O Espiritismo e a Religião dos Espíritos, por Wilson Garcia

Tempo de leitura: 7 minutos

Wilson Garcia

Bate-se contra toda uma tradição semântica do termo religião, tornando inócuos os esforços, de Kardec até aqui, para a redefinição da palavra. Os adeptos do aspecto religioso compreendem a necessidade do desenvolvimento de uma outra consciência: a consciência de uma religião científico-filosófica, onde razão e fé signifiquem signos complementares um ao outro, mas isso implica o estabelecimento de uma nova experiência social, capaz de fornecer os elementos fundadores de uma nova e convincente cultura.

O pensamento de Herculano Pires não pode ser analisado, em profundidade, nos estreitos limites de uma argumentação opinativa. Por mais que tenhamos, do seu pensamento, um bom domínio e mesmo que sejamos possuidores de uma visão histórica da obra construída por Herculano, considerar o seu pensamento a partir de excertos textuais significa, no mínimo, reduzir o debate ao domínio do incompreensível, porque sob o suporte tão-somente do meramente opinativo. Herculano precisa ser contextualizado, duplamente: como homem em seu tempo e como pensador no conteúdo do seu discurso. Sem isso, ficamos à mercê das possibilidades inumeráveis de interpretações descoladas da realidade social e dominadas pelo fundo emocional que forçosamente prevalecerá.

A temática da religião espírita está presente em Herculano Pires sob duplo enfoque: o do caráter da religião, definido pelo raciocínio filosófico, e o das práxis, onde a religião espírita se revela e se afirma como tal. Ao trabalhar os dois ângulos da questão, Herculano compreende a importância de uma análise que demonstre o ser e o não ser religião o Espiritismo, tanto para ele próprio se localizar com clareza, quanto para definir o lugar da religião no espiritismo brasileiro. A questão principal, portanto, de uma discussão piresneana da religião espírita não é tanto o que se ajusta ao seu pensamento, senão o que este pensamento de fato estabelece em termos da religião espírita. Assim, qualquer tentativa de definir a questão que não considere esses dois ângulos fica fadada ao fracasso ou à distorção.

A religião espírita, para Herculano, tem um caráter dual: é científica pelo fato de estimular o raciocínio lógico sobre os fenômenos espirituais, e é filosófica como busca incessante de explicação da vida, da natureza e do ser. A síntese dessa afirmação, presente em diversas obras onde aborda o tema, pode ser vista nesta sentença: “O Espiritismo é a Ciência do Espírito e de suas relações com os homens; dessa Ciência resulta uma Filosofia e dessa Filosofia as consequências religiosas do Espiritismo, que constituem a Religião Espírita”. Apesar do reducionismo contido na frase, com ela Herculano resolve o seu lugar em relação à religião espírita, ou seja, a religião é vista por ele como subsidiária da ciência do espírito que o espiritismo é, na contramão, portanto, do conceito moderno de religião, pois, tradicionalmente, a religião possui funções específicas e é dotada de características próprias como crença e fé que se manifestam através de ritos e símbolos. O conceito de uma religião dotada de valores científicos surge formalmente apenas com o Espiritismo, não sendo, portanto, crível falar de espiritualismo científico antes de 1857.

Nestes termos, tomar o espiritismo como ciência da qual emerge uma filosofia que possui consequências e dar a estas consequências o caráter de religiosas tem, em princípio, o mesmo significado atribuído por Kardec, em um primeiro momento, de consequências morais. A questão se assenta tão-somente na escolha de um termo. O desenvolvimento do raciocínio conduz a esta conclusão, como se verá. Argumentar-se-á que a opção de Kardec pelo termo “consequências morais” incide na sua concepção de um Espiritismo não-religião, uma vez estar ele convicto disso. Mesmo que se possa provar ser isso verdadeiro, não implica considerar haver Herculano se inserido na direção contrária de Kardec ao assumir como conveniente as “consequências religiosas”, a menos que se possa demonstrar que consequência religiosa aqui não é de fato um sinônimo de consequência moral. Não nos parece ser isso possível, pois, ao longo de sua argumentação e, especialmente, no decorrer de sua análise sobre o lugar da religião espírita, Herculano não só vai definir e caracterizar este lugar como, em definitivo, vai estabelecer o seu próprio lugar, ou seja, onde ele próprio se situa em termos de compreensão do que seja a religião espírita.

O centro espírita como lugar privilegiado
O lugar da religião espírita é, indiscutivelmente, o centro espírita e Herculano tem isso tão presente que emprega muito mais esforços para caracterizar criticamente a não-religião espírita que, propriamente, para explicar a religião, pois é na negação da religião que brota da práxis espírita que entende poder obter maiores e melhores resultados, em termos analíticos.

A luta de Herculano Pires e vários outros pensadores pela afirmação da religião espírita esbarra em uma grande dificuldade: bate-se contra toda uma tradição semântica do termo religião, tornando inócuos os esforços, de Kardec até aqui, para a redefinição da palavra. Os adeptos do aspecto religioso compreendem a necessidade do desenvolvimento de uma outra consciência: a consciência de uma religião científico-filosófica, onde razão e fé signifiquem signos complementares um ao outro, mas isso implica o estabelecimento de uma nova experiência social, capaz de fornecer os elementos fundadores de uma nova e convincente cultura.

A impossibilidade disso não é apenas material, senão porque não há condições reais de realização. Uma nova cultura da religião é algo para se colocar no nível da utopia, ou seja, não se deve perder o horizonte da esperança, entendendo, porém, que a práxis do Espiritismo, neste século e meio de transcurso de sua afirmação social no Brasil, reduziu em muito a possibilidade de uma simples consideração a respeito. Uma experiência religiosa sem cultos, ritos específicos, com fé suportada pela razão, com valores místicos reduzidos ao que pode ser explicado, sem mistérios insondáveis e sob a noção de um criador desvinculado dos limites humanos, é experiência coletiva ainda inédita na história.

A análise das condições reais do lugar da religião espírita pode ser abordada pelo viés descritivo e pelo viés da crítica objetiva. Herculano utiliza os dois, com ligeira preferência pelo segundo, como forma de afirmar o verdadeiro lugar, pois desvalorizando o real, valoriza o utópico. Para tanto, toma o centro espírita como a representação do templo naquilo que ele de fato reproduz na prática da religião: os comportamentos estereotipados, formais: “Os espíritas […] que na sua maioria refugiaram-se num beatismo de sacristia – estão intimados a alijar dos ombros as cargas do misticismo igrejeiro”. Como observador participante de uma dada situação cultural, Herculano infere analogias que se apresentam para ele como óbvias: “Os beatos das religiões dogmáticas trocaram de pele mas não perderam suas manhas. Substituíram os ritos católicos pelos passes e preces, a água benta pela água fluídica e os rosários de repetições medrosas pelos colares de contas de ifá, na magia primitiva das religiões mágicas da selva, negras e indígenas”. Assim, o lugar da religião espírita é, de fato, o lugar da não-religião, da reprodutibilidade de práticas que deveriam estar superadas pela nova racionalidade científico-filosófica que demanda uma nova consciência para a qual não há espaço na subjetividade, no sujeito da prática. Trata-se de um efeito cuja causa é vista por conta da “[…] domesticação católica e protestante [que] criara em nossa gente uma mentalidade de rebanho. O centro espírita tornou-se uma espécie de sacristia leiga em que padres e madres ignorantes indicavam aos pedintes o caminho do céu”.

Nesta linha crítica à não-religião que domina o espaço do centro espírita, a referência piresneana é para o “igrejismo salvacionista”, a “idolatria mediúnica”, os “pregadores santificados”, os “maneirismos”, o “artifício do refinamento social”, tudo isso em oposição à “virilidade espiritual” que o espiritismo propõe como nova forma de relacionamento com a espiritualidade, resultante das consequências naturalmente emanadas da filosofia espírita. É o reconhecimento de que a práxis impõe uma realidade que não pode ser, segundo Herculano, olvidada: o Espiritismo, como sistema social, se define dia a dia pela aceitação de uma forma de religião conflitante com a ciência do espírito, porém em acordo com o sentimento daqueles que constroem o centro espírita.

O que move Herculano a combater a não-religião é a adesão prática às formalidades da religião tradicional, materializada no cotidiano do centro menos por uma ritualidade ostensiva e mais por um comportamento de conteúdo semelhante. O vazio criado pela distância entre a não-religião, que ele classifica como “igrejificação do espiritismo”, e a religião científica, presente na “fé raciocinada”, deve ser preenchido pela análise desse conflito entre as duas formas de manifestação do sentimento humano. Só ela lhe parece capaz de superar as divergências e corrigir as consequências de uma prática que se manifesta, cada vez mais, incapaz de uma ruptura cultural.

Herculano e o seu reconhecimento pela Cepa
O lugar da religião espírita e o lugar de Herculano Pires são, por assim dizer, espaços distintos de um mesmo universo: o Espiritismo. Herculano é por um Espiritismo-religião, mas, evidentemente, não coloca a religião no mesmo lugar que o consenso espírita resultante das práxis do cotidiano coloca. Trata-se de uma distinção fundamental, uma vez que se deseja (re)afirmar a posição do conceituado pensador em relação ao tema. Resta saber se, no limite, a Cepa também pensa assim.

Seria ingenuidade teórica dizer que a Cepa concorda ipsis literis com a adoção do Espiritismo-religião proposto em Herculano. Não importa se a questão é de conteúdo semântico ou não. Resulta, todavia, necessário registrar que essa discordância não é nem total nem abrangente, a ponto de poder-se classificá-la como “irreconciliável”, como se tenta fazer. Não é total porque em boa medida as mesmas objeções colocadas por Herculano Pires à não-religião, ou seja, todos aqueles elementos formais da prática religiosa do cotidiano espírita que ele questiona são, também, apontados pela Cepa. Esta, porém, amplia a sua análise para os termos histórico-conceituais, onde entende residir a verdadeira razão para um Espiritismo não-religião. Opta, portanto, pela adoção das “consequências morais” em lugar das “consequências religiosas”, sendo, porém, injustas, as tentativas de acusá-la de desejar eliminar Jesus do Espiritismo, o que só ocorre por conta de um certo fanatismo que Herculano, vigorosamente, diz não haver lugar mais no mundo contemporâneo. Pode-se e deve-se discordar da Cepa, mas não se podem desconsiderar suas razões nem desconhecer seus argumentos.

Outra ingenuidade seria entender que o Espiritismo de Herculano Pires se reduz apenas à temática da religião, ou seja, uma discordância neste aspecto significaria um conflito abrangente a todo o seu pensamento. Seria enfadonho elencar aqui o universo temático de sua obra de quatro dezenas de livros, bastando lembrar que abrange, da teoria à prática, as principais áreas do conhecimento humano. Somente o desejo absurdo de colonizar o autor pode gerar a suposição de que o melhor intérprete dele é aquele que se pretende seu proprietário.

Ao decidir-se por Herculano Pires para patrono do seu evento internacional, a Conferência 2002, a Cepa assumiu o ônus do risco que essa decisão continha, ou seja, sabia que o pensador brasileiro diverge da instituição em um ponto importante da sua ideologia, divergência que não poderia ser subtraída. Mas, o risco tem o seu contrário e este está presente exatamente ali, onde a honestidade intelectual se faz exigente: há um reconhecimento pela Cepa da particularidade conflitual, ao mesmo tempo em que há um outro reconhecimento, de igual valor, pela obra total de Herculano Pires, por sua importância em nível brasileiro e internacional. Assim, a Cepa deu-nos um exemplo, alterando a ordem natural das coisas na prática do cotidiano espírita: fez da diferença e da convergência entre o seu pensamento e o pensamento de Herculano Pires duas boas razões para unir os homens num espaço comum de entendimento e fraternidade. Em lugar de fazer da diferença razão para exclusão do contrário, a Cepa utilizou-a para demonstrar que a ética se reafirma no respeito e se consagra na capacidade de amar, indistintamente.

Nota do ECK:
Artigo originalmente publicado com o título “Herculano e a Religião dos Espíritos”, no jornal Opinião e na Revista Espírita Harmonia (edição impressa).

Acesse cada texto da edição:

E D I T O R I A L: Religião? Entre a fé e a razão

O conceito de Religião, por Carlos de Brito Imbassahy

A diferença entre Religião e Religiosidade, por Magali Bischoff

Uma Religião Espírita?, por Sergio Maurício

Espiritismo Laico ou Religioso?, por Eliseu F. Mota Jr.

O Espiritismo no contexto das “novas” Religiões, por Paulo R. Santos (in memoriam)

Espiritismo e Misticismo na Religião Espírita Brasileira, por Marcelo Henrique

O Espiritismo e a Religião dos Espíritos, por Wilson Garcia

O Espiritismo e a Religião, Milton Medran Moreira

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