentam-se bastante fortes no mundo contemporâneo. Nossas religiões mostram-se poderosamente impregnadas desses resíduos” (grifo nosso). [5]

Estas pinceladas iniciais são uma breve introdução do que estará compondo este capítulo no futuro, mostrando a presença do mito nos mais diversos momentos da história da humanidade.
Pois, segundo os diversos autores consultados para a elaboração do presente trabalho, o mito é algo intrínseco do ser humano, estando este impossibilitado da ruptura com o mesmo. Aí se situa minha divergência dos mesmos e a razão de ser deste trabalho.

Para seguir pensando no tema vale a pena tocarmos em algumas palavras, alguns conceitos que compõem o tema.

Mito, signo, significante, significado
Segundo Roland Barthes o mito é uma fala, e tudo pode ser mito, uma vez que seu universo é infinitamente sugestivo. Segundo ele, “é a história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica” [6]

É importante tal observação pois nos alerta a perceber que o mito só se constrói no passar do tempo, e no contar e recontar um fato. Segundo a sabedoria popular “quem conta um conto aumenta um ponto” e é nesse aumentar de pontos que os elementos míticos vão se agregando.

Outro aspecto a se considerar, além da construção do mito no tempo, é a necessidade de um patamar mínimo de organização social, de existência de relações interpessoais para a ocorrência do mito.

Segundo Bakhtin “Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de um terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido usual da palavra; não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se.” [7]

Em todas as formas de mito a serem analisadas neste trabalho a questão tempo estará sempre presente. Às vezes, para atender seus interesses as empresas buscam, através da propaganda, trazer para mais uma data mais cedo a consolidação de um mito, o que nem sempre conseguem.

Mas esse não é o caso mais comum, em geral não é possível a interferência na construção de um mito, ele simplesmente se dá, dentro da dinâmica própria do processo histórico. Um mito é composto de diversos signos, e cada signo seria a resultante de um significante e de um significado, onde o significado é o conceito e o significante a imagem acústica (de ordem psíquica).

Assim, uma pedra preta por exemplo, é um simples significante, apenas uma ideia, diríamos. Porém, se a este objeto agregarmos uma conjuração de morte, passamos a ter então um signo: resultado do significante pedra preta, mais o significado morte.

E assim, no decorrer do tempo, diversos objetos ganharam significações diversas, como nos fala ainda Bakhtin, “Em si mesmo, um instrumento não possui um sentido preciso, mas apenas uma função: desempenhar este ou aquele papel na produção. E ele desempenha esta função sem refletir ou representar outra coisa. Todavia, um instrumento pode ser convertido em signo ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do martelo como emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido puramente ideológico.” [8]

A Palavra
É através das palavras que os mitos se transmitem e garantem sua permanência num determinado período de tempo. A palavra é um fenômeno ideológico, pois uma palavra, em si mesma é neutra. Porém, na medida em que uma palavra compõe uma frase, o contexto de uma ideia, ela acaba se estabelecendo como um signo ideológico.

Se falarmos casa, por exemplo, temos de imediato a ideia de um edifício com portas e janelas. Se dizemos, no entanto, “casa da cidadania”, ou “casa da oração”, de imediato emergem outras conotações, conotações ideológicas a compor tais expressões.

A palavra, por ser neutra, pode se adequar a qualquer contexto ideológico, seja ele político, cultural, religioso, etc…, vai daí a sua importância na compreensão dos aspectos ideológicos, estejam eles num jornal, filme ou peça de teatro. Em todos os lugares encontramos mitos expressos através de palavras (signos) compondo um contexto ideológico.

Mitos na sociedade industrial
Na nossa sociedade, voltada para o consumo, temos a necessidade de criação de mitos, para que estes possam garantir a manutenção da estrutura de produção/consumo da sociedade.

Se estrutura, a partir daí, uma ideologia de consumo que, atuando a partir das carências emocionais do indivíduo, atribui ao produto uma função e utilidade mais amplas que as originalmente para ele pensadas.

– Paulo, Unisys, IBM, são todas máquinas, essa sua ideia de achar a IBM melhor não passa de mito.

– Mas não, a IBM afinal …

E segui arrolando ideias e justificativas para buscar impor minha concepção no tocante ao tema. Novos assuntos vieram à baila e a roda do café se desfez. Caminhei para minha mesa “com uma pulga atrás da orelha”. Por que motivo teria eu defendido a empresa, e sem nada receber por isso. No momento em que me desvendaram o mito com relação à antiga empresa fiquei surpreso; na roda, fiz de conta que não havia sido tocado, mas a dúvida, o questionamento se instalou em mim.

Teria eu uma postura mítica com relação à IBM? Teriam os quatro anos que atuei como funcionário da empresa contribuído para a construção desse mito? Era difícil pensar em tal assunto…

Lembrava meu início de vida profissional, os amigos na empresa, o atendimento que vinha recebendo da IBM na Prefeitura Municipal de Santo André. Essas lembranças tornavam a análise racional impossível, só havia campo para o emocional. Assim é, toda a análise que se faça do mito. Pura emoção.

Para mim, o signo IBM teve forte conotação emocional, me trouxera “Status” e outras tantas coisas que me foram importantes em determinado momento. Fez parte, na verdade, de um contexto ideológico que trabalhava a vaidade dos funcionários e outras tantas questões as quais visavam obter dos funcionários maior adesão aos projetos da empresa. Ainda hoje, quando um funcionário da IBM apresenta algum ex-funcionário a outro IBMista faz questão de frisar ser a pessoa em questão Ex-IBM.

De uma certa forma tal postura é explicada por Bakhtin: “Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer uma realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.” [9]

Assim, dentro da realidade do universo IBM, havia o mito que os funcionários IBM seriam profissionais de maior gabarito que os demais do mercado, uma vez que o critério de seleção era… E uma série de justificativas que se conformaram num mito. E nesse caso, o mito carregava em si uma série de inverdades, até porque, encontrei em outras empresas profissionais melhores que diversos funcionários da IBM.

Mitificados pelo tema
Nas diversas leituras feitas por mim para a elaboração do presente trabalho, tive a impressão que os autores, todos eles, eram presas da magia do mito; como uma teia, o mito os reteve e, resignados, passaram a propalar a ideia do mito como algo insuperável, algo assim como a respiração, sustentáculo da vida.

Segundo Constança “a perda do sentido existencial implica, para ser superada, na reconquista da dimensão mítica, no abandono do falso logos do mito, na recusa do mito como verdade imediata a fim de retomá-la, mediante o reconhecimento do poder de revelação dos símbolos”.

Admito ser um tema envolvente, forte, capaz de nos arrebatar à medida que lhe desvendemos as raízes, principalmente se nos atemos aos mitos dos povos primitivos. São, porém, construções e explicações primitivas da realidade, já sem contraponto no horizonte atual, e, a meu juízo, sem justificativa em civilizações avançadas. E quando me refiro a civilizações avançadas, penso nos mundos superiores proposto entre outras obras na escala dos mundos de “O evangelho segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec.

Estamos hoje, muito distantes da possibilidade de vislumbrar tais mundos, e é neste nosso mundo que construímos nossas ideias e temos possibilidade de crescimento. Assim é aqui a nossa contribuição mais efetiva. Temos o passado como exemplo de aprendizado e a colaboração dos espíritos nos indicando caminhos para a construção do futuro.

Retomando a questão dos mitos
Acredito, ser a irracionalidade a linha de união entre os mitos clássicos e os da era industrial. Quando trata do mito do Superman em seu livro “Apocalípticos e Integrados”, Humberto Eco define mistificação como “simbolização incônscia, identificação do objeto com uma soma de finalidades, nem sempre racionalizáveis, projeção na imagem de tendências, aspiração e temores particularmente emergentes num indivíduo, numa comunidade, em toda uma época histórica”. [10]

Segundo o autor, a mitificação existente à época medieval era um ato institucional, de cima para baixo, codificado e decidido pelos homens da igreja. Estes vulgarizavam seus mitos através das grandes enciclopédias da época. É verdade ainda que para elaborarem seus mitos, esses homens de comando do clero, se apropriavam de elementos já correntes nas camadas populares, colhendo aí, certas imagens arquetípicas.

A busca do Mito
O esforço hoje existente na arte, e eu diria, no próprio processo de marketing das empresas, é tornar cada vez mais subjetiva a simbologia dos mitos. Isto se contrapõe à conformação dogmática medieval que era bastante direta.

Dessa forma, o criador atual, nessa sua simbolização, sempre mais subjetiva, restringe a ação de sua arte a uma questão de identificação com a sua situação interior por parte do público. Isto, não quer dizer, no entanto, a não universalidade da mensagem, pois esta pode tocar em apenas um aspecto do psiquismo humano e atingir milhares de pessoas. A questão reside na não objetividade da mensagem, pois o mito se estabelece a partir da subjetividade.

Segundo Eco, “trata-se da identificação privada e subjetiva na origem entre um objeto ou uma imagem, e uma soma de finalidades, ora cônscias ora incônscias, de maneira a realizar-se uma unidade entre imagens e aspirações”. [11]

Um exemplo bastante claro dessa subjetividade está presente nas peças comerciais (propagandas) apresentadas na televisão. Quando assistimos à propaganda de cigarros vemos um belo carro esporte, diversos jovens sorridentes em pranchas de Windsurf, etc…, agregando ao produto uma imagem de esportividade que não lhe é inerente, mas, na verdade, um juízo de valor, um mito estabelecido pela agência de propaganda.

Se o produto em questão, visa atingir uma camada de mais alta renda, é de bom alvitre, a agência trabalhar mais fortemente a questão do “status”, logo, imagens de castelos do País de Gales, estradas litorâneas da Itália, Veneza, etc. Hoje, muito raras são as peças publicitárias que apelam diretamente ao “valor de uso” do produto, trabalham cada vez mais os mitos possíveis de serem ligados a ele.

Muitas vezes a publicidade é até desnecessária para mitificação de determinado produto. Vejamos por exemplo, quantas pessoas conhecemos cuja vida sem um celular seria realmente insuportável? E quantas o tem sem uma justificativa real? Claro, sempre estas pessoas acabam “explicando” sua “necessidade”.

Na verdade, o que existe não é só o “valor de uso”, chamar e receber telefonemas, mas, a função mítica e subjacente de demonstração do “status” auferido pelo objeto.

Eu não diria, serem todos os bens de consumo em nossa sociedade, elementos plenos de carga mítica, mesmo porque, muitos deles surgiram e existem, para facilitar o dia-a-dia de todos nós, porém, uma série desses bens servem muito mais ao preenchimento de carências em instâncias psíquicas, que verdadeiramente atender às funções propaladas como seu “valor de uso”. [12]

E o Marxismo-Leninismo?
Quando decidi trabalhar sobre os mitos existentes no marxismo-leninismo, isto me pareceu estranho. Quem me conhece, sabe de minhas posições políticas, e de minhas posturas, algumas vezes radicais, em defesa do socialismo. Isto, desde os remotos tempos de atuação no movimento de mocidades espíritas, estando ambos, socialismo e mocidades, em desuso no momento atual, ao que me parece.

Mas, a análise a ser feita não visa o socialismo em si, enquanto concepção de mundo. Pretendo me ater às formas que sociedades como a soviética e a cubana, a partir das premissas iniciais, geraram discursos mitificantes como base para sua sustentação no poder. A essa elaboração teórica chamarei de discurso comunista para uma necessária distinção da proposta socialista.

Assim, há uma diferença entre o discurso comunista elaborado intramuros nessas sociedades, e os preceitos teóricos promotores da Revolução de 1917 na Rússia. É exatamente o discurso elaborado intramuros, o objeto de minha atenção, o quanto tal discurso tem de mitificante, na medida em que absolutiza a verdade como propriedade exclusiva.

Lembro, nos embates eleitorais, quando integrantes do antigo PCB, Partido Comunista Brasileiro, ao fazer sua “boca-de-urna”, abordavam os eleitores dizendo “Vote consciente”. Como se todos os votos, dados a candidatos outros fossem a expressão da falta de consciência, ou como se a consciência fosse atributo cativo das correntes de esquerda.

O pior é que essas pessoas acreditavam ser portadoras da Verdade. Uma verdade absoluta, inquestionável.

Certa vez, encontrei um amigo de Mocidade em uma festa do PCB, ao qual eu fui por participar de movimento de solidariedade aos povos latinos. Assim que me viu Mário disse: – Eu sabia, eu sabia que você um dia se iria aperceber do seu erro.

Sorri. Ele acreditava piamente em sua verdade. Deveria ter lido todos os teóricos e vivia pleno de certezas, a partir dos mitos por eles fornecidos.

A minha análise se limitará a fragmentos de discurso retirados do livro “Fundamentos do Marxismo-Leninismo” de G. Chakhnazarov e Iv. Krássine, este último mais conhecido das esquerdas.

Na introdução do livro citado, encontramos uma frase que expressa algo de messiânico para a proposta comunista: “Qualquer indivíduo precisa de maturidade política e ideológica na sua vida pessoal. Essa maturidade ajuda a evitar os erros e a encontrar o caminho certo.” [13]

Na sequência estabelece o Marxismo-Leninismo como a alternativa dos países socialistas. Faço ressalvas ao uso desse termo para URSS e Cuba cujo desenvolvimento histórico suprimiu ao cidadão sua livre manifestação.

Falando sobre o marxismo e seu teor materialista o livro coloca: “A doutrina que considera o mundo como um todo material, que tudo explica a partir da matéria, denomina-se materialista. A forma superior de materialismo é a filosofia marxista.
A classe mais avançada e progressista da sociedade contemporânea é a classe operária. Para lutar contra o capitalismo e construir a sociedade comunista, essa classe tem necessidade duma concepção clara e científica do mundo, razão pela qual o materialismo dialético é o fundamento filosófico da concepção de mundo da classe operária.”

Neste trecho também encontramos uma concepção mitificada da “classe operária”. Essa classe não foi, é, ou poderá ser, a classe mais avançada e progressista. O próprio teor do seu trabalho a impossibilita de uma reflexão crítica da sociedade ao qual se insere. Após um dia exaustivo de trabalho eu quero a TV, ou qualquer coisa mais leve, que me faça ficar distante de tudo o que se possa chamar trabalho. [14]

Falando da necessidade de uma ideologia: “A rigor, não há ninguém que não tenha uma ou outra concepção de mundo. Todas as pessoas têm uma ideia do mundo, do sentido da vida. Mas quando essa concepção não é científica, quando parte de conceitos falsos, então não só não ajuda a ocupar a posição correta na vida, mas, ao contrário, pode levar a cometer um erro, às vezes fatal. A concepção marxista-leninista do mundo permite ao homem orientar-se nas circunstâncias difíceis da vida social e pessoal, penetrar a essência das coisas e não julgar apenas pela aparência, que pode ser enganosa. Esta concepção dá a justa orientação não só para resolver os “eternos” problemas filosóficos, mas também para a participação consciente nos assuntos da sociedade e do Estado, na política.”

Meu grifo, nas expressões acima, salienta seu juízo de valor. E, nos diversos textos, sua repetição, sua reiteração ao longo do tempo, através de diversos meios, acaba constituindo, e construído um mito, cuja função é fazer crer às pessoas de sua participação num “momento superior” do processo histórico da humanidade. Isto reduz a possibilidade de questionamento, pois em qualquer que seja a instância, o questionamento é a base da mudança.

A superação do mito
Em vista das diversas instâncias míticas anteriormente apresentadas, pudemos perceber a presença do mito em nosso dia-a-dia. Carregamos, hoje, na sociedade tecnológica na qual vivemos, uma herança forte das eras remotas. Tal fato nos é apontado na citação feita por Tarcísio Moura em seu texto “O mito, matriz da arte e da religião”.

O autor traz as seguintes palavras do livro “Arte e mito”, de Ernesto Grassi: “Os povos primitivos a que nos referimos, tão distantes de nós e tão incompreensíveis nas suas reações que já não podemos conceber o seu modo de acesso ã natureza, estão, em verdade, muito mais próximos de nós do que pensamos: em cada um de nós vive – como o demonstrou a psicologia moderna – um homem primitivo, já destituído, é certo, de sua integridade invulnerada e, portanto, despedaçado e dividido.
Porém, nesta mesma divisão, ainda se conservam restos e vestígios da unidade de outrora.”

Se carregamos hoje, elementos herdados do passado no que tange ao sentimento mítico, isto nos leva a crer que não basta a tecnologização da sociedade para promover a derrocada do mito. É necessário algo mais profundo, que o explicite claramente, de maneira a engendrar sua superação. É necessária uma discussão desse mito persistente em nós. Segundo Tarcísio Moura [15] “é justamente por não ter um caráter explicativo, que o mito revela toda a sua pujança de significados. Ele nos relaciona com um nível de expressão mais fundamental que qualquer explicação de ordem científica. E a análise especulativa que se pretenda fazer sobre ele é já, pode-se dizer, a sua destruição.”

Daí temos, como única perspectiva possível, na superação de nossos mitos, o debruçarmo-nos sobre eles, desvendando-os, analisando-os. Segundo o mesmo autor “um mito é antes de tudo uma totalidade que não se pode dividir sem destruir… …qualquer análise que dele se fizer é já, sua destruição. A análise, para compreender, divide através de estruturas racionais, ora, o mito, sendo essencialmente unidade de vida e pensamento, não chegará a ser compreendido através de tais divisões.”

Para o autor, a análise do mito não basta, por ser tal análise baseada em nossas estruturas racionas, e o mito se calca em aspectos emocionais do ser humano.

Posso concordar ser o mito de ordem subjetiva, emocional; acredito, porém, na “elucidação da emoção” através da prática de análise e crítica das estruturas míticas; estejam elas no indivíduo, ou socialmente disseminadas.

Tenho claro, as dificuldades advindas de tocarmos nas estruturas subjetivas, nas resistências internas, nos componentes emocionais que envolvem qualquer alteração. Não fosse assim, já teríamos uma sociedade renovada.

Acredito, por outro lado, na possibilidade da razão, característica forte do homem de nossa era, no transcurso do tempo, solapar as resistências emocionais, ao ponto de estabelecer paulatinamente uma nova forma de sentir.

Evidentemente, tal processo não se dará de forma rápida, anos e anos passarão, talvez algumas encarnações, para o homem se livrar dos horizontes tribais e enquadrar-se numa nova ordem.

Segundo o autor acima citado, “ao querer conquistar todas as funções do mito a razão rompe a unidade e o equilíbrio que antes regulavam atividades do mundo mítico. O advento da modernidade promovido pelo desenvolvimento da razão provocou a emancipação de cada função especializada. Cada uma delas escapando a todo o controle e se desenvolvendo por sua conta com o risco de desequilibrar todo o conjunto”.

“Esta passagem do mito para uma razão progressivamente mais estruturada constitui um dos grandes movimentos evolutivos da história humana, desde seus primórdios até os nossos dias. É a história do caminhar paulatino através do qual a razão vai incorporando e aperfeiçoando todos os tipos de funções. Criando técnicas cada vez mais sofisticadas, ela busca atingir um triunfo completo. Cada época representa para ela um passo a mais nessa direção. Se podemos dizer que estamos hoje pela ciência moderna, no ápice deste movimento, devemos reconhecer que amanhã uma nova estrutura surgirá para que ele não permaneça estacionário.”

O Espiritismo, a partir de Kardec, estabelecendo a primazia da razão, do bom senso, é um elemento importante na crítica ao passado mítico. Através de seus preceitos básicos, principalmente a Lei do Progresso (Princípio da Evolução Infinita) nos coloca diante da necessidade de renovação de nossas estruturas no sentido de perseguirmos nossa libertação.

Não somente, como propõe os místicos “das nossas imperfeições”, mas de tudo aquilo que venha significar prisão ao passado. Evidentemente, essa busca de adequação ao tempo presente deve ter em seu âmago a ânsia de progresso, evolução.

“Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém” disse o apóstolo Paulo com muita propriedade, e nós, de nossa parte, precisamos buscar saber também o que nos é válido, o que nos convém: seguir adiante acalentando nossos mitos, ou, numa atitude de coragem, romper com eles para crescer na direção do futuro.

No movimento espírita
Para trabalhar o mito, ou os mitos, dentro do Movimento Espírita optei por abordar os dois possíveis aspectos: os mitos conceituais e os mitos pessoais.

MITOS CONCEITUAIS
Pureza doutrinária
Houve um momento em que diversos setores do movimento espírita estabeleceram a primazia do texto de Kardec sobre qualquer coisa. Tal momento, sob determinados aspectos nos colocou lado a lado com os seguidores da Bíblia, cuja letra morta, para eles, sobrepõe qualquer apelo à racionalidade.

Numa determinada época era comum, em eventos do Movimento Espírita, sairmos para as reuniões carregando o que era chamado o Pentateuco Kardequiano, para se algum incauto atribuísse a Kardec algo duvidoso pudéssemos de pronto “desmascará-lo”.

Atitude desnecessária nos tempos atuais, tempos mais elásticos e complacentes, pela própria evolução das mentalidades.

Necessidade de atuação na área mediúnica
Este é um dos grandes mitos do Movimento Espírita. A mediunidade, sempre tida como um “fenômeno sobrenatural”, deu margem a toda sorte de conjecturas no imaginário popular.

Dentre todas as concepções formadas pelo Espiritismo no Brasil situa-se a ideia do possuidor de mediunidade mais ostensiva se ver obrigado a atuar mediunicamente para a sua vida “seguir nos eixos”. Ideia herdada das seitas afro-brasileiras, acabou se integrando ao dia-a-dia das diversas casas do movimento espírita organizado no Brasil. Além de não corresponder à verdade dos fatos, tal concepção acaba se estabelecendo como uma forte coerção ao indivíduo médium.

Acredito que possamos catalogar a mediunidade como uma potencialidade natural como outras tantas manifestadas pelo espírito ao longo de sua encarnação.

Seria bastante ridículo alguém me afirmar que se eu não escrevesse ao longo de algum tempo eu me veria sob a influência de espíritos, que minha vida desandaria ou algo parecido.

Isto se afirma, porém, no tocante à mediunidade. É uma ideia mítica que compõe as certezas de diversas casas espíritas no Brasil. Mormente naquelas onde o estudo foi deixado de lado, ou nunca esteve em pauta: – Meu irmão, se não trabalhar …

E o interlocutor treme nas bases…

Nada mais falso que tal afirmativa. Mesmo porque as energias utilizadas pelo indivíduo na atividade mediúnica podem muito bem ser canalizada para outra forma de atividade. Ora é uma entidade assistencial a lhe clamar atenção, ora o apoio a um familiar em dificuldade, mais adiante um colega de trabalho ou de escola pedindo um tempo para lhe ouvir os queixumes.

Mecanismos de atuação não nos faltam. Basta estarmos atentos. Nos sabendo portadores de mediunidade é necessário definirmos se desejamos ou não atuar mediunicamente. Se decidirmos pela negativa estarmos certos de estar agindo segundo os ditames do nosso livre arbítrio.

Lei de Ação e Reação (*)
“Quando eu era criança pensava como criança, agora que sou adulto …” essas palavras de Paulo nos dão a perceber a necessidade de adequação do nosso pensar à época em que vivemos.

Se a Academia de Ciência de hoje já questiona seus dogmas antes intocáveis, por que motivo nós, teoricamente menos sectários e dogmáticos não deveríamos colocar um ponto de interrogação em todas as verdades a nós entregues prontas e sem possibilidades de discussão?

Em nossa infância determinadas explicações eram cabíveis. Atendiam às necessidades de perquirição daquele momento. Por certo, no caminho já ficaram várias ideias à medida que novos conhecimentos, novos conceitos se somaram ao nosso saber. Tivemos as ideias da infância, as ideias da adolescência e, os mais idosos, as ideias da maturidade.

A Lei de Ação e Reação é algo desse tipo, teve sua função em determinado momento histórico do Movimento Espírita, não do Espiritismo, era necessário dar conta de todos os questionamentos colocados aos adeptos das novas ideias. Cumpriu seu papel. Sem sombra de dúvida fez com que muitas pessoas vissem no Espiritismo uma lógica ímpar, e a partir daí engrossassem suas fileiras.

Porém os tempos são outros, onde os horizontes culturais da humanidade são menos presos a raciocínios esquemáticos e maniqueístas. Não há mais o “bem absoluto” em contraposição ao “mal absoluto”. Foi-se o tempo do “olho por olho e dente por dente”. A humanidade, mesmo nas questões da justiça comum já não se vale apenas das sentenças tradicionais, em certos casos usa de criatividade na aplicação de suas penas.

Cito, a título de exemplo o caso das penas impostas a um jovem pichador de paredes, na qual o juiz estabeleceu serviços à comunidade como forma de pagamento pelos danos causados à sociedade.

Dessa forma nós, para estarmos coerentes com as questões de nosso tempo, deixemos de lado a Lei de Ação e Reação e nos ocupemos de conceitos mais úteis, dinâmicos e instigadores de progresso. Que venham afirmar valores humanistas tão importantes no atual momento histórico.

Expiações e Provas
Outro aspecto de necessária análise é a questão da utilização frequente da expressão acima. Os mais afoitos dirão: – Mas Kardec falou!

Sei das falas de Kardec, sei também, por outro lado; que o tempo passou, a humanidade avançou, e precisa de novos conceitos, novas proposições. E quem me garante estarmos ainda hoje na mesma fase proposta por Kardec. Creio e espero que não.

Mais grave é que esta expressão estabelece para a Terra a qualidade de ser “um vale de lágrimas”, local só de dor; tudo isto traz ao planeta uma conotação negativa que este absolutamente não tem.

A Terra é apenas a Terra; planeta, nave vagando pelo espaço e abrindo a todos nós, seus habitantes, amplas possibilidades de aprendizado e crescimento.

Sofremos? Sofremos sim. Porém, a culpa de nosso sofrimento não pode ser debitada ao planeta. É coisa nossa, algo representativo do estágio de compreensão da vida em que nos encontramos.

Não aprendemos a viver. Ainda… Temos o tempo por grande aliado, no entanto, não aprendemos
E mais! Expiar significa pagar, ideia muito ligada à concepção de pecado. Essas coisas todas que serviram e servem de contenção à humanidade e, através do medo, sentimento de culpa, geraram a infelicidade de muita gente.

Graças a Deus não sou religioso, o Espiritismo me cabe assim como uma luva. Dinâmico, renovador em seus conceitos como a Lei de Evolução, acaba sendo um instigador da busca do novo. Uma busca sempre positiva na medida em que não permite a estagnação do lodo no fundo da lagoa.

Dessa forma não estamos aqui para sofrer, mas, na própria dinâmica da vida aprender. Aprender e apreender conceitos mais amplos, partindo do estreito para o largo; do simples para o complexo; do limitado para o infinito.

Tenho dito com frequência da impossibilidade que tenho de ver a Deus como um grande capataz a aplicar castigos a seus filhos. Acho tal visão das pessoas uma visão ingênua do Pai, pensar em Deus cobrando cada ato nosso. Nossa jornada é por nossa conta e risco. Se cuidarmos dela chegaremos mais cedo à felicidade; se formos preguiçosos, recalcitrantes, vai levar mais tempo. E é só.

De qualquer forma é bom acabarmos com essa ideia de expiação uma vez que ela depõe contra o planeta, trazendo-lhe uma aura de morbidez, depressão. Nada disso!

MITOS PESSOAIS
Se olharmos o Movimento Espírita, se conversarmos mais atentamente com seus diversos componentes, tiraremos dessa conversa muito material para análise, e, sem sombra de dúvida toparemos com algum mito.

Dentre os mitos todos, os mais evidentes são os mitos pessoais. Pessoas que acabamos mitificando por forca das circunstâncias e pela ausência de uma análise crítica. Um fato frequente em nossas casas espíritas é o repentino desaparecimento de um ou alguns dos colaboradores. Em muitas vezes, se formos buscar a raiz de tal “sumiço” será a desilusão com relação a determinada pessoa.

Pois bem! Eu chego ao Centro Espírita pela primeira vez. Venho, pois, pela dor, que já me vergasta a alma de algum tempo, e, no cansaço de sofrer a última alternativa que se me apresentou foi o Espiritismo. Não é exatamente o que eu quero, mas as pessoas são bondosas, me tratam bem, e tem o Seu Joaquim, quando ele fala parece que conversa comigo. Fala sempre o que eu preciso ouvir.

O quadro acima, mostra um primeiro momento, um quadro psicológico e afetivo pronto para o estabelecimento de um mito individual.

A pessoa em questão, não raro, passa a ter certa reverência pelo Seu Joaquim, e além disso percebe não ser a única a lhe disputar as atenções, outras tantas pessoas na casa agem de mesma forma. Sente-se assim “inserida no contexto” como dizia o Pasquim na década de 60.

Do fato de “abelhar” o Seu Joaquim à ideia de ser ele pessoa sem defeitos é um pequeno passo, dado em curto espaço de tempo. A emoção se encarrega de eliminar toda possibilidade de análise crítica. Se o racional começa a agir na pessoa levantando defeitos visíveis, esta pensa: – Não, ele é tão bonzinho.

O senso crítico cai por terra. Ao mesmo tempo crescem as possibilidades de crescimento do mito.

O aspecto caricatural do caso acima não pode impedir que façamos uma análise voltada a nós mesmos. Quantos de nós não carregamos nossos mitos no Movimento Espírita?

Ora, é aquela pessoa dinâmica coordenando as atividades de uma casa, de uma entidade assistencial; ora, é um articulista de jornal fantástico. Enfim! A cada dia nos confrontamos com pessoas e situações passíveis de se conformarem num mito.

É bom lembrar. O mito é dinâmico; diferentemente do dogma, extático e exterior a nós, o mito por sua dinâmica nos torna copartícipes, construtores ou mesmo parte dele. Na casa espírita em que participamos, na nossa cidade ou pais, temos sempre a possibilidade de estar mitificando alguém, deslocando uma pessoa do patamar do real para um pedestal de areia cujos ventos da realidade facilmente trarão ao chão.

Dessa forma, convém nos acautelarmos. As desilusões saem mais caro e causam maiores turbulências que a caminhada nas sendas da racionalidade.

Mas então, como facear os mitos existentes no movimento espírita, se esse movimento, pela própria ausência de discussão mais aprofundada, deixa de lado a necessária autoanálise, tornando-se por esse motivo incapaz de percebe-los?

Como olhar a forma que as pessoas se colocam ante determinados médiuns como Chico Xavier, Arigó, Divaldo Pereira Franco, e mesmo em relação a espíritos como Bezerra de Menezes, Emannuel e André Luis, dando margem inclusive ao surgimento do Emannuelismo, do André Luisismo, e tantos outros ismos mais, que nada acrescentam à dinâmica da idéia espírita, sendo-lhe, a bem da verdade um desserviço na medida em que afasta do Centro Espírita e por conseguinte do Movimento Espírita pessoas de senso crítico mais apurado.

Proposta final
Minha proposta para o movimento espírita, é que se criem instâncias de discussão sobre o tema, instâncias estas capazes de alertar aos diversos participantes das casas espíritas, quão presente é o mito em nossa sociedade atual.

Mas isso, por si só, trará a superação do mito? – me perguntará um leitor mais afoito.

Responderei com um sonoro NÃO. Porém, iniciará um processo de discussão, processo inicial de aclaramento das consciências para o estabelecimento da dúvida. Uma vez estabelecida, a dúvida funciona como um elemento a corroer as bases da certeza, sustentáculo do edifício mítico. Certamente, tais discussões, não serão como fogo a se alastrar em campo seco; serão focos, pequenos focos, a deitar luz à região em sua proximidade.

O mais importante a meu ver, é o surgimento de tais focos, é o nascer da discussão.

Estivemos falando e trabalhando, não para o movimento espírita como um todo, porém visando setores, segmentos, grupos capazes de estabelecer uma análise crítica de suas práticas quotidianas e a partir da mesma começar um processo dinâmico de mudança.

Aos outros, que preferem o passe ao pensar, deixaremos o veredicto do tempo.

Referências bibliográficas:
Bakhtin, Mikhail “Marxismo e Filosofia de Linguagem”, Hucitec, São Paulo, 1981
Barthes, Roland “Mitologias”, DIFEL, São Paulo, 1982
Campbell, Joseph “As transformações do mito através dos tempos”, Cultrix, São Paulo-SP, 1991
Eco, Humberto “Apocalípticos e Integrados”, Perspectiva, São Paulo, 1979
G.Chakhnazárov, Iú.Krássine “Fundamentos do Marxismo-Leninismo” Edições Progresso, São Paulo, 1981
Morais, Régis ( org. ) “As razões do mito”, Papirus, Campinas SP, 1988

Notas do Autor:
[1] Cesar, Constança Marcondes. “Implicações contemporâneas do mito”. In “As razões do mito”, p. 37-38.
[2] Campbell, Joseph. “As transformações do mito através do tempo”, p. 49
[3] As Leis Naturais, segundo Kardec, abarcam as leis físicas do âmbito das ciências oficiais, e as leis morais do âmbito das concepções filosófico-religiosas.
[4] Gusdorf, Georges. “Mito e metafísica”
[5] Vale a pena, como referencial, a leitura dos dois primeiros capítulos do livro “O Espírito e o tempo”, de José Herculano Pires onde este analisa a relação existente entre os fenômenos mediúnicos e a análise levada a cabo pelos povos primitivos.
[6] Barthes, Roland. “Ideologias”, p. 132
[7] Bakhtin, Mikhail. “Marxismo e Filosofia de Linguagem”, p. 34
[8] Bakhtin, p. 31-32
[9] Bakhtin, p. 32
[10] Eco, Humberto. “Apocalípticos e Integrados”, p. 239
[11] Eco, p. 242
[12] Valor de uso e Valor de troca são conceitos marxistas, onde o valor de troca é o valor monetário de um bem. E o valor de uso é o aspecto de funcionalidade intrínseca. Assim, o valor de uso de uma geladeira é conservar alimentos, enquanto seu valor de troca é R$ xxx,xx, nas Casas Bahia.
[13] G.Chakhnazárov, IúKrássine. “Fundamentos do Marxismo-Leninismo”, p. 6.
[14] Vale lembrar aqui o conceito espírita, que estabelece trabalho como toda ocupação útil.
[15] Moura, Tarcísio. In “As razões do Mito”, p. 50.

Notas do ECK:
(*) Trabalho apresentado pelo autor no CPDoc (Centro de Pesquisa e Documentação Espírita), em 1997.
(**) A Lei que o Espiritismo explica é a de Causa e Efeito, dentro da dinâmica das Leis Universais. Ação e Reação é lei da física material. Mantivemos a expressão original utilizada pelo autor.

Acesse os textos da edição:

EDITORIAL: Dogmática Espírita: o abandono do livre-pensar!

O dogmatismo (nem sempre ameno) dos espíritas, por Marcelo Henrique

O mito e sua superação (*), por Paulo César Fernandes

O Pensamento Pós-Moderno e o Espiritismo, por Luiz Fuchs

Dogmatismo, Imobilismo e Ausência de Fraternidade (*), por Nícia Cunha

Espiritismo: proposta cultural ampla demais para aprisionar-se em conceitos formais, por Milton Medran

Espiritismo, Igrejismo e Questões Sociais, por Lindemberg Castro

Crença e credulidade, por José Carlos Lucchetta Palermo

A síntese kardequiana, por Maurice Herbert Jones (in memoriam)

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