Jesus a porta, Kardec a chave?, por Natália Canizza Torres

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Natália Canizza Torres

Conforme “O livro dos Espíritos”, a autoridade reconhecida, que eram os “espíritos”, disseram que o melhor exemplo que pisou na Terra e serve de guia e modelo para a humanidade é Jesus Cristo. Os espíritas entendem, então, que precisam imitar Jesus e, com essa prática, eles estariam tornando-se os “verdadeiros cristãos”, como se o Novo Testamento interpretado pelas teorias do Espiritismo desse uma nova e verdadeira roupagem aos escritos bíblicos.

Introdução
Os principais trabalhos sociológicos sobre o Espiritismo têm como foco a migração desta religião da França para o Brasil, sendo o mais importante entre os primeiros, o de Marion Aubrée e François Laplantine (2009), o qual faz uma abordagem da realidade francesa do século XIX, caracterizada pelos chamados fenômenos das mesas girantes. Os autores mostram em que bases teológicas são assentadas a doutrina e quais consequências filosóficas ela apresenta, a partir da ideia de se reivindicar como a terceira revelação judaico-cristã. Os autores assinalam que o espiritismo busca conciliar suas bases cristãs com o pensamento iluminista. Chegando ao Brasil, segundo eles, o Espiritismo assumiu um caráter eminentemente de religião que professa a “fé racional”, afirmando que os espíritos estudados por Kardec mostraram uma revelação para o Brasil e o mundo do projeto de Jesus Cristo de divulgação do Evangelho. Aubrée e Laplantine (2009) entendem que um exemplo desta reconfiguração do espiritismo no Brasil é representada pela imagem dos centros espíritas enquanto unidades religiosas que promovem os “cultos espíritas do Evangelho”. Nesta chave interpretativa, os centros espíritas teriam sim rituais e seu espaço seria sagrado, no sentido de que certos tipos de comportamentos não são tolerados em seu âmbito.

Posteriormente, Célia Arribas (2010) também realizou um trabalho histórico-sociológico a respeito da chegada e enraizamento do Espiritismo no território nacional do século XIX, propondo uma abordagem pautada na afinidade eletiva weberiana e na teoria bourdieusiana para entender as facetas que esta nova proposta assumia no Brasil. Foi avaliado o modo como o espiritismo assumiu sua faceta religiosa no Brasil por meio da constituição do campo religioso brasileiro e também da influência dos capitais sociais dos principais divulgadores.

O Espiritismo também foi estudado a partir de sua cosmovisão por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (1983). A autora buscou entender, pela da abordagem antropológica, o Espiritismo como sistema de crenças e práticas dentro do quadro de religiões mediúnicas. A partir deste eixo metodológico, investigou como a construção da noção de pessoa se apresenta para embasar a experiência mediúnica e de transe no Espiritismo. Também utilizou a análise do sistema ritual desta religião considerando que ele se apresenta de três formas: o estudo, a caridade e a mediunidade. Cavalcanti entende que o estudo, nos seus moldes de pesquisa experimental e racionalidade científica, se configura como um ritual. A autora afirma também que, ao se assumir como uma religião cristã, o Espiritismo mostra uma preocupação em se legitimar socialmente.

O Espiritismo como uma religião
Muitos dos que se debruçam sobre a história do Espiritismo no Brasil apontam a característica do seu estabelecimento como religião no Brasil e o embate simbólico entre lideranças, pela definição de uma orientação cientificista ou então religiosa desse conjunto doutrinário. Mais recentemente, na década de 1980, ocorreu o envolvimento de parte do movimento espírita com o universo da chamada Nova Era, sobremaneira através da publicação diversificada de livros. E, no período compreendido entre 2010 e 2017, ocorreu um grande crescimento espírita, sendo o impulso à difusão do estudo do Novo Testamento nesse meio algo desta década, pode-se inferir sua contribuição nesse processo. Algo a ser levado em conta é o fato de muitas pessoas irem a centros espíritas, mas não se reconhecerem como adeptas do Espiritismo. A ênfase no estudo do Novo Testamento, de algum modo, aproxima o Espiritismo do catolicismo e do protestantismo no espectro cristão, sendo um fator de contribuição para que a religião espírita seja mais assumida por seus simpatizantes, que, a grosso modo, deixam de ser católicos. Assim, os atuais grupos dedicados a estudos bíblicos, com ênfase no Novo Testamento, ou “Evangelho”, como seus integrantes preferem dizer, constituem uma nova prática espírita. De modo lento e gradual, tal prática parece tornar-se estrutural na religião espírita praticada no Brasil, com o cultivo do estudo bíblico. E isto, ao que parece, tem contribuído para o acentuado crescimento do espiritismo que vem ocorrendo na presente década. Ao direcionar suas práticas para o cultivo do Novo Testamento, o Espiritismo, sociologicamente, aproxima-se do catolicismo e do protestantismo. Antes, porém, cabe vermos alguns pontos a respeito de como essa religião desenvolveu-se no Brasil.

Em nossa pesquisa, buscamos compreender a disseminação de uma prática relativamente nova no Espiritismo brasileiro que o reafirma, não apenas como religião, mas sim religião cristã. Neste sentido, o Espiritismo tem sido pensado como religião cristã, não só pelo culto central a Jesus Cristo, mas também pela materialização do princípio da caridade em suas relevantes obras assistenciais (Souza; Simões, 2017). Embora as lideranças e os dirigentes institucionais neguem o caráter proselitista do Espiritismo, há crescente divulgação das atividades espíritas, sobremaneira através da Internet, abrangendo inclusive estudos bíblicos, algo que tem sido exitoso, conforme os dados estatísticos apontados. Ou seja, ainda que não de modo assumido por seus militantes, o fato concreto é que o Espiritismo compõe e disputa espaço e adeptos no mercado religioso (Berger, 1984). Esta pesquisa ancorou-se teoricamente também na perspectiva de campo religioso e do trabalho específico feito nele que é, evidentemente, também religioso (Bourdieu, 1989).

Configuração do campo religioso espírita brasileiro
O Espiritismo surgiu na França, em 1857, com a publicação, em Paris, de “O livro dos Espíritos”, de Allan Kardec. Argumenta-se no meio espírita que esse volume denota o aspecto filosófico da doutrina, sendo que o científico estaria na segunda e na quinta das obras publicadas por Kardec, respectivamente: “O livro dos Médiuns” (1861) e “A Gênese” (1868). O aspecto religioso (e também cristão) estaria no terceiro livro do fundador: “O evangelho segundo o Espiritismo” (1864), compêndio de trechos dos evangelhos canônicos compilados e comentados pelo fundador francês. A doutrina espírita, portanto, pretende ser a um só tempo: filosófica, científica e religiosa (Souza, 2018). Na França, bastante intelectualizada, seus primeiros adeptos debruçaram-se quase que exclusivamente sobre os dois primeiros traços (Aubrée; Laplantine, 2009), levando-se em conta que nos escritos de Kardec, “Obras Póstumas”, “Revista Espírita” e “O que é o Espiritismo”, ele afirma que o Espiritismo é uma ciência de efeitos morais.

Três anos depois da publicação do primeiro livro de Kardec, o Espiritismo chegou ao Brasil. Começou a ser desenvolvido no Rio de Janeiro a partir de uma colônia de franceses, tendo como marco a publicação, em 1860, do livro Les temps sont arrivés, de Casimir Lietaud, que era diretor do Colégio Francês. Além dele, Adolpho Hubert e Madame Collard, do Currier du Brésil, adotavam uma postura menos religiosa e mais intelectualista, bem como anticlerical. Com essa corrente, o Espiritismo não era visto como religião, mas sim como uma corrente de pensamento com traços filosóficos e científicos, sendo também seguido por militares que davam às ideias vindas da França um caráter evolucionista, mais precisamente positivista, condizente com o pensamento vigente à época. Assim como o momento em que o Brasil passava, às vésperas da promulgação da Constituição Republicana, o pensamento valorizador do Estado laico embasou o viés cientificista em contraposição ao caráter religioso do Espiritismo (Damazio, 1994; Aubrée; Laplantine, 2009; Arribas, 2010).

Mas havia sido Salvador a cidade onde o Espiritismo formou seu primeiro núcleo no Brasil, por iniciativa do jornalista Luís Olímpio Telles de Menezes, em 1865. Quatro anos depois, ele veio a lançar o primeiro periódico de divulgação doutrinária. Declarando-se católico, Telles de Meneses enfrentou embates com a igreja devido aos preceitos espíritas por ele propalados, sobremaneira a reencarnação e a comunicação com os espíritos de pessoas falecidas (Machado, 1983 apud Arribas, 2010; Damazio, 1994).

Entre o final do século XIX e os anos 1930, o Espiritismo já se mostrava presente entre as elites brasileiras e, conforme aponta Camurça et al. (2017), tais elites foram dividindo-se em grupos que deram suas ênfases próprias à prática espírita. Célia Arribas (2010), partindo de um estudo documental da produção literária e jornalística produzida pelos espíritas do século XIX, sistematiza a estrutura do campo espírita nascente no Brasil de início de República como um lugar de disputas pela definição ontológica daquele corpo de teoria que vinha da França. Pontua o fato de que o espiritismo foi bem recebido no Brasil, dada a forte influência que a cultura francesa exercia em diversas camadas sociais brasileiras, e assim, um corpo doutrinal com ares iluministas, filosóficos e também com referências no cristianismo não poderia deixar de chamar atenção da elite intelectualizada brasileira. Mas, como todo campo de disputas, este corpo doutrinal foi apreendido sob diferentes visões e práticas.

Formou-se o grupo dos científicos, que se interessavam pela fenomenologia espírita, aquela que praticava a mediunidade, a comunicação com os espíritos de pessoas falecidas, e não via nos livros de Kardec nada mais do que um corpo teórico pautado em metodologia científica. Tinham como uma referência Luiz Mattos, fundador do movimento Espiritismo Racional e Científico Cristão, existente entre 1910 e 1926 (Camurça et al. 2017). Mas, ao mesmo tempo, também foi formado o grupo dos que viam nesse corpo doutrinal uma religião pautada no cristianismo e que buscava conciliar-se com a racionalidade iluminista tão respeitada e valorizada (Arribas, 2010).

Por meio de reportagens, artigos e diversas publicações em jornais, boletins, revistas, etc., a disputa simbólica entre estas duas visões do espiritismo gradativamente formou sua cosmovisão, mas eventos históricos também contribuíram para que nesta disputa o aspecto religioso viesse sobressair. A proclamação da República em 1889 permitiu que o campo religioso brasileiro começasse a se se formar efetivamente, com o fim do monopólio oficial católico e a permissão para demais vertentes religiosas, sobremaneira cristãs, buscassem legitimação social e crescimento.

Junto com a República, veio o novo Código Penal, em 1890, o qual criminalizava as práticas chamadas de curandeirismo. Algumas atividades de centros espíritas foram enquadradas nesta categoria, pois promoviam a consulta com “médicos espíritos” os quais receitavam medicamentos homeopáticos – que tampouco eram permitidos – e doavam tais medicamentos aos pacientes. O tal curandeirismo envolvia toda prática de cura que não fosse exercida em consultório médico e que não fosse praticada por um profissional diplomado. Esta prática, dentro do centro espírita, era feita sem custo algum, o que gerou protestos e ações policiais contra alguns de seus praticantes (Giumbelli, 2003).

Segundo Maggie apud Giumbelli (2003), as condenações feitas aos espíritas recaía no aspecto moral, ou seja, se fosse possível provar que as práticas de cura nos centros espíritas eram feitas levando em conta o “bem”, ou seja, sem cobrança, e eram feitas sob a alegação da caridade cristã, não havia condenação nem encarceramento. Foi através desse argumento que os espíritas religiosos assentaram suas bases na produção de bens de salvação espíritas e trabalharam para conquistar cada vez mais adeptos. Para escapar do Código Penal, houve ênfase no aspecto religioso e benemerente do Espiritismo. O argumento da caridade cristã tornou-se o fator decisivo para livrar os espíritas de condenação judicial e perseguição policial (Giumbelli, 1997; Aubrée & Laplantine, 2009, p. 212-215; Arribas, 2010; Arribas, 2013). Na França, ao contrário, a ênfase acabou sendo filosófica e cientificista, tendo havido esvaziamento também em decorrência de fraudes (Aubrée e Laplantine, 2009).

Outro fator que contribuiu para que a batalha entre cientificistas e religiosos desse a vitória a estes foi a orquestração de características sociológicas que produziram um corpo simbólico religioso capaz de trilhar o caminho pelo qual o Espiritismo se expandiria. Segundo Arribas (2010), a ideia de salvação proposta, articulou um “ethos espírita”. Este ethos seria transformado numa ética espírita através da construção dessa visão de salvação específica. Tal salvação viria por meio do cumprimento de normas explícitas que comporiam a referida ética. Além disso, todo um linguajar emotivo, com vocabulário próprio e a construção de instituições de divulgação e vulgarização do Espiritismo reforçariam o lado religioso. Ou seja, bem mais do que motivações externas ao espiritismo, o que o levou a se definir como religião foi o trabalho religioso (Bourdieu, 1975) próprio destes agentes do sagrado que adequaram o espiritismo aos moldes de religião no Brasil. E é exatamente tal trabalho que esta pesquisa abordou: a atualização contemporânea do trabalho religioso cristão feito no século XIX. Trataremos disto, adiante.

Cabe dizer, no entanto, que para além de todo o trabalho religioso realizado pelas lideranças espíritas, o que também contribuiu para a concretização do Espiritismo como religião no Brasil foi o capital social acumulado por seus primeiros líderes. Eram professores, literatos, médicos, advogados, militares e jornalistas que davam à nova religião significativo status simbólico (mas, algo muito diferente do candomblé, caracterizado como religião de negros estigmatizados pela escravidão). O que ajudou também a popularizar o Espiritismo, para além dos círculos intelectualizados, foram as obras assistenciais difundidas e as práticas de cura de alguns médiuns. Atualmente, os indivíduos que se declaram espíritas, mas não reconhecem o caráter religioso do Espiritismo, têm como maior referência institucional a Confederação Espírita Pan-Americana – CEPA [hoje, CEPA Associação Espírita Internacional – nota do ECK], que defende a posição laica da doutrina (Souza & Simões, 2017; Arribas, 2017). Vejamos um pouco mais de onde vem o questionamento do Espiritismo como religião.

A controvérsia sobre a identidade religiosa do espiritismo teve início com Jean-Baptiste Roustaing. Advogado francês e contemporâneo de Allan Kardec, organizou o livro “Os quatro evangelhos” (1866), apresentando uma abordagem acentuadamente mística do Espiritismo (pois, na obra, é dito sobremaneira que Jesus Cristo não teria possuído um corpo físico e sequer teria nascido). O roustainguismo gerou grande controvérsia entre os adeptos da nova doutrina na França e, mais ainda, no Brasil da primeira metade daquele centenário (Damazio, 1994). Neste início do século XXI, ainda há resquícios de ruptura entre seguidores de Roustaing e os que consideram apenas as obras de Kardec.

Assim, foi no fim do século XIX, uma figura muito importante para o movimento espírita tomou a dianteira e capitaneou a guinada da FEB para a tônica religiosa. Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti, conhecido como Bezerra de Menezes (1831 – 1900) era médico, foi presidente da FEB em 1889 e de 1895 a 1900, além de deputado geral em 1867 e presidente da Câmara, cargo equivalente a prefeito do Rio de Janeiro, em 1880. Enquanto vinculado à FEB, contribuiu com o periódico Reformador (existente até hoje) em orientações religiosas, praticando assistência aos mais pobres com atendimento médico gratuito, doação de roupas e alimentos e prescrição e doação de remédios. Tais atividades fizeram Menezes ficar conhecido no meio espírita como o “médico dos pobres” (Klein, 2012).

Por seu intenso trabalho religioso e caritativo, imprimiu à FEB um caráter predominantemente cristão (Arribas, 2010; Klein, 2012). Conforme relatam atualmente diversos militantes espíritas, a FEB, desde seu surgimento, teve ênfase religiosa, com destaque para Bezerra de Menezes e sua ênfase nos evangelhos. Mas essa linha direcionava sua prática para a interpretação dada por Jean-Baptiste Roustaing, autor que ainda gera controvérsia no seio espírita, dada sua discordância, em diversos pontos, com o posicionamento de Kardec.

O estudo do Novo Testamento pelos espíritas

Para compreender o que a apropriação do Novo Testamento significa no meio espírita brasileiro e também, de algum modo, no cenário religioso do país, cabe recorrer à contribuição teórica de Peter Berger (1984). Na esteira do pensamento de Max Weber (1991), Berger reflete sobre o processo de secularização, com foco na quebra do monopólio religioso e o surgimento – no contexto de pluralismo cultural – de um mercado religioso no qual os adeptos são disputados pelas diferentes instituições religiosas que buscam cada vez mais fazer-se atraentes.

O mercado religioso brasileiro é uma realidade social da qual o Espiritismo não pode se eximir e, embora negue discursivamente muitas vezes, procura também atrair e fixar seguidores. Isso ocorre também por meio da proliferação de palestras, cursos, seminários, entrevistas sobre o estudo do Novo Testamento, os quais são intensamente propalados em veículos de comunicação espíritas, do Youtube e das redes sociais. Interessou, nesta investigação, buscar entender como o produto “estudo bíblico” constituiu-se enquanto tal, em disputa interna com demais práticas existentes no segmento espírita e por quais jogos de poder eles vêm gradativamente ganhando adesão. Com isso, tem-se de novo os grupos que, historicamente, colocaram-se em disputa de poder nessa religião e, neste cenário, a atuação do grupo dos religiosos espíritas, que vem trabalhando para ganhar cada vez mais espaço e reafirmar o Espiritismo enquanto uma religião cristã.

Uma justificativa importante, que é apresentada para o estudo do Novo Testamento, é a de que, em “O livro dos Espíritos” (sobremaneira a questão 625), as respostas espirituais dadas a Kardec destacam a referência cristã do Espiritismo, dada a centralidade de Jesus Cristo nessa doutrina, considerada como algo fundamental. A prática baseia-se, principalmente na resposta à questão 625. É devido à fidelidade às obras kardecianas que os espíritas entendem a prática do estudo bíblico como um dever religioso. A justificativa é lógica, do ponto de vista da coerência com os escritos de Allan Kardec. Mais do que isso, com tal questão, entende-se que o Novo Testamento é a moral correta a ser seguida. Concebe-se ainda que Kardec levou-os a essa conclusão, sendo ele considerado a “chave” que abre a “porta”: Jesus. É dito claramente que a doutrina espírita não substitui os preceitos cristãos, mas sim auxilia a compreendê-los. Neste sentido, o grupo dedicado ao estudo do Novo Testamento teria certo destaque no movimento por entender que o estudo sistematizado e aprofundado “do Evangelho” é essencial para melhor viver a religião. É dito que o trabalho feito por Kardec em O Evangelho segundo o espiritismo foi “levantar a ponta de um véu”, que seria a “revelação” e, com esta nova prática, pretende-se levantar o véu inteiro, descortinar toda a “revelação”, que abrange a Bíblia e os livros do chamado Pentateuco Espírita.

A postura que os entrevistados apresentam frente à Bíblia e seu estudo, sempre foi de estar diante de uma literatura revelada. Isso porque os espíritas entendem que a revelação divina se mostra para a humanidade por meio de três momentos que se seguem de forma contínua: Moisés, depois Jesus Cristo e por último a obra de Allan Kardec. Portanto, os textos hebraicos antigos compõem este processo.

O entendimento espírita religioso sobre Jesus
A compreensão que os espíritas têm de Jesus e de seus ensinamentos também é relevante para este entendimento. Dada a centralidade da ciência, que se mostra presente nas filosofias surgidas no século XIX, os espíritas não poderiam entender Jesus Cristo como o Deus criador de todo o universo, mas sim, o governador espiritual do planeta Terra. Ao mesmo tempo, entendem que sua vida e, portanto, sua moral, não podem ser restritas a esse único planeta, interpretando que se trata de um Cristo, ou seja, conforme a etimologia grega desta palavra, “ungido por Deus”. A moral cristã, portanto, deve ser universal (Aguiar, 2016).

Deste modo, a importância de se entender a vida de Jesus Cristo como ensinamento e guia de uma moral elevada a ser seguida se mostra quando é entendido, na literatura espírita, que Jesus possui a centralidade e foi o “espírito mais evoluído que pisou na Terra”. Como continuação desta tradição de revelações, o Espiritismo seria uma tradução atualizada, em consonância com os princípios filosóficos e científicos atuais, que legitimaria a moral cristã (Aguiar, 2016). Por isso todo esse investimento em pesquisa da tradição hebraica.

Desta forma, a compreensão da decisão de tantos espíritas por aderir ao estudo e cultivo da Bíblia em suas atividades nos centros espíritas passa pela compreensão de como esta obra é entendida no imaginário destes militantes religiosos. Estes atores que se dedicam ao Novo Testamento não estão deixando de lado outros aspectos hegemônicos do espiritismo, mas sim adicionando algo novo. Isso é um fator de distinção dessas pessoas, que elas apresentam como algo a mais no meio espírita (Bourdieu, 2007).

O Espiritismo elegeu elementos do universo católico para compor sua identidade, sendo um exemplo disso a noção cristã de santidade, encarnada nas figuras de Bezerra de Menezes e Chico Xavier (Stoll, 2002; Lewgoy, 2004). A apropriação do Novo Testamento mostra-se como outra forma de aproximação com o meio católico e, dessa vez, também com o evangélico.

É importante destacar o trabalho religioso de intelectuais espíritas, pois, segundo Arribas (2017), no Espiritismo, a base de constituição dos adeptos da religião é feita por meio da compreensão dos livros produzidos pelos indivíduos reconhecidos como autoridades. Eles não fazem parte de um clero estruturado, como existe em religiões mais tradicionais, mas são sim lideranças que exercem tanto autoridade quanto influência. Os intelectuais espíritas produzem não só livros, mas também material audiovisual francamente consumido. Com isso, propõem e reelaboram formas de crença, legitimam-se e exercem poder simbólico e institucional.

O mercado espírita
Pensar nesta aproximação de maneira sociológica implica em entender se os produtos vendidos pelo Espiritismo no mercado religioso brasileiro podem concorrer com os produtos vendidos no âmbito do protestantismo e pelo catolicismo. A medida de análise sobre os produtos comercializáveis espíritas passa pelo entendimento do que é comum a segmentos religiosos diferentes.

Tanto esforço de produção literária para direcionar o Espiritismo cada vez mais para o cristianismo pode ser compreendido quando se entende que, de acordo com as informações colhidas, essa doutrina é assimilada como a Terceira Revelação. Há, portanto, um projeto de continuidade entre a moral que veio desde a tradição mosaica e hoje o que é o Espiritismo. Parte de seus militantes entende que o movimento espírita deve debruçar-se sobre o Novo Testamento por conta da profunda identificação de que o Espiritismo passa cada vez mais a ter com o cristianismo e a nova face que Jesus Cristo passa a ter a partir desta nova prática no movimento espírita. As próprias palavras usadas denotam tal intenção. Os espíritas hoje entendem que têm uma chave importante de acesso à moral considerada ideal para a humanidade e que isso depende de um esforço intelecto-moral.

A proposta cristã do Espiritismo é reviver o cristianismo primitivo. Sendo assim, o desmerecimento da importância de estudo do Evangelho, nessa perspectiva, tornaria o espiritismo “um espiritualismo qualquer”. Portanto, a grande diferença que a doutrina espírita teria em relação às outras correntes espiritualistas é a firme referência na vida e ensinamentos de Jesus Cristo.

Convém pensar, portanto, no capital religioso mobilizado pelos que ditam o aspecto ortodoxo do Espiritismo. podem enquadrar-se no grupo dos ortodoxos, porque reforçam o caráter religioso e, ainda mais, direcionam-no para um Espiritismo cristão, porém também disputam entre si a hegemonia por meio do método de estudo. Eles entendem que a principal importância é resgatar o Evangelho é desenvolver o sentimento. Despertar a pessoa para “abrir seu coração” e voltar-se para os sentimentos estimulados por Jesus nas pessoas. E, nisto, não há qualquer referência a questões sociais foi feita, prevalecendo a interpretação de que as mazelas sociais, sobremaneira a injustiça e a desigualdade, acontecem em decorrência dos vícios e chagas de cada espírito individual.

Tais núcleos estão direcionados, assim, à valorização do culto a Jesus Cristo, mostrando que, nos trechos bíblicos, já bastante conhecidos, sempre existe um ensinamento moral e espiritual o qual coaduna e combina com o que já foi prescrito por Allan Kardec. Assim como também se esforçam para mostrar que Kardec, na elaboração de seu conjunto doutrinário, encontrou nas experiências de Jesus a mesma base moral encontrada nos espíritos com quem se comunicava. Houve um esforço dos especialistas do sagrado em mostrar que, naquele trecho evangélico já bem conhecido, o valor moral resgatado é o mesmo valor moral que existe no corpo da doutrina organizada por Kardec.

A vinculação das interpretações retiradas do texto bíblico sempre se faz acompanhar de uma lição moral que pode ser retirada de alguma questão de “O livro dos Espíritos” ou de “O evangelho segundo o Espiritismo”. A mudança gradual, entre a ideia de que para se ter uma orientação cristã, ou seja, para se afirmar como uma religião cristã, bastava estudar o livro de Kardec, volta-se para a nova concepção que o movimento espírita estrutura de que o conhecimento da Bíblia também é necessário.

O ethos cristão e a ética espírita no movimento religioso
O Espiritismo conseguiu transformar a natureza do sistema de disposições dos adeptos em relação à natureza e ao mundo social, como aponta Bourdieu (1989), transformando o ethos cristão em uma ética espírita. A pessoa de classe média, que tem elevada escolaridade, ou que incorpora o valor dos estudos e valoriza mais uma religiosidade ascética e extramundana, passa a ver no dever do estudo do Novo Testamento uma prática essencial por resgatar, pelo esforço do estudo quase erudito, os valores morais que asseguram-na o exercício de uma vida a qual, de algum modo, assemelha-se à de Jesus. Também pode-se perceber que a forma como tal salvação é estimulada – via estudo e a chamada reforma íntima – conforma muito com um ethos de classe dos espíritas.

Ao mesmo tempo que os espíritas também, talvez sem perceber, estabelecem uma diferenciação entre os bens de salvação, ou os produtos que estão vendendo nos mercados editorial e audiovisual, em relação aos produtos de outras vertentes religiosas, ao dizer que seus produtos são os capazes de resgatar o verdadeiro ensino do Cristo. Isso pode ser observado quando se reitera, pelas entrevistas, que a proposta do Espiritismo é nova porque se propõe não dogmática, sendo fiel ao texto bíblico.

Retomando a noção de que, conforme “O livro dos Espíritos”, a autoridade reconhecida, que eram os “espíritos”, disseram que o melhor exemplo que pisou na Terra e serve de guia e modelo para a humanidade é Jesus Cristo, os espíritas entendem que precisam imitar Jesus e, com essa prática, eles estariam tornando-se os “verdadeiros cristãos”, como se o Novo Testamento interpretado pelas teorias do Espiritismo desse uma nova e verdadeira roupagem aos escritos bíblicos.

Ser espírita hoje em dia não é apenas estudar a obra de Kardec, é buscar conhecer mais o que fez propor Jesus Cristo, sendo que isso está nos textos bíblicos. Retomar a Bíblia está sendo assimilado como um dever do espírita, assim como atuar ou “trabalhar” no centro, assistir palestras, aplicar ou tomar passe, fazer o culto do Evangelho no Lar.

Reivindicando para si o título de cristão, o espírita abre possibilidade para dialogar com as demais vertentes cristãs do Brasil. Tomando para si o conhecimento da Bíblia, a possibilidade de aumentar o diálogo inter-religioso torna-se evidente. Outro desdobramento também é a possibilidade de que pessoas que não se declaram, no censo, espíritas porque consideram sua “primeira” religião o catolicismo, ou pessoas que se declaram sem religião por que não encaram o espiritismo como tal, podem ver nesta prática uma possibilidade de afirmar definitivamente sua filiação à essa vertente religiosa. Talvez essa nova prática no âmbito desse segmento religioso possa estar relacionada ao aumento no número de declarantes espíritas no levantamento realizado pelo Datafolha, 2017.

Considerações Finais

O movimento de reafirmação do Espiritismo enquanto religião no Brasil deve-se ao trabalho religioso de seus protagonistas do sagrado, que são militantes bastante intelectualizados. Fizeram esse trabalho tratando como óbvio os preceitos evangélicos. Trabalharam montando congressos e demais eventos com a temática evangélica, criaram grupos de estudo institucionalizados, criaram meios de divulgação por meio de gravação dos estudos (muitas vezes feitos por uma única pessoa, mas que, ao divulgar via internet, permitia o acesso a milhares), com a criação de canais no Youtube, sites na internet com mecanismos de streaming pagos, semelhante a um Netflix.

Os espíritas, a todo tempo, buscam aproximar-se do cristianismo por meio de suas práticas de culto, cada vez maior, a Jesus Cristo e pelas obras assistenciais, mas ao mesmo tempo buscam também diferenciar-se pelo discurso de realizar um estudo bíblico destituído das interpolações teológicas que as grandes religiões incutiram na Bíblia através dos séculos. Assim estão demarcando uma diferença em comparação com as demais correntes cristãs.

Mas, há tensões ainda presentes no movimento espírita sobre tal tema. A reivindicação de verdadeiros cristãos entra em contraposição com uma diversa interpretação bíblica feita por outras correntes cristãs. Ao mesmo tempo, o discurso usado pelos coordenadores de grupos de estudo bíblico é de que eles pretendem fazer uma exegese neutra de dogmatismo e ritualismo, sempre recorrendo à uma racionalidade propalada por Kardec, porém essa prática também se diferencia e se distancia das correntes mais cientificistas do Espiritismo. Essas, por sua vez, não se mostram sempre como opostas ao caráter religioso do Espiritismo, mas buscam também olhar no Evangelho uma abordagem para problemas mais sociais, ao invés de buscar nesta fonte de moral uma condução somente para o âmbito privado da vida.

Os produtores de bens de salvação continuam sendo os mesmos, sociologicamente, que os produtores do final do século XIX, ou seja, um segmento social elitizado, que acumulou tanto capital religioso através da produção intelectual, quanto da prática da caridade assistencial, que continuam ocupando os mesmos espaços de poder da ortodoxia espírita, como as federativas estaduais, a nacional e os principais congressos e eventos. Calcados na relevância de Chico Xavier, e por consequência Emmanuel, continuam baseando sua prática religiosa numa visão cristã com base também nos textos bíblicos.

Mas uma pergunta que não pôde ser respondida no âmbito dessa pesquisa e que vale a pena ser pensada daqui pra frente, com mais tempo e profundidade, é o porquê do movimento espírita – não só os produtores de bens de salvação, mas os adeptos da base – direcionar-se para um certo tipo de evangelismo bem correspondente com um movimento que está crescendo nacionalmente. Nesta pesquisa pôde-se observar que o III Congresso Espírita Brasileiro e as produções de filmes e telenovelas espíritas, que surgiram a partir de 2010, foram os principais fatores que contribuíram para o crescimento demográfico espírita na segunda década do século XXI. Mas vale a pena fazer a contraposição, ou a comparação, entre esse movimento espírita de direcionamento e encaminhamento crescente em direção ao culto da Bíblia e a dinâmica nacional de crescimento das igrejas evangélicas, simultaneamente à diminuição do catolicismo. A coincidência, nessa década, entre a aceleração do crescimento espírita e a disseminação da prática de estudos bíblicos em seu meio suscita uma questão sociológica pertinente.

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Nota do ECK:
Adaptação da Dissertação defendida pela autora, para obtenção do título de Mestre em Sociologia, na Universidade Federal de São Carlos, em 2019.

Textos da edição

EDITORIAL: Jesus, entre o homem e o mito

Separar Jesus do Cristo!, por Marcelo Henrique

Jesus a porta, Kardec a chave?, por Natália Canizza Torres

Jesus e as verdades espirituais, por Carlos Antonio Fragoso Guimarães

Jesus e o Espiritismo pós-cristão, por Milton Medran Moreira

Jesus, um exemplo moral que permanece até hoje, por Paulo Roberto Santos (in memoriam)

O maior revolucionário de todos os tempos, por Reza Aslan

Jesus numa moto, por Manoel Fernandes Neto

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