Crença e credulidade, por José Carlos Lucchetta Palermo

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Por José Carlos Lucchetta Palermo

Fanatismo religioso, lavagem cerebral ou crença cega são evitados com o amadurecimento da reflexão; pensar, refletir – eis o caminho.

“Quem está se afogando não repara naquilo a que se agarra”, Juan José de San Martín.

A credulidade é a desqualificação da crença. Enquanto a crença se fundamenta – ao menos em tese – em convicção íntima consubstanciada numa opinião adotada com fé e raciocínio, ou para nós espíritas, na fé raciocinada de que falava Kardec, a credulidade ou a crendice é o fruto da conduta do crédulo ou crendeiro, definido pelos lexicólogos como o indivíduo ingênuo ou sem malícia que crê facilmente, revelando-se ora simplório, ora ridículo.

Temos insistido em nossas preleções, que tão nocivo quanto o materialista ateu, que em nada crê, é o crédulo piegas, que crê em qualquer coisa. Ambos são extremos perniciosos, afrontando o saber e o bom senso.

O crente de convicção firme, embasado na lógica, nas descobertas da Ciência, na Revelação comprovada e criteriosa, não se deixa levar pelos “modismos” do momento, nem flutua ao sabor dos ventos das novidades fáceis e ilusórias dos “cantos-de-sereia” que grassam nos meios culturais e religiosos.

O crente autêntico tem a ironia de um Sócrates, que fustigava as mentes em busca da parturição das ideias, em tom ousado e atrevido, sem “dourar a pílula”. O crente destemido tem a altivez e a palavra revolucionária de um Cristo, que tem uma mensagem palpável e um código de conduta. O crente racional tem a maturidade e a precaução de um Kardec, investigando cientificamente a verdade, precaucionando-se contra o erro, o sofisma e o devaneio.

O crente de valor tem na persistência a qualidade que atesta seu discernimento para a escolha; é resoluto sem ser radical; não muda ao sabor das paixões, mas evolui constantemente à luz das novas conquistas.

O crente iluminado sabe interpretar a Bíblia, sem fazer dela um “novo bezerro de ouro”, como ironizava J. Herculano Pires, ou a “palavra de Deus” que assusta para convencer, em vez de esclarecer para iluminar.

O crente ético modula-se pela Moral Evangélica, vendo em Jesus um Espírito de Luz, cuja missão foi o ensino de uma conduta de amor e caridade, e não o mártir que precisou esvair-se em sangue para salvar os homens até hoje estúpidos e náufragos na ignorância. Sabe, consoante apregoa o dito popular, “que o importante não é andar com Cristo no peito. O importante é ‘ter peito’ para andar com Cristo”.

O crente moderno, enfim, coaduna-se com Kardec, por conhecer-lhe a Doutrina imperecível, insofismável e absolutamente atualizada, haja vista o testamento filosófico do mestre lionês que recomendou fossem observados os princípios doutrinários, enriquecidos ou reformulados com as novas conquistas da Ciência, suscetíveis de serem incorporadas à Doutrina Espírita. Nem outra poderia ser a orientação, de vez que o Espiritismo não comporta dogmas e tem por escopo a evolução.

Dizer que Kardec está superado é o mesmo que dizer que Santos Dumont também está ultrapassado. Pode até ser verdadeiro se considerarmos o Codificador do Espiritismo e o Pai da Aviação como pessoas físicas inseridas no contexto social em que viveram. Mas dizer que o Espiritismo ou a Aviação estão suplantados é desconhecer a dinâmica de seus objetivos. As concepções atualizadas de ambos não infirmam suas origens; representam suas continuidades reformuladas no processo evolutivo.

Um médico ou outro profissional que não se atualize, estudando sempre, em poucos anos estará fora da realidade do seu mister. Todavia, o fato de envidar esforços para atualizar-se não lhe cassa ou desmerece o diploma que lhe serviu de início.

Já o crédulo, seja antigo ou moderno, ignorante ou diplomado, é sempre avesso à lógica e insensível ao argumento. Sua postura é a do opiniático que não admite réplica ou censura.

Se o crédulo for ignorante — reconhecemos a redundância, pois todo crédulo o é — e estamos nos referindo ao iletrado, é presa fácil do fanatismo religioso, que o domina através de “apropriada” lavagem cerebral. Escravo do dogma, passa a não pensar mais — na verdadeira acepção da palavra — e conduzir-se segundo os ditames impostos pelos “pastores” do seu “rebanho”. Sua Filosofia passa a andar de quatro.

Se o crédulo for diplomado, o quadro não fica menos ruim. Este tipo de crédulo é inquieto, “saltitante”, pula de galho em galho nos ramos frágeis dos “modismos”, qual pássaro faminto e solitário, em busca do alimento da alma. Às vezes faz seu ninho iludido pela altura e majestade da árvore, para logo decepcionar-se com a primeira chuva ou o próximo inverno.

Sendo o crédulo com escolaridade e também de poder aquisitivo, investe nas pomposas instituições que o revestem de muitos paramentos por fora e nenhum conteúdo por dentro.

A credulidade nesta categoria, abraçada por alguns “esotéricos”, adeja nas alturas etéreas do “saber”, num egocentrismo refinado, invertendo o preceito evangélico e adotando o lema: “a caridade está fora da salvação”.

A sustentação filosófica dos crédulos “sofisticados” é imprecisa, enigmática, inconcludente. Por comodidade ou por incapacidade, não estabelecem normas programáticas; não aconselham objetivamente; furtam-se a tomarem posições. Confundem tolerância, que é virtude, com conivência, que é vício. Deixam de julgar, não por amor ao próximo, mas por falta de juízos de valor que não têm nem para si mesmos. Seu assento predileto é “em cima do muro”.

Uma figura análoga é o esotérico deslumbrado. Tomado por uma paixão avassaladora e momentosa, envereda pelos caminhos da fascinação e confunde fantasia com fantástico, vivendo num mundo irreal e ilusório, sem aperceber-se das mazelas existenciais que reclamam trabalho com os pés no chão, e sem comprometer-se com o socorro que lhe suja as mãos ou lhe exige partido. Se aconselha, é evasivo e esquivo.

O esotérico deslumbrado é meramente teórico. Desconhece o princípio evangélico de que a fé sem obras é morta. Alguns são até interessantes como poetas. Ante uma realidade, um fato, um problema que reclamam posicionamento, diretriz, julgamento e sanção, teorizam com elucubrações poéticas e quimeras sem anteparo filosófico ou comprovação científica. Falam muito e não dizem nada. Adulam, sem orientar. Explicam, sem esclarecer.

Em sua aventura trânsfuga, o esotérico deslumbrado ao invés de partir da realidade para o ideal, faz de seu ideal a realidade. Não quer ver o mundo como ele é, mas como imagina ser. O fato de ser idealista não o desmerece, mas, ao ser um alienado da realidade, compromete sua atuação no mundo real, permanecendo improdutivo e iludido na sua filosofia do “faz-de-conta”.

Em seu devaneio, o esotérico deslumbrado, embora espiritualista, não aceita o preceito contido no Eclesiastes, repetido no Evangelho Segundo o Espiritismo e constatado na prática, que diz: “A felicidade não é deste mundo”. Desconhece a relatividade da Felicidade neste orbe de provas, expiações e experiências apropriadas ao estágio evolutivo, ignorando as injunções cármicas e a sua própria condição de evolução. Aponta soluções irrisórias e infantis para as mazelas existenciais, sem, contudo, apontar um único ser humano que tenha reunido as condições ambicionadas de um ser realmente feliz. No afã de ser feliz, confunde pessimismo com realismo e supõe que uma simples maneira de pensar pode substituir a trajetória evolutiva na qual está inserido. Não sabe que a Felicidade não é um lugar, nem um tempo; a Felicidade é ser perfeito. A Perfeição, por sua vez, é atingida pelo trabalho diuturno sustentado pela Conduta e pelo Saber, aptidões essas conseguidas ao longo das sucessivas encarnações.

Tem-se a Felicidade que se merece, na proporção da Conduta e do Saber que se conquistou, nem mais, nem menos; o resto é falácia.

Pretendendo realizar a Justiça, o visionário esotérico torna-se injusto ao igualar os homens, que são iguais em oportunidades, mas nunca nos méritos, consequência dos diferentes graus evolutivos em que se encontram, fruto do trabalho, do empenho e do crescimento espiritual de cada um.

Nesse “misturar de estações”, rompe com valores autênticos, a pretexto de otimizar a vida, repetindo frases fabricadas para mascarar a realidade, pretendendo atrair o efeito do bem sem afastar a causa do mal.

E vai por aí a fora, até que a escola da evidência lhe subministre o conhecimento necessário, nem sempre por vias suaves.

Não se deflua daí qualquer ilação de pessimismo, derrotismo ou postergação de felicidade para outras vidas. Nosso propósito é alertar os incautos que deambulam nos caminhos ínvios da fantasia que não conduz a parte alguma, seduzidos pelas propostas que tentam embair aqueles irmãos sequiosos por justiça, paz e felicidade e que, premidos pelo desespero sôfrego da busca de soluções, se agarram à primeira mão que se lhes estende, desconsiderando que esta mesma mão poderá, ao invés de içá-los às culminâncias pretendidas, arrastá-los ao poço negro das desilusões.

A Felicidade possível nesta existência terrena deve, sem dúvida, ser honestamente promovida, racionalmente buscada, plenamente vivida. Mas, para isto, se faz necessário um alicerce filosófico de princípios sólidos, corroborados cientificamente e eticamente viáveis, sem perder de vista a limitação do momento evolutivo, mas com a perene esperança de um evoluir infinito, rumo ao absoluto.

Acesse os textos da edição:

EDITORIAL: Dogmática Espírita: o abandono do livre-pensar!

O dogmatismo (nem sempre ameno) dos espíritas, por Marcelo Henrique

O mito e sua superação (*), por Paulo César Fernandes

O Pensamento Pós-Moderno e o Espiritismo, por Luiz Fuchs

Dogmatismo, Imobilismo e Ausência de Fraternidade (*), por Nícia Cunha

Espiritismo: proposta cultural ampla demais para aprisionar-se em conceitos formais, por Milton Medran

Espiritismo, Igrejismo e Questões Sociais, por Lindemberg Castro

Crença e credulidade, por José Carlos Lucchetta Palermo

A síntese kardequiana, por Maurice Herbert Jones (in memoriam)

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