Estupro: uma interpretação a partir do Espiritismo, por Marcelo Henrique

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Marcelo Henrique

Recentemente, a opinião pública brasileira e internacional foi municiada por dois crimes praticados por ex-jogadores de futebol, Daniel Alves e Robinho. O primeiro foi condenado no país onde ocorreu o ato e o processamento policial-judicial, a Espanha e o segundo, embora cometido em terras italianas, foi processado em definitivo, após a condenação pelo juízo da Itália, conforme decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) do Brasil. Os crimes foram, respectivamente, em Barcelona e Milão.

Dentre os crimes existentes, mormente no âmbito da natureza sexual, um dos mais aberrantes e horrendos é, sem dúvida nenhuma, o estupro. A legislação humana – particularmente, a brasileira, – impinge-lhe uma severa capitulação, dispondo sobre ele no título reservado aos “Crimes contra os Costumes”, no capítulo dos “Crimes contra a Liberdade Sexual”, conforme os artigos reproduzidos no quadro ao final.

A moderna legislação pátria considera-o, ainda, como crime hediondo (1), o qual significa depravado, vicioso, sórdido, imundo, repelente, repulsivo, horrendo, sinistro, pavoroso, medonho. (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2. ed., p. 884, Nova Fronteira, 1986).

As características fundamentais do tipo-crime dão-nos conta da atitude criminosa de alguém que constrange outrem à prática de conjunção carnal ou ato libidinoso, por meio de violência ou grave ameaça (artigo 213, do Código Penal Brasileiro).

Deixando de lado os aspectos puramente legais do tema, pretendemos traçar uma abordagem acerca do entendimento espírita (e espiritual) deste ato, assim como de suas causas e conseqüências, abstratamente falando. Queremos deixar bem claro que nossas posições são pessoais, no exercício do livre pensamento, sob as bases humanista, progressiva, progressista e laica, e, no conjunto da Filosofia Espírita (trinta e duas obras de Allan Kardec), se utilizam as informações genéricas contidas nos compêndios kardecianos.

De início, dentre as liberdades de que a criatura humana é detentora, na qualidade de direitos fundamentais, talvez a mais significativa seja a liberdade sexual. Afinal de contas, baseada em padrões de moralidade, distintos entre si e peculiares a cada individualidade, a escolha de parceiros sexuais não obedece a nenhum padrão. O ser, baseado em sentimentos e (ainda) em instintos, deixa aflorar sua sexualidade, partindo para a busca e o encontro de um companheiro para satisfazer seu prazer, na permuta das chamadas “energias sexuais”.

Por isso, quando se tem notícia de que ocorreu um estupro, isto é, a conjunção carnal forçada, imposta pela força física ou pela coação moral (psicológica), estamos diante da maior violência que se pode praticar contra o ser, excetuando-se, é claro, o aborto, considerado crime grave nas situações não-ressalvadas pela legislação brasileira ou mundial, onde a vítima é totalmente incapaz de defender-se.

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No estupro, o que conta não é a possibilidade (ou não) de resistência da vítima às ações do agressor. Isto é secundário. Tampouco se deve verificar se a primeira, por sua ação ou intenção, manifesta em gestos, comportamentos, olhares, sinais, ou, ainda, em sua forma de trajar ou sua conversação, tenha provocado o aflorar dos desejos sexuais de outrem. Ou, ainda, se o criminoso possuía um estado psicopatológico anterior que o mantinha intimamente ligado à idéia da relação sexual, ou, até, a sua vinculação mental (fixação mental) ao objeto de seus desejos. O que realmente conta é a atitude desmedida, agressiva e irracional, e a enorme carga de responsabilidade que resulta do ato cometido, que agride a função sexual da vítima e interfere na energia contida nas gônadas femininas.

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Em alguns encontros espíritas, presenciamos discussões que procuravam delimitar o estupro perante a Espiritualidade, isto é, tentavam analisar se, dentre as provas e expiações a que o homem se sujeita, em razão de seu grau evolutivo e da sua passagem por este planeta, não poderia estar “planejada” uma situação em que ocorreria o estupro, como forma de resgate de erros pretéritos, por parte da vítima.

O exame das obras básicas é, como dissemos, fundamental e constitui o primeiro passo, para entender tal situação.

Então, o que constitui o “Planejamento Encarnatório”, configurado pelas escolhas do Espírito?

Do exame de “O livro dos Espíritos” (2), podemos extrair a cristalina idéia de que nem todas as tribulações que experimentamos na vida foram previstas e escolhidas por nós. A escolha se resume ao gênero da prova. Exemplificativamente, o Espírito de Verdade nos adverte: “Se o Espírito quis nascer entre malfeitores, por exemplo, sabia a que tentações se expunha, mas ignorava cada um dos atos que viesse a praticar. Estes atos são efeito de sua vontade, ou de seu livre arbítrio.”

A regra norteadora, como sempre é a liberdade de ação, com a necessária atenção para a responsabilidade quanto ao reflexo destes, o resultado.

Fazendo, pois, uma analogia com o suicídio, encontramos na literatura espírita a consideração de que todos os desencarnes são previstos pela Espiritualidade, à exceção daquele, quando o ser renuncia voluntariamente à oportunidade de vida, abreviando sua existência.

Assim, afirmamos que há certa resistência de nossa parte, à luz do Espiritismo e das premissas das Leis Universais, em aceitar que uma brutalidade como o estupro possa estar incluída como uma prova escolhida pelo espírito reencarnante, tendo em vista que, deste modo, quem seria “escalado” para ser o algoz, o estuprador? Não estaria sendo ele, instrumento de uma severa e dolorosa forma de “resgate”?

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Poderiam afirmar alguns: quem sabe a vítima, numa vida, poderia retornar para ser o agressor em outra? Pois bem! Onde fica a Lei de Justiça, Amor e Caridade? Ou, quem sabe, voltaríamos nós à época da barbárie, onde a Lei de Talião era a severa espada da justiça, isto é, o que se fez, da mesma maneira se sofre? A razão espírita repudia tais considerandos…

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Todavia, há que se mencionar, também, a questão da “necessidade dos escândalos” (Mateus: 18, 6-11), tão bem enfocada por Jesus. Mas, “ai de quem seja instrumento dos escândalos”, diz a passagem, demonstrando claramente que a Lei Natural presente no Universo aproveita as situações surgidas pela vontade humana, filtrando-as e enquadrando-as no contexto das encarnações dos seres. Uma guerra ocorre por vontade humana, dos dirigentes das nações e sua efetivação ceifará muitas vidas, entre civis e militares. Portanto, as pessoas atingidas pela desencarnação violenta decorrente das guerras, assim como aquelas que terão sequelas físicas e psicológicas, aproveitam o acontecimento funesto para resgatarem dívidas de ontem. Mas, e quanto a seus algozes, os guerreiros que provocaram mortes e ferimentos? Evidentemente, por suas atitudes, serão julgados pelo tribunal da consciência e carecerão de novos reajustes, onde saldarão seus débitos, em outras existências.

O estupro, assim, não obedece a nenhum planejamento espiritual. Todavia, em acontecendo, vítima e agressor submetem-se aos desígnios da Lei Maior, sujeitos à completa análise espiritual da questão, resultando para a primeira, por suportar a prova com coragem e resignação, condição de progresso espiritual e, para o segundo, dolorosa senda de refazimento de seus atos, esperando contar, ainda, com o perdão da primeira como forma de ajuda para superar suas próprias deficiências.

E para nós, que ainda nos revoltamos quando presenciamos notícias sobre a ocorrência de um estupro, bradando justiça, entendamos que nada escapa aos desígnios da Providência e, antes de nos transformarmos em juízes dos infelizes seres que cometem tal atrocidade, lembremos da mensagem do Nazareno do “atire a primeira pedra”, recolhendo-nos à meditação e à prece em seu favor, para que os mesmos possam sair do mar de lama em que se encontram, arrependendo-se sinceramente de seus atos, reivindicando, assim, nova oportunidade benfazeja de reparação, para, ao final, alcançar a paz e a serenidade.

No contexto da sociedade brasileira, segundo dados do IPEA (3), de março de 2023, 822 mil casos de estupro ocorrem no Brasil, a cada ano, o que corresponde a dois por minuto, ainda que apenas 8,5% dos crimes sejam registrados pelas autoridades policiais e 4,2% no Sistema Único de Saúde (SUS). Esses números são alarmantes, deprimentes e merecem ações efetivas de parte dos órgãos públicos, de empresas e outras instituições públicas e privadas e da sociedade como um todo, inclusive em termos de combate individual à sua ocorrência. 

Espera-se, assim, que haja uma conscientização social em relação a este grave problema da atualidade e que os casos que ocupam a mídia, envolvendo “celebridades” do esporte nacional (futebol, mais especificamente), a partir da judicialização e da responsabilização dos agentes (Daniel e Robinho) possam ser um pequeno início de um estado mais justo e de responsabilidade e justiça sociais. E, ainda que a Justiça Humana tenha suas falhas e suas “permissibilidades”, entre as quais a soltura de Daniel em face do pagamento de fiança arbitrada, em relação à Justiça Universal e a operacionalização das Leis Naturais, será “dado a cada um segundo suas obras”, conforme teria dito Yeshua, isto é, dos mecanismos de apuração de responsabilidade e de reparação dos erros cometidos, ninguém passa imune.

Em tudo e por tudo, NÃO, sempre, ao estupro!

(1) Lei Federal n. 8.072/90.

(2) Questões 258 a 273.

(3) Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), disponível em <https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/13541-brasil-tem-cerca-de-822-mil-casos-de-estupro-a-cada-ano-dois-por-minuto>. Acesso em 25 de março de 2024.

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Código Penal Brasileiro

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei n. 12.015, de 2009)

 

  • 1º. Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009).

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)

  • 2º. Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (Incluído pela Lei n. 12.015, de 2009)

Imagem de Carrie Z por Pixabay

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