Uma Religião Espírita?, por Sergio Maurício

Tempo de leitura: 6 minutos

Sergio Maurício

O Espiritismo não é uma religião, já que não possui em suas características aquelas que possam dar-lhe essa definição, como visto acima. Diferente do movimento espírita, que desfruta de todas as características básicas apresentadas pelos estudiosos do assunto, e que, por conseguinte, enquadra-se perfeitamente nessa definição.

Um conhecido meu, não espírita, questionou-me sobre a condição de religião do Espiritismo, propalada pelo movimento espírita como uma de suas características básicas, em paralelo com seus aspectos científico e filosófico. Lembrei-me, então, que essa questão é comumente retomada na imprensa e nas casas espíritas, denotando um importante ponto para debates e esclarecimentos. Vi, certa vez, um orador espírita afirmar que se o Espiritismo fosse religião, não seria espírita, e outros que afirmam o inverso, que se interessam pelo Espiritismo por conta de seu aspecto religioso, esquecendo um pouco suas outras qualidades.

Meto-me, assim, numa controvérsia, não com a intenção de esclarecer, visto não possuir a verdade, mas para contribuir com minha opinião, mostrando, para tanto, as minhas razões.

O primeiro problema que enfrentei foi a definição de religião, pois como compreender a situação do Espiritismo sem antes compreender o que é religião? Resolvi consultar os clássicos da filosofia e da sociologia, que seriam os mais habilitados em resolver essa primeira questão. Apesar de ter consultado vários deles, acabei ficando com as definições colocadas por Émile Durkheim e Mircea Eliade, pensadores do séc. XX e especialistas no tema, que concordam com o fato de que a religião é basicamente caracterizada: 1) pela distinção entre dois mundos diferentes: o sagrado e o profano, sendo o sagrado mais importante que o profano; 2) por seus rituais, que “[…] são regras de conduta que prescrevem como o homem deve comportar-se com as coisas sagradas”, no dizer de Durkheim; e 3) pela reunião de seus adeptos em comunidades que seguem determinados comportamentos morais. Nesse último aspecto, Kant antecipa-se afirmando ser essa a principal característica de uma religião racional, que leve o homem à sua obra “mais difícil”, que seria a sua transformação moral, superando sua “tendência radical para o mal”.

Essa definição acima colocada, evidenciando as três características presentes em todas as manifestações religiosas, desde as mais simples e antigas às mais complexas e modernas, ampara a minha avaliação sobre o Espiritismo, demarcando sua situação como religião ou não, caso apresente todas essas características. Mas, nesse ponto, algumas características atribuídas às religiões já são abandonadas: a crença em deuses, por exemplo. Como bem afirma Durkheim, há religiões em determinadas culturas que são ateias, dentre elas, a mais conhecida é o budismo, motivo da deferência nietzscheana em sua obra O anticristo. Ressalto que o budismo aqui mencionado, o hinayana, é aquele ensinado por Buda, e não o budismo reformado, hindu ou tibetano, chamado mahayana. Portanto, a associação entre religião em suas manifestações concretas e o sempre citado verbo latino religare não passa de apelo do senso comum, pois há carência empírica no seu uso, o que Wittgenstein classificaria de jogos de linguagem.

Aqui será feito um necessário corte analítico: dum lado a análise do Espiritismo, doutro, a do que se popularizou chamar de movimento espírita. Apesar de este considerar-se representante daquele, suas propostas diferem em inúmeros pontos e a divergência de ideias alcança píncaros que permitem afirmar serem coisas bem diversas.

Primeiramente, coube-me avaliar se o Espiritismo distingue um mundo sagrado e um mundo profano. Apesar das colocações expostas na questão 84 de “O livro dos espíritos”, em que a resposta à pergunta “Os espíritos constituem um mundo à parte, fora daquele que vemos?” é afirmativa, para em seguida, na pergunta 85, ainda reiterar que o mundo dos espíritos é o principal na ordem das coisas, deve-se perceber o sentido dado a essas questões. Fora de contexto, aqui já estariam presentes as bases necessárias para a verificação da primeira característica. Todavia, esse mundo dos espíritos não difere do nosso mundo material, já que ele não é habitado por seres diferentes ou entidades transcendentes, como deuses, ninfas ou duendes, ele é habitado pelos mesmos indivíduos que viveram uma vida corporal.

Portanto, não há diferenças na essência daqueles que habitam esses mundos diferentes, são os mesmos indivíduos, apenas em condições de vida distintas.

O mesmo não se dá com o movimento espírita. Esse, apesar da aceitação dos princípios exarados nas obras de Kardec, por vezes somente na letra, age de forma bastante diferenciada. Os espíritos que habitam esse “mundo à parte”, passam a ser em muitos casos semideuses que devem ser adorados e venerados. O respeito a essas entidades incorpóreas chega a tal grau que se é proibida a contestação ou argumentação, cabem apenas a reverência e a fé, ou seja, perderam a sua humanidade, principal proposta do entendimento desse mundo por parte do Espiritismo kardecista. Aqui, então, há verdadeiramente dois mundos distintos em substância e em personagens, o que faz o movimento espírita cumprir plenamente a primeira das características religiosas.

Em seguida, avaliei a existência de rituais no Espiritismo, o que seria, inicialmente, um ponto fora de conflito, pois é sabida a pregação espírita da ausência de rituais. Mas entre o discurso e a prática, há sempre um hiato que cabe ao estudioso debruçar-se.

Voltando às definições dos clássicos, entende-se que ritual ou culto “[…] não é simplesmente um sistema de signos pelos quais a fé se traduz exteriormente, é o conjunto de meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente. Quer consista em manobras materiais ou em operações mentais”, como afirma Durkheim. Portanto, uma prece é um ritual, uma evocação mediúnica é um ritual, desde que feitas com o intuito da prática da fé, com sua afirmação periódica, pois coincide exatamente com o conceito acima, que não reduz a definição de ritual a práticas materiais, como sói acontecer entre nós espíritas. Mais uma vez a diferença entre Espiritismo e movimento espírita é evidente.

Enquanto o Espiritismo não propõe a prece ou suas reuniões como motivos de reafirmação periódica da fé, e sim como algo espontâneo e sem nenhuma formalização, como exercício de aprendizado e de relação com os espíritos, sem necessidade sequer duma participação efetiva em grupos ou de periodicidade nesse contato, o movimento espírita trilha caminho bem diverso, pois ritualizou preces e reuniões da forma mais objetiva possível, fazendo-as formais com tempo determinado, formas específicas e material sacralizado, como se pode ler nas diversas obras que se tornaram clássicas entre os participantes desse segmento.

Alguns já chegam ao extremo de consagrar sacramentos em casas espíritas, como as atuais cerimônias de casamento.

Finalmente, a última questão é a menos problemática, pois é o próprio Kardec quem propõe a necessidade da comunhão dos espíritas em uma comunidade – como se vê nos seus escritos póstumos e na “Revista Espírita” –, reconhecendo, inclusive, os verdadeiros espíritas pelo esforço na sua transformação moral. E, aqui, ambas as posições são coincidentes.

Nesse ponto, concluiria que o Espiritismo não é uma religião, já que não possui em suas características aquelas que possam dar-lhe essa definição, como visto acima. Diferente do movimento espírita, que desfruta de todas as características básicas apresentadas pelos estudiosos do assunto, e que, por conseguinte, enquadra-se perfeitamente nessa definição.

Faltaria, entretanto, uma última análise: a opinião de Kardec sobre o tema. Primeiramente lembro o clássico artigo publicado na “Revista Espírita”, de dezembro de 1868, intitulado “O Espiritismo é uma religião?”, pois nesse texto, Kardec declara não ser o Espiritismo uma religião, por não possuir os caracteres das religiões tradicionais, como as cerimônias e os sacerdotes. Todavia, afirma ele nesse mesmo texto: “[…] o laço estabelecido por uma religião é um laço essencialmente moral, que liga os corações, que identifica os pensamentos, […]. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre os que ele une, […] a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. […] Se assim é, perguntarão, então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores; no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião”. Kardec é bem claro em sua opinião ao possibilitar que o Espiritismo seja considerado uma religião apenas em seu aspecto filosófico, ou seja, por reunir em torno de seus princípios filosóficos os homens numa congregação de fraternidade e benevolência, para então concluir, após a afirmativa acima: “O Espiritismo, não tendo nenhum dos caracteres duma religião, na acepção usual da palavra, não se poderia, nem deveria ornar-se de um título sobre o valor do qual, inevitavelmente, seria desprezado; eis porque ele se diz simplesmente: doutrina filosófica e moral”.

Se tal clareza não for ainda suficiente para ilustrar a opinião de Kardec, resta apenas a citação de mais dois fragmentos da Revista espírita, o primeiro de maio de 1859, “Refutação dum artigo de L’Univers”, em que diz: “Seu [do Espiritismo] verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não de uma religião, e a prova disso é que conta, entre seus adeptos, com homens de todas as crenças, e que por isso não renunciaram às suas convicções […]. O Espiritismo repousa, pois, sobre princípios gerais independentes de todas as questões dogmáticas. […] O Espiritismo não é, pois, uma religião: de outro modo teria seu culto, seus templos, seus ministros. […] Em resumo, o Espiritismo se ocupa com a observação dos fatos, e não com as particularidades de tal ou tal crença”. No segundo artigo, de julho de 1859, “Resposta à réplica do Sr. abade Chesnel, em L’Univers”, diz Kardec: “O Espiritismo, como eu disse, está fora de todas as crenças dogmáticas, com as quais não se preocupa; não o consideramos senão como uma ciência filosófica, que nos explica uma multidão de coisas que não compreendemos, e, por isso mesmo, em lugar de abafar em nós as ideias religiosas, como certas filosofias, fá-las nascer naqueles em que elas não existem; mas se quereis, por toda a força, elevá-lo à categoria duma religião, vós mesmos o empurrais para um caminho novo”.

É interessante ler Kardec afirmando que não será ele o criador duma nova religião, mas aqueles que tanto querem.

Portanto, a conclusão é indubitável: o Espiritismo não é uma religião, sob qualquer artifício sofista ou de interesse pessoal. Por outro lado, o movimento espírita é uma religião com todas as características inerentes a essa definição. Possui sua sacralidade, seus rituais, sacerdotes e tudo o mais que o faz uma religião com seu séquito de caracteres tradicionais.

Acesse cada texto da edição:

E D I T O R I A L: Religião? Entre a fé e a razão

O conceito de Religião, por Carlos de Brito Imbassahy

A diferença entre Religião e Religiosidade, por Magali Bischoff

Uma Religião Espírita?, por Sergio Maurício

Espiritismo Laico ou Religioso?, por Eliseu F. Mota Jr.

O Espiritismo no contexto das “novas” Religiões, por Paulo R. Santos (in memoriam)

Espiritismo e Misticismo na Religião Espírita Brasileira, por Marcelo Henrique

O Espiritismo e a Religião dos Espíritos, por Wilson Garcia

O Espiritismo e a Religião, Milton Medran Moreira

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