A cabeça das mulheres, por Célia Aldegalega

Tempo de leitura: 6 minutos

A cabeça das mulheres
Célia Aldegalega

Expressamente indicado como modelo a seguir, a relação dos espíritas com Jesus é frequentemente tangencial à adoração e idolatria.

Há duas versões da Criação, mas tendo estabelecido uma relação com a Bíblia na perspectiva da sua representatividade na cultura judaico-cristã, e consequente influência na Literatura ocidental, foi através de uma nota de rodapé em A Condição Humana, de Hannah Arendt, que me dei conta de Jesus ter afirmado que Deus criou homem e mulher ao mesmo tempo: Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher? (Mateus, 19:4, sublinhado meu).

Assim começa a resposta à interpelação de fariseus sobre o divórcio, em relação ao qual Jesus aparentemente teria recuado face a Moisés, reiterando que “o que Deus uniu não o separe o homem” (Mateus, 19:6). Interessante a enunciação por Jesus de “homem” no sentido de humanidade, termo cujo uso está a ser descontinuado, em virtude da maior conscientização para a igualdade de gênero, tal como se faz mister apresentar reservas à restrição ao gênero binário. Embora a declaração de Jesus se remeta ao sexo biológico, tendo a especular que este pronunciamento de Jesus também possa indiciar a sua provável posição sobre o tema da diversidade de género.

A questão do divórcio poderá ser objeto de reflexão futura, mas, presentemente, parto para a análise daquele que se me afigura um excelente exemplo da divergência do Cristianismo da doutrina fundada por Jesus de Nazaré.

A mesma nota de rodapé justapunha a posição de Paulo de Tarso de a mulher ter sido criada do homem e para o homem (I Cor., 11:8-12). O capítulo começa com o enunciado: Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo. (I Cor., 11:1), e prossegue perorando sobre “A Assembleia Litúrgica”, encetada com preceitos sobre “O véu das mulheres”, introduzido por: Mas quero que saibais que a cabeça de todo o homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem, e a cabeça de Cristo é Deus. (I Cor.,11:3) A cabeça – GR. Kephalé – é empregue com duplo sentido, significando também liderança, estabelecendo uma hierarquia que começa em Deus e termina na mulher, coloca o homem como intermediário da relação das mulheres com Cristo e Deus, posicionando a mulher como incapaz de estabelecer relação direta com o divino e a transcendência. Mais concretamente: interditada de se relacionar autonomamente com Cristo e Deus, criada diretamente da matéria, inferindo-se ser despojada da essência divina. Deus teria criado o homem à sua imagem e semelhança, e não se teria dado ao trabalho de fazer outro tanto pela mulher, assim criada (1) à imagem e semelhança do homem. Uma espécie de subproduto.

Nas palavras de Jesus, a humanidade é plural e igualitária; mulher e homem, então, foram criados simultaneamente, excluindo a derivação da versão feminina da versão masculina plasmada como protótipo, fabricada a partir de uma costela, um osso menor e acessório. Oportunidade única dada ao homem de ser gestante, também se pode dar o caso de “a costela” designar a localização da concepção da primeva, assim engenhada algures na caixa torácica de Adão. Desconcertante manobra herdada das procriações míticas em partes avulsas do corpo de deuses, assente na crença em milagres e prodígios, ou relato atabalhoado de alguma técnica reprodutiva inteligível para os compiladores dos textos sagrados judaicos.

Se acreditasse que Jesus é Deus como no dogma cristão, tratava-se de uma informação direta da fonte, e a versão a validar seria esta. Acredito, no entanto, na sua presciência e proximidade a Deus, e, no meu entender, a versão enunciada por Jesus só pode ser a válida, não obviamente do ponto de vista da narrativa edificada da Criação, mas da perspectiva sobre a relevância e autonomia da mulher.

Mas, para Paulo de Tarso, …não foi o homem que foi tirado da mulher, mas a mulher do homem. E o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem. (I Cor., 11:8-9) E remata com a absurda sentença: Por isso a mulher deve trazer sobre a cabeça o sinal da autoridade, por causa dos anjos. (I Cor., 11:10) O “sinal da autoridade” é o véu, sendo a cabeça coberta símbolo de subordinação. E toda a mulher que não cobrisse a cabeça para orar e profetizar (aparente concessão de Paulo de Tarso, sabendo-se que esse tipo de protagonismo também viria a ser sonegado às mulheres), deveria rapar a cabeça, aludindo a um castigo infamante aplicado a mulheres desonradas. A menção aos anjos é tradicionalmente explicada com a sua presença nos cultos, e necessária manifestação de respeito pelos representantes de Deus, o que não a torna menos nonsense, antes lembrando os lendários intercâmbios entre anjos e mulheres que teriam ocasionado a prole de Nephilim, e, assim sendo, apresentando-se velada, a mulher não tentaria os anjos. Ironicamente, é também neste capítulo desta epístola que Paulo de Tarso censura aos homens o uso de cabelos longos, contrariando as representações de Jesus que viriam a ser cristalizadas.

Este capítulo da I Carta aos Coríntios, encerra-se com a declaração: Mas, se alguém quiser contestar, nós não temos esse costume, nem tampouco as igrejas de Deus. (I Cor., 11:16). Entendo como não ser costume contestar. Declaração antológica do autoritarismo institucionalizado, a antítese do exercício do livre-pensamento e do livre-arbítrio.

Expressamente indicado como modelo a seguir, a relação dos espíritas com Jesus é frequentemente tangencial à adoração e idolatria. A releitura dos evangelhos providenciada pel’O Evangelho Segundo o Espiritismo, propõe a sua interpretação espírita, mas não resolve a narrativa dos evangelhos canônicos, muito menos a do Novo Testamento. Aliás, remeto a singularidade do título para o sentido de “boa nova”, tradução do euangelion conforme enunciado na Septuaginta. Assim sendo, deveríamos concluir que Kardec nos legou uma leitura espírita da Boa Nova, ou seja, da doutrina de Jesus, e não propriamente uma interpretação dos evangelhos, embora deles retire a substância.

A leitura daqueles numa perspectiva literária talvez devolvesse um perfil mais assertivo de Jesus e da sua doutrina, propondo uma metodologia inversa: relê-los como textos comuns, sem a carga mítica. E, idealmente, fazer outro tanto com evangelhos apócrifos, e demais textos do Novo Testamento. É que a tendência é integrar conhecimento, ou sem qualquer questionamento, ou sem a distanciação que permita colocar questões inocentes, como por exemplo: pouco antes da sua detenção, Jesus afasta-se dos apóstolos para orar; chega a interromper a oração para dar uma reprimenda aos apóstolos, porque adormeceram. Quem o ouviu dizer “Pai, afasta de mim esse cálice!”, etc.? Como tomaram conhecimento do conteúdo da sua prece, se foi imediatamente preso e nunca mais esteve com nenhum deles em vida?

Os intensos debates sobre se é o Espiritismo cristão, ou não, talvez ganhassem em assertividade com este método, porque, tal como é clara a divergência entre o que Jesus terá dito na passagem supracitada, e o que Paulo de Tarso escreveu, se aclarariam porventura outras diferenças entre as narrativas dos evangelistas, e a do inventor do Cristianismo e promotor dos fundamentos da Igreja.

Retome-se a afirmação Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo. Paulo de Tarso auto proclama-se intermediário e representante do Cristo por si edificado, arvorando-se ao exemplo atingível pelos cristãos. Ou seja: ele está acima de todos, pois que capacitado para imitar Cristo diretamente, enquanto os demais terão de o imitar a ele. Ou seja, Paulo de Tarso assume ser o modelo direto dos seguidores de Cristo. E entre o movimento espírita, muitos são os que cultuam Paulo de Tarso.

Do que acedemos sobre Jesus de Nazaré através dos evangelhos canónicos e apócrifos, nada indica que tivesse pretendido fundar uma religião, muito menos uma igreja. Afigura-se um reformista, e nunca se autoproclama o Cristo, ou o Messias, ou os textos canónicos e apócrifos induzem que não, pois, em rigor, a principal garantia de os pronunciamentos que contêm corresponderem às palavras de Jesus, é a crença. A alternativa racional é a forte probabilidade, com base na recorrência de pronunciamentos e episódios nos evangelhos canónicos e apócrifos.

O messianismo Judaico não se restringe ao domínio do religioso, abrangendo também o poder temporal, o carácter salvífico do messias é duplo, e se os adeptos do Judaísmo não estranham a ausência do Messias até hoje, poderá ser por parte substancial da questão ter sido resolvida com a fundação do Estado de Israel, e, legitimamente satisfeitos, muitos israelitas relevem a falta de essência messiânica entre os seus dirigentes, que se ocupam o mais possível em fazer aos palestinianos o que não gostaram que lhes fizessem. Mas o conceito é reproduzido nos dizeres atribuídos ao palestiniano que o Judaísmo não lê.

O mais certo é que Jesus nunca se tenha proclamado messias talvez menos por razões divinas do que seculares, ciente do conceito messiânico judaico ser diretamente conflitante com o facto da Judeia ser uma província do Império Romano. E também não seria impossível que os primeiros acólitos, cuja práxis era muito alinhada com o Judaísmo, não insistissem no aspeto messiânico de Jesus, porque, pragmaticamente, a missão tinha sido um fracasso, e o desfecho traumático. Partimos sempre do princípio de que os primeiros acólitos de Jesus não esmoreceram, como herdámos de milénios de condicionamento a ilusão de que Jesus foi famoso na sua época. O que a residual referência histórica contradiz. Jesus terá sido o fundador de uma pequena seita dissidente do Judaísmo. O ônus da implantação e difusão do cristianismo cabe à resiliência de apóstolos e seguidores, mas, sobretudo, ao protagonismo de Paulo de Tarso, e beneficia macabramente da perseguição movida aos cristãos pelo Império Romano, com os hediondos massacres a gerar externalidades na divulgação massiva e impactante de uma religião pela qual havia quem estivesse disposto a morrer. E para se ser cristão, nem era preciso ser hebreu, a contrário do Judaísmo.

Paulo de Tarso alegou ter sido industriado diretamente por Jesus para a missão de difundir o Cristianismo. E por que razão delegaria Jesus a continuidade da sua missão num fariseu perseguidor de cristãos, que no momento da suposta teofania nada sabia da sua doutrina?

Retomando o assunto em análise, em matéria de reformismo, Paulo de Tarso operou um retrocesso na percepção sócio cultural da mulher, que, apesar dos progressos, perdura, com a entranhada cultura judaico-cristã implantadora do patriarcado a oferecer resistência à igualdade de género. E aqui se apontou apenas o contraditório cristão à abertura de Jesus relativamente às mulheres.

Nota da Autora:

[1] Em Português, a palavra criada também designa serviçal, embora o termo tenha caído em desuso por politicamente incorreto, e atualizado na expressão funcionária doméstica.

ACESSE OS TEXTOS DA EDIÇÃO:

EDITORIAL: Eu adoro, tu adoras, eles adoram…

O espírita perante Deus, por Miguel Vives y Vives (in memoriam)

Precisamos nos afastar de deus-es, por Marcio Cardoso

Adoração, a Lei, por José Fleuri Queiroz

Sobre a Lei Natural e a Lei de Adoração, por A. C. Amorim

Religião e Adoração, por Ary Lex (in memoriam)

Deus, uma necessidade, por Carmem Imbassahy

Crendices e Superstições, por Milton Felipeli

A cabeça das mulheres, por Célia Aldegalega

 

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