A diferença entre Religião e Religiosidade, por Magali Bischoff

Tempo de leitura: 7 minutos

Magali Bischoff

Com certeza precisamos atentar para essas questões que tem levado o Espiritismo no Brasil a seguir caminhos “religiosos” demais fugindo da proposta de aproximar o Homem de Deus em seu sentido verdadeiro, e não criarmos mais uma religião que pode perder-se “na letra que mata distante do espírito que vivifica”, como fez o Protestantismo, uma esperança de renovação para a época em que ele surgiu.

A decisão de nos distanciarmos da religião que cega, oprime e conduz o Homem à ignorância deve prevalecer nos homens em que a razão é desenvolvida. O que não podemos jamais esquecer é que o sentimento de “religiosidade” não deve se afastar da prática na vida do homem, pois se isso acontecer, ele perde a noção de quem é, do que está fazendo aqui e todos os seus valores desaparecem com seus atos, torna-o “des-Humano”. A prática da Religiosidade e da Religião são coisas absolutamente distintas e não devem ser confundidas de forma alguma. A primeira independe da segunda, e a segunda lamentavelmente pode também ser encontrada divorciada da primeira. Religião é sempre instituição, acordo social, edifício teórico, organização hierárquica, atividade política. Religiosidade é o sentimento maior (inato), a fé praticada, a posição mais íntima, a intuição do mistério.

Herculano Pires esclarece que esse sentimento se estrutura na consciência humana, no ser em evolução, sendo que a marca de Deus ali está presente na Lei de Adoração, que é o sentimento inato de sua filiação Divina e se manifestará no sentimento religioso, base de todas as experiências religiosas da Humanidade. Ele diz ainda: “A vivência religiosa, pelo simples fato de ser vivência e não reflexão é inerente ao Homem desde o seu aparecimento no Planeta”. A experiência de Deus que começa no “Fiat” como elemento ontogenético (elemento constitutivo da própria gênese do homem) difere da religiosa, que constituem uma tomada de tentativa de consciência de Deus através de formulações religiosas, rituais, Instituições, sistemas litúrgicos, ordenações dogmáticas. Reforça ainda, conceitos sobre a Trindade Universal, espírito e matéria elementos constitutivos do Universo e Deus o poder criador, onisciente, controlador e mantenedor, e Suas Leis que regem o equilíbrio universal.

Em seu livro “O espírito e o tempo” com base no esquema chamado “método cultural” dos antropólogos ingleses, aplicado por John Murphy, com pleno êxito em seus estudos sobre as origens e a história das religiões, Herculano nos deixa um verdadeiro tratado de antropologia espírita. Faz uma viagem pelos “horizontes” percorridos pelas Civilizações desde as eras remotas, retratando com clareza o processo de conscientização do ser em evolução e de sua essência Divina, demonstrando que não estamos sozinhos nesse processo cíclico e Universal. Herculano, com essa obra magnífica, permite entre tantos outros conhecimentos, compreender em profundidade a questão 628 do livro dos Espíritos, que não podemos negligenciar nenhuma religião, pois ela pode contribuir muito com a nossa instrução, se estudarmos o que há de bom nelas, conhecendo o poder de influência que teve em nossos caminhos evolutivos e que persistem até os dias de hoje.

Os cientistas da Religião dizem que no Brasil, o fenômeno de sincretismo religioso em comunhão com três culturas fortemente calcadas na mística fez com que os elementos formais de cada uma das três culturas fundissem em uma interpretação comum do sagrado. Assim como o africano, o indígena possui uma visão bastante espiritualista do mundo. Ambos se enxergam imersos num universo vivo, dinâmico de forças espirituais e elementais, diante das quais os ritos e a fé são imprescindíveis mecanismos de ação concreta do homem no mundo. Por conta disso a religiosidade que se desenvolveu aqui é por assim dizer, imune à depreciação do sagrado que o ceticismo enseja. Mais do que em qualquer outro lugar, a palavra de Herculano Pires é válida: O ateísmo é flor de estufa, incapaz de viver fora do laboratório e dos círculos mais alienados da vida natural. Embora a religiosidade do brasileiro respeite os dogmas e o arcabouço teórico das instituições religiosas este respeito é, por assim dizer, um respeito de conveniência.

Assim que o sacerdote de uma igreja se mostrar ineficiente no consolo espiritual ou nas funções efetivamente místicas de seu rebanho ele será substituído pela benzedeira, pelo pastor, pelo médium ou pela mãe de santo. Se algum destes novos orientadores espirituais mostrarem-se mais eficaz no trato com os arcanos o padre será substituído, ou algo ainda mais estranho, será relegado a uma posição social enquanto a importância espiritual será transferida para o novo intermediário. O indivíduo irá à missa, mas não depositará suas esperanças maiores nela. No momento crucial recorrerá ao novo “representante” das forças celestes.

A grande maioria exerce a sua religiosidade com muito mais força do que a imposição religiosa em si. Basta ver as estatísticas de “fuga dos adeptos das religiões” que cresce dia a dia. As pessoas estão em busca de respostas e de soluções para seus diversos problemas, e se não encontram na religião escolhida, buscam outra que os satisfaça. E olha que tem grupos muito bem preparados para estudar os “desejos mais profundos de seus adeptos” e muitos criaram vários “serviços” para satisfazê-los e não os perder para outras denominações religiosas. Se o espiritismo vem de encontro às respostas de tantas aflições humanas porque será que nosso “público alvo” (como denominamos), anda diminuindo tanto?

Apesar de a mídia ter feito por nós uma propaganda em massa nos últimos anos, a favor dos conceitos espíritas e espiritualistas, por vezes até equivocados, o número de pessoas que buscam esse conhecimento não cresce tanto quanto o número de evangélicos e de igrejas pentecostais. Pior! O movimento espírita tem relatado que diminuiu o número de voluntários e trabalhadores nas Casas espíritas, que não conseguem manter as portas abertas todos os dias em todos os horários da semana com atendimentos diversos. No momento não estão preocupados em identificar quais são as reais necessidades daqueles que batem à sua porta e acabam oferecendo um atendimento padrão (salvo algumas exceções em diversos Estados e até em alguns países), alguns acabam fazendo um verdadeiro desserviço à Doutrina espírita.

Entre os seus adeptos e frequentadores existem diversos problemas de relacionamento, como em todos os lugares, principalmente nas grandes Instituições representativas do movimento, com isso surgiu a necessidade de sermos “afetivos”, nasceu o termo” alteridade”. Cresce o convite para viver o Evangelho tão bem “pregado” e tão pouco “sentido”, é o momento de aliar o conhecimento a prática. Talvez isso aconteça por que os excessos de religiosismo estão sufocando o sentimento natural e espontâneo da religiosidade devido a um grande número de almas ligadas à religião dogmática, estarem reencarnados no Brasil e com tarefas importantes no movimento espírita Brasileiro, segundo informações dos espíritos. Que desafio!

Com certeza precisamos atentar para essas questões que tem levado o Espiritismo no Brasil a seguir caminhos “religiosos” demais fugindo da proposta de aproximar o Homem de Deus em seu sentido verdadeiro, e não criarmos mais uma religião que pode perder-se “na letra que mata distante do espírito que vivifica”, como fez o Protestantismo, uma esperança de renovação para a época em que ele surgiu.

No livro “Agonia das Religiões” Herculano diz que o místico vulgar não mergulha em si mesmo para encontrar em Deus a relação com o mundo como fez Descartes, mas pelo contrário, desliga-se do mundo e liga-se isoladamente a Deus. Não é guiado pelo amor à Humanidade, mas pelo amor a si mesmo. A busca solitária de Deus torna-se um ato egocêntrico. Que a concepção espírita vai mais longe e mais fundo, negando ao homem o direito de isolar-se do mundo para buscar Deus. O meio natural de evolução para o homem, para todos os seres é a relação… (Lei de Sociedade): “[…] enquanto Buda abandona o mundo para buscar Deus na solidão, Cristo mergulha no mundo para religar os homens à Deus”.

Daí o fato de a migração entre Religiões ser tão comumente aceita no Brasil, enquanto a fidelidade à instituição é sempre primordial na Europa, no Islã, na Ásia oriental. O Brasil está imunizado a guerras religiosas justamente pelo fato de que a religião aqui é algo pouco valorizada, pouco significativa, em face da religiosidade mais universal e mais profunda que se manifesta nesta população.

Herculano afirma ainda, que a etiologia da decadência das religiões torna-se palpável, mas o sentimento religioso do Homem não foi aniquilado. “Hoje, muitos dizem que o caminho é a Educação, mas devemos lembrar também que a Educação “leiga” do ensino Laico, frustrou a possibilidade de reelaboração da experiência religiosa pelas novas gerações e determinou a sedimentação interesseira da sua posição de ambivalência no mundo contemporâneo. Como não podia deixar de acontecer, essa posição ambígua, indefinida e contraditória em si mesma, levou a proporções catastróficas a crise das religiões em nossos dias.” (palavras de Herculano no livro “Agonia das religiões”).

Kardec bem sabia disso e aborda o tema Educação por diversas vezes em suas obras, colocando-a como fundamental. Uma Biografia de Kardec, escrita por Zeus Wantuil, no volume II, mostra claramente o trabalho árduo que Rivail enfrentou em seus 30 anos dedicados à Educação, para romper com a interferência religiosa no campo do conhecimento, os homens se afastaram do sentimento de religiosidade, formando a sociedade sem moral que temos hoje. Nos trabalhos realizados por Jean Jaques Rousseau em “Emílio” (um ensaio pedagógico na forma de romance), vemos a preocupação em tirar o peso da Religião Dogmática da Educação, mas sem deixar de trabalhar o sentimento de religiosidade (essência espiritual) da natureza Humana, e viver a Educação Natural, fundamental ao processo de educação e desenvolvimento de valores Humanos. Pestalozzi bebeu desse conhecimento e Rivail também. Precisamos rever nossos conceitos de educação urgente. Seria muito bom se os educadores de hoje tivessem acesso não somente à pedagogia e a didática dos grandes educadores, mas à essência dos seus estudos que levariam fatalmente ao amadurecimento da consciência humana para encaminhar o Homem às consequências do conhecimento espiritual, a sua efetiva transformação moral!

Em 2000 demos início a uma nova Civilização, a Civilização do 3º Milênio ou a Civilização do Espírito. É o período onde a teoria e a prática estará integrada, o anseio latente de transcendência será preenchido. Herculano diz que é necessário que ele viva em si todo o conhecimento, na consciência e na carne, pois é nessa (na carne) que a relação com o mundo se realiza. Na questão 625, de “O livro dos Espíritos”, os espíritos deixam um modelo a ser seguido, seus atos falam por si, ele é Jesus. As Civilizações experimentaram períodos de Sombras e de Luz, e os seres que nela habitaram após percorrerem esse longo caminho, fatalmente encontrarão a “síntese do conhecimento, o caminho para o novo Céu e a nova Terra, lembrando do que disse Jesus:” Os mansos e Pacíficos, herdarão à Terra”, então ela não desaparecerá como acreditam alguns mais assustados diante de tantas versões escatológicas do final dos tempos. Chegará sim o fim da Ignorância para toda a Humanidade e a Era do Espírito virá com a força da Lei do Progresso e nos resta curvar-se a ela.

Acesse cada texto da edição:

E D I T O R I A L: Religião? Entre a fé e a razão

O conceito de Religião, por Carlos de Brito Imbassahy

A diferença entre Religião e Religiosidade, por Magali Bischoff

Uma Religião Espírita?, por Sergio Maurício

Espiritismo Laico ou Religioso?, por Eliseu F. Mota Jr.

O Espiritismo no contexto das “novas” Religiões, por Paulo R. Santos (in memoriam)

Espiritismo e Misticismo na Religião Espírita Brasileira, por Marcelo Henrique

O Espiritismo e a Religião dos Espíritos, por Wilson Garcia

O Espiritismo e a Religião, Milton Medran Moreira

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