Marcelo Henrique
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Os conflitos estão sediados em dois quadrantes da marcha progressiva (moral e intelectual), pois há seres que se destacam intelectualmente, tornando-se líderes de sociedades, mas não as conduzem com a elevação dos sentimentos. Então quando dados grupos são vencedores em dadas disputas, seu objetivo é o da aniquilação (física ou pela restrição de liberdades ou a expressão de pensamento) dos que se lhes opõem.
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“O homem se desenvolve por si mesmo, naturalmente, mas nem todos progridem ao mesmo tempo e da mesma maneira; é então que os mais adiantados ajudam os outros a progredir, pelo contato social”.
Allan Kardec, “O livro dos Espíritos”, item 779 [1].
Como avaliar e entender toda a sorte de conflitos que acometem os seres humanos, em diversas ambiências e convivências, assim como as opiniões contraditórias entre nós e os outros? Como participar de determinados grupos ou segmentos sem praticar atos violentos para com os semelhantes?
A vida em sociedade pressupõe a interrelação entre os semelhantes, aprendendo a convivência. Ao lado das regras escritas (legais), há observações derivadas da conduta, costumes e acordos interpessoais. A máxima “o meu direito termina onde começa o do outro” se posiciona como o primeiro elemento de aferição da extensão das liberdades humanas.
Sendo o progresso o intento maior dos encarnados, individual e socialmente, necessária é a busca pela harmonização das condutas, no respeito aos semelhantes. O entendimento entre indivíduos e coletividades está diretamente associado ao padrão evolutivo, que não ocorre nem ao mesmo tempo nem da mesma maneira. Então, o dever e a responsabilidade dos mais adiantados está na compreensão das inferioridades das condutas de outrem e no auxílio, pela orientação e pela condução, dos que ainda não sabem “como” progredir. No item 272, de “O livro dos Espíritos” [1]), tem-se a encarnação, na Terra, de Espíritos egressos de mundos inferiores, para cá promovidos, mas que ainda conservam os resquícios da predominância da animalidade (instintos), bem como, inexiste a paridade entre os componentes moral (ético) e intelectual, nos Espíritos, pois o primeiro nem sempre acompanha o segundo (item 780, da obra citada [1]).
Diante dos conflitos, Kardec [2] destaca as “perturbações temporárias” entre pessoas e grupos sociais: “há lutas inevitáveis entre as ideias”, uma “alternativa de sucesso e de revés”. Todavia, “como as ideias novas são as do progresso […] elas não podem deixar de superar as ideias retrógradas”, estando nas leis da Natureza. Das perturbações irão resultar “graves acontecimentos”, não de natureza material (cataclismos ou catástrofes), nas “entranhas na Terra”, mas derivados da agitação das entranhas da Humanidade (“Os tempos são chegados”, “Revue Spirite”, outubro de 1866).
Os conflitos estão sediados em dois quadrantes da marcha progressiva (moral e intelectual), pois há seres que se destacam intelectualmente, tornando-se líderes de sociedades, mas não as conduzem com a elevação dos sentimentos. Então quando dados grupos são vencedores em dadas disputas, seu objetivo é o da aniquilação (física ou pela restrição de liberdades ou a expressão de pensamento) dos que se lhes opõem. E isto fica evidente, por exemplo, em disputas de natureza eleitoral ou em competições esportivas. Desejável seria que o despontar das inteligências conduzisse os coletivos à proteção dos direitos dos mais fracos (vide item 685-a, da obra primeira), amparando-os e respeitando-os, embora antagônicos, evitando conflitos, que podem se tornar permanentes, pois o grupo derrotado irá tentar se desforrar do vencedor, sucessivamente.
O próprio Espiritismo, enquanto filosofia (ou religião, para muitos), se opõe a outras escolas de pensamento humano, provocando uma série de conflitos, muitos sequer desejados pelos espíritas. Em dezembro de 1863, Erasto destaca na “Revue”, que “o Espiritismo está na ordem do dia”, alcançando todos os cérebros e consciências, um “privilégio exclusivo das grandes coisas”, já “que ele leva em si o princípio de uma renovação, que uns apoiam com os seus votos e outros temem”. O conflito entre espíritas e não-espíritas é inevitável “porque o homem é manchado de muito orgulho e egoísmo para aceitar sem oposição uma verdade nova qualquer”, mas tal atrito, necessário, “desfaz as ideias falsas e faz ressaltar a força das que resistem”.
Compreender, primeiro pessoalmente, os conflitos de qualquer natureza e, depois, auxiliar os demais, nos mais diversos ambientes onde ocorra a nossa participação, em conversações oportunas e edificantes, buscando a dialética e a dialógica participativas, é atitude esperada daqueles que compreenderam a essência da mensagem espírita.
Porque, os espíritas, longe de se considerarem “superiores” (nem em moralidade, nem em intelectualidade), pelo privilégio de conhecer (um pouco melhor) as questões espirituais e a aplicabilidade das Leis Divinas, devem atuar sem proselitismo ou conversão dos demais. Nosso intuito deve ser o de atuar no auxílio, consolo e esclarecimento daqueles que assim o desejarem, contribuindo para que cada um, no seu tempo, compreenda e viva as verdades espirituais.
Fontes:
[1] KARDEC, A. (2004). “O livro dos Espíritos”. Trad. José Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE.
[2] KARDEC, A. (1993). “Revue Spirite”. Trad. Salvador Gentile. Revisão de Elias Barbosa. Araras: IDE.
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Nota do ECK: Artigo originalmente publicado no jornal “Correio Fraterno”, em dezembro de 2022, revisto e ampliado
Imagem de Sergio Serjão por Pixabay
Edição: Junho de 2025
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Essa disparidade entre razão e sentimento realmente alimenta disputas que se perpetuam no tempo, pois os vencidos, muitas vezes, não se resignam — buscam revanche, e assim se forma um ciclo contínuo de antagonismos. É o retrato típico dos planos de aperfeiçoamento em que ainda nos encontramos.
Como diz o dito popular: “Até o mal se cansa.”
Pois é, amigos… se nós, em nossa limitação, já nos cansamos, um dia também se cansarão. E talvez, nesse cansaço, surja o espaço necessário para o despertar da consciência em prol de uma sociedade justa.
Você e eu colocamos o ideário codificado por Kardec como algo importante na condução do cotidiano próprio. E no aspecto tratado nesse texto fica claro que não vamos, porque não estamos aqui para isso, convencer e/ou converter o próximo às ideias que abraçamos. É um ato de coragem. Permito-me contar uma estória contada por um espírito: os que já conhecem a doutrina caminham sobre uma precária trilha no pântano moral. Ao ouvir o grito de socorro, estendemos às mãos e socorremos o necessitado. Com ele tentamos continuar a caminhada. Mas, se ele se atirar novamente na lama, não se esqueça que à frente há muitos que estão prontos para cerrar ombros com você. Aquele ainda não está maduro para sair do lamaçal moral que se encontra. Siga e console o próximo, literalmente. Abraços.