Dogmatismo, Imobilismo e Ausência de Fraternidade (*), por Nícia Cunha

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Por Nícia Cunha

A simples menção ou hipótese da possibilidade de atualização do Espiritismo deixa os dogmáticos em pânico, apesar do claro ensinamento de Kardec, de que o Espiritismo jamais ficaria ultrapassado, porque caminharia com a ciência. Porque é mais fácil deixar-se imobilizar em amarras religiosas e dogmas do que raciocinar e absorver conceitos ampliadores da consciência cósmica.

Não aceitamos definir o Espiritismo como religião. Evidentemente, o que não significa que negamos o fato de ela ser uma doutrina com consequências religiosas, o que é coisa muito diversa. Embora a sutil diferença, nem sempre perceptível ao pensamento dogmático, esta é exatamente a posição de Kardec, a cuja fidelidade nos reportamos. Mentes estratificadas em pensamento rígido não conseguem diferenciar prática religiosa de sentimento religiosos. Optamos, no entanto, por não criarmos celeuma alguma, respeitando terceiros e não impondo nossa visão de doutrina a quem quer que seja. Nossa prática é a do espírito democrático r a excelência de suas propostas de debates e eventos – exatamente como as da filosofia espírita, que procuramos praticar.

Sabemos que “O Evangelho Segundo o Espiritismo” é a terceira obra da codificação. Reconhecemos que foi escrita com pedagogia específica para demonstrar em que base se assenta o sentido ético moral do Espiritismo. Entendemos que nela são ressaltados os princípios das leis divinas, gradativamente revelados à humanidade por vários missionários e complementados pelo pensamento de Jesus, que os sintetizou e acrescentou. Aceitamos que a Doutrina Espírita é maior que os Evangelhos, que não santifica ou cultua religiosamente os textos canônicos, nem sequer “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, obra que os retifica e complementa em vários aspectos, sua maior e mais respeitável base.

A palavra “Selon” do título original francês da citada obra, foi traduzida sem total fidelidade, pois não significa “segundo”, mas “conforme”. O que fatalmente subordina os Evangelhos ao Espiritismo e não este àquele. A “Revista Espírita” e as demais obras da codificação – inclusive os livros publicados após a edição de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” – citam e endossam o pensamento de Jesus, o que permite deduzir que Kardec permaneceu coerente até o último livro publicado.

Entretanto, para nós, “O Evangelho Segundo o Espiritismo” não foi escrito para ser uma “bíblia espírita” – a ser lido de modo fragmentado e rotineiro, como tem sido sistematicamente feito. Nem para servir de base a cultos, que a doutrina não os tem. Essas práticas rituais, introduzidas pelos místicos e religiosos, é que tem dado ao Espiritismo brasileiro, características de uma religião constituída, objetivo jamais pretendido por Kardec. Desse modo, criou-se um Espiritismo atípico, transformando-o em apenas mais uma seita cristã, numa visão reducionista de uma filosofia vasta e universal. A infidelidade ao Codificador seria, ao contrário, dos religiosistas, que modificaram conceitualmente a doutrina, pela influência mistico-religiosa de Roustaing, pois é justamente dessa fonte – “Os quatro evangelhos”, obra do advogado francês contemporâneo de Rivail – que deriva a sua postura dogmática e bíblico-evangélica.

Considerar Allan Kardec apenas como Codificador, caracterizando-o como coadjuvante menor, evidencia o propósito de diminuí-lo, cometendo tremenda injustiça e depreciando sua atuação. O fato de Kardec estar encarnado não reduz sua grandeza espiritual e capacidade realizadora. Fosse assim e Jesus não teria valor, pois estava encarnado quando andou lecionando por aqui. Kardec desenvolveu a parte mais difícil e trabalhosa do projeto: sem ele, todos os outros, por mais elevados e capazes que fossem, não teriam concretizado a obra, pois não podiam, segundo ensina a própria doutrina, intervir diretamente na matéria.

Diminuir Kardec e exaltar os mentores espirituais, é manobra para excluir a possibilidade de falha. Sacralizando a revelação espírita, fazem-na irretocável, como se a evolução e o conhecimento universal ali cessassem. Evidentemente, reconhece-se sua inspiração divina, mas crer-se que a codificação foi entregue completa e perfeita, é um contra senso, pois o próprio Kardec afirmou o contrário, em “A Gênese”, Capítulo I, Item 13, enfatizando que era obra de elaboração humana. Se atribuirmos a obra espírita somente aos Espíritos Superiores, estabeleceremos o mito da intocabilidade. Considerando-os perfeitos e infalíveis, sem reconhecer em todos sua condição humana e limitada, embora em altos patamares e contextos, é negar que estavam e ainda estão em processo evolutivo. É esquecer-se que em âmbito cósmico, atuando num planeta de expiação e provas, certamente não teriam atingido sua máxima condição evolutiva. Negar essa evidência é endossar o conceito de “infalibilidade papal”, só que de maneira própria.

Nessa linha de raciocínio é que se propomos estudos e debates permanentes, como o que ocorre nos Congressos e Conferências promovidos ao longo dos anos pela CEPA – Associação Espírita Internacional. Ressaltamos que os objetivos destes eventos e atividades não são o de “pura e simplesmente modificar princípios e postulados da doutrina”. Do contrário, nenhum espírita pode modificar os chamados princípios básicos e as chamadas obras da Codificação são intocáveis, protegidas que são por direitos autorais. Mas isto não as isenta de análises. Pode-se perfeitamente criar obras analisando outras obras. É isso que se pretende, é isso que a evolução pede.

É incrível como as pessoas leem uma coisa e entendem outra. Quando se menciona a necessidade de atualização do Espiritismo, isto ocorre justamente para abrir os debates, considerar argumentos contra e a favor. Kardec pretendeu que a doutrina devesse estar em permanente construção, segundo os parâmetros evolutivos por ela mesma preconizados. Esta proposta é uma versão moderna da busca do consenso universal, sistemática, usada por Kardec, talvez mais transparente agora pela abrangência do debate entre instituições e pessoas de várias nações. Cabe então, aos espíritas de todas as tendências, se manifestarem sobre suas posições, defenderem seus pontos de vista, para dar mais respaldo ao debate.

A simples menção ou hipótese da possibilidade de atualização do Espiritismo deixa os dogmáticos em pânico, apesar do claro ensinamento de Kardec, de que o Espiritismo jamais ficaria ultrapassado, porque caminharia com a ciência. Porque é mais fácil deixar-se imobilizar em amarras religiosas e dogmas do que raciocinar e absorver conceitos ampliadores da consciência cósmica.

Através da física, da química, da biologia, da astronomia e de inúmeras outras áreas do conhecimento humano, a ciência atual já sinaliza que significativos percentuais das informações científicas constantes da codificação precisam ser reanalisados, ao contrário do que afirma muitos religiosos espíritas. A ciência está evidenciando que apesar da alta inspiração espiritual da Doutrina Espírita, os humanos encarnados e desencarnados que a elaboraram não eram deuses que se deve idolatrar, mas precursores, como tantos outros, do conhecimento infinito que devemos progressivamente alcançar.

A agressão infeliz demonstrada em relação aos que pretendem discutir tais questões e não dogmatizam o Espiritismo evidencia claramente que alguns espíritas ainda trazem entranhadas, a intolerância e perseguição religiosa ancestral, por “delitos de opinião”.

Nota do ECK:
(*) Artigo publicado na Revista Espírita “Harmonia”, edição impressa, como resposta (contraponto) a um artigo publicado no “Jornal Espírita”, da Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP), em 1999, intitulado “Cuidado constante com tartufos, embusteiros e transformadores”, assinado por Bento Oly Barros Martins. No referido texto, o autor induz seus leitores – e os seguidores das diretrizes daquela federativa – a considerarem que a Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA), hoje CEPA Associação Espírita Internacional, divulga que Kardec teria ERRADO ao publicar a obra “O Evangelho Segundo o Espiritismo” e que a entidade estaria disposta a modificar princípios e postulados doutrinários estabelecidos pelo professor francês, assim como, em face do título do mesmo, atribui aos associados e dirigentes da entidade, os pesados e anti-fraternos adjetivos do título da matéria.

Em face do conteúdo do artigo que trazemos para o grupo ser atual e oportuno, republicamos aqui, com pequenas adequações em relação à atualidade, a quem pedimos licença à sua autora.

Acesse os textos da edição:

EDITORIAL: Dogmática Espírita: o abandono do livre-pensar!

O dogmatismo (nem sempre ameno) dos espíritas, por Marcelo Henrique

O mito e sua superação (*), por Paulo César Fernandes

O Pensamento Pós-Moderno e o Espiritismo, por Luiz Fuchs

Dogmatismo, Imobilismo e Ausência de Fraternidade (*), por Nícia Cunha

Espiritismo: proposta cultural ampla demais para aprisionar-se em conceitos formais, por Milton Medran

Espiritismo, Igrejismo e Questões Sociais, por Lindemberg Castro

Crença e credulidade, por José Carlos Lucchetta Palermo

A síntese kardequiana, por Maurice Herbert Jones (in memoriam)

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