Jesus e o Espiritismo pós-cristão, por Milton Medran Moreira

Tempo de leitura: 6 minutos

Milton Medran Moreira

É possível pensar o espiritismo sem a presença do cristianismo, da moral cristã ou essa corrente de pensamento está enraizada a tal ponto que se torna quase impossível pensar o espiritismo de uma forma não-cristã?

Temos de reconhecer que o próprio Allan Kardec estruturou toda sua proposta a partir da doutrina cristã. O Espiritismo é uma proposta científico/filosófica/moral com pretensões de universalidade, mas com sólidas bases cristãs. Sistematizado na França do século 19, seis décadas depois da Revolução Francesa, está impregnado do eurocentrismo cristão que marcara a formação de seu fundador, dos pensadores em que se inspirou e da maioria dos espíritos que acorreram a seu chamado para a grande interlocução da qual resultaria a doutrina espírita. Até então, o mundo que se entendia civilizado era o ocidental, cristão. A Europa ainda se mantinha de costas para toda e qualquer outra civilização. Olhava para a América como sua extensão, em processo ainda de colonização. Outras culturas, praticamente, não existiam para os europeus. A modernidade ali eclodira e as demais culturas não haviam sido por ela atingidas, segundo os europeus.

Apesar disso, os pressupostos científicos/filosóficos em que se baseia o Espiritismo são universais. A ideia do Espírito, de sua imortalidade, de sua comunicabilidade, está em todas as culturas, em qualquer latitude e em todos os tempos. As consequências éticas deduzíveis desses pressupostos também são universais, no sentido da liberdade, da igualdade, da tolerância, da justiça e do amor.

O mundo, no século 21, é totalmente diferente daquele contemplado e sentido pelos europeus e pelo próprio Allan Kardec, há 164 anos atrás. O fenômeno da globalização, estimulado por essa verdadeira revolução da comunicação, exige de todos os setores a adoção de uma linguagem comunicacionalmente eficiente. A própria religião se adaptou a isso, no que pode. Uma missa celebrada no Vaticano não é igual àquela rezada na Igreja do Senhor do Bonfim, na Bahia, ou a que celebram os padres cantores de São Paulo ou do Rio de Janeiro, que transformam aquele rito em shows religiosos transmitidos pela televisão.

A ideia do Espiritismo pós-cristão, tão ardorosamente defendida por Jaci Regis, tem um fundamento digno de ser examinado e que não pode deixar de ser aceito, a partir desta interrogação: Afinal, o que é o cristianismo hoje? O que ele é na sua base conceitual?

Quem pode responder a essa pergunta são os próprios cristãos, como tais considerados pela cultura contemporânea. Desde meados do século passado, cresceu no mundo ocidental um movimento denominado “ecumenismo cristão”. Talvez tenha sido um dos mais importantes movimentos da história do cristianismo e que marcou profundamente as relações internas entre os seguidores do cristianismo. Depois de séculos de graves desentendimentos, de guerras santas e de intolerância, as igrejas cristãs passaram a dialogar entre si. Não com o fim – pelo menos numa primeira etapa – de promover sua unificação (muito embora a mais importante dessas igrejas, a Romana, reivindique essa condição unificadora, por se dizer a única fundada por Jesus Cristo).

O objetivo seria encontrar o que há de comum entre elas e, com isso, recriar a identidade cristã, que começara a se fragmentar com o cisma da Igreja Oriental Ortodoxa e se aprofundara muito mais com a Reforma Protestante, a partir de Martinho Lutero, no século 16. Pois bem, durante todo esse tempo, cada um desses movimentos que se haviam fragmentado em milhares de igrejas arrogava-se a prerrogativa de representar o verdadeiro cristianismo. Para os católicos, os protestantes não eram cristãos. Para os evangélicos, eles, e só eles, representavam o autêntico cristianismo, reformado a partir de suas origens.

O movimento ecumênico do século 20 promoveu um grande acordo entre todas essas igrejas, definindo o que é ser cristão. Mesmo que nem todos adotassem exatamente os mesmos dogmas, muito menos os mesmos ritos ou dispensassem os mesmos sacramentos, todos eles passaram a se considerar mutuamente cristãos, a partir de algumas poucas crenças fundamentais, quais fossem: A crença em Deus, representado por três pessoas: Deus-Pai, Deus-Filho e Deus-Espírito Santo; o nascimento humano com o pecado original, resultado da desobediência de Adão e Eva e só removível pelo batismo; e, especialmente, a crença em Jesus Cristo como único Senhor e Salvador. Todas as igrejas que guardassem e difundissem esses dogmas seriam cristãs. Refundiu-se a grande comunidade cristã e, com surpresa para quem acompanhara a história dos últimos séculos, começaram a ocorrer cultos ecumênicos, celebração de casamentos simultaneamente feitos por pastores e padres. Afinal, todos eram cristãos e assim deviam se tratar entre si. Foi a forma que os cristãos encontraram para não sucumbirem ante o secularismo e a indiferença religiosa que avançava no século 20. Unidas naquilo que lhes formava a base, sobreviveriam.

No tempo em que surgiu o Espiritismo o panorama era completamente diferente. O Ocidente, em cuja cultura nascera a doutrina espírita ou era laico, agnóstico e materialista, ou era religioso e cristão (católico ou evangélico), mas essa palavra “CRIST O” ainda guardava uma acepção eminentemente moral. Cristão era quem fizesse o bem, quem praticasse a caridade. Foi nesse sentido que Allan Kardec usou, algumas vezes, o adjetivo cristão. Hoje não é assim. Por força dessa grande concordata feita pelas igrejas, cristãos são os que pertencem às igrejas cristãs, os que estão compromissados com elas pela fé. Há um consenso entre as igrejas cristãs, respeitado e homologado pela cultura pós-moderna, no sentido de reservar o adjetivo cristão como designativo de uma fé, fundamentada justamente naqueles dogmas essenciais que as reaproximaram.

Ora, esse novo conceito nada tem a ver com moral, com ética. Esta, hoje, é totalmente laica, exigência social, política, administrativa, reclamo popular relativamente a seus governantes aos seus fornecedores, compradores, funcionários do governo etc. Ser correto, solidário, responsável, honesto, deixou de ser uma exigência religiosa, muito menos cristã. Em alguns aspectos a ética cristã vai inteiramente contra alguns consensos da sociedade moderna, como sejam, a liberdade sexual, a igualdade entre homens e mulheres, a dissolubilidade do casamento; e práticas como o uso de preservativo, o planejamento familiar, a pesquisa científica com células-tronco e tantas outras questões que estão na agenda de nosso tempo.

Na década de 1970, em nome da moral cristã se promoveu uma formidável campanha visando a não introdução do divórcio no Brasil. Também com o beneplácito cristão, se instaurou um golpe de estado, dando lugar a uma ditadura cruel que se justificava, no entendimento cristão, ante a iminência do fantasma do comunismo ateu. Os militares que derrubaram Jango, naquele 1º de abril de 1964, tiveram seus brios insuflados pelas rezas das beatas mineiras, em procissão pelas ruas de Belo Horizonte.

Bem, e o Espiritismo? Este, em primeiro lugar não é, não foi e nunca será aceito pelos cristãos como um de seus ramos. A menos que aceitemos a Santíssima Trindade, façamos batizados nos centros espíritas e celebremos casamentos sem esquecer de declarar que deve ser para toda a vida, pois “o que Deus uniu o homem não pode separar” (aí está uma forte expressão da moral cristã).

E tem mais: não sendo nada disso, o Espiritismo ainda se propõe a ser um conhecimento capaz de rever seus posicionamentos, de tempos em tempos, acompanhando a marcha do progresso. Coisa muito diferente do cristianismo que repousa sobre dogmas inamovíveis e cujo chefe supremo, inspirado pelo Espírito Santo, quando fala em questões de fé, faze-o sob o selo da infalibilidade.

Então, assim como somos espiritualistas, sem sermos uma religião, também aceitamos as magníficas lições de Jesus de Nazaré, sem sermos cristãos. Até porque Jesus de Nazaré nada tem a ver com o Jesus Cristo, esse formidável mito dos cristãos.

O adjetivo “pós-cristão” para designar essa forma de pensar parece adequado. Mas, apenas para adjetivar um segmento, não para, com esse ou outro nome, se promover uma ruptura radical com o Espiritismo. Há entidades espíritas que possuem esta postura laica, “pós-cristã”, progressista. Mesmo deixando claras nossas divergências com as impregnações cristãs do Espiritismo religioso e reconhecendo as distorções que isso impôs à compreensão da proposta original de Allan Kardec, preferimos sempre manter a designação original: ESPIRITISMO, termo cunhado por Allan Kardec e que nos parece o mais adequado para essa ciência fundada na realidade do espírito da qual defluem, naturalmente, consequências éticas aplicáveis a todas as culturas do planeta. Mas, não há como deixar de reconhecer que somos, de fato, um movimento pós-cristão. E que, por outro lado, nossas raízes e conceitos eminentemente kardecistas também autorizam que usemos essa expressão – kardecistas – como uma forma de nos identificar, de marcar nossa identidade própria, nesse grande mosaico que se tornou o espiritismo. Isso, porém, no nosso sentir, não implica em criar um novo movimento, com a denominação “kardecista”, em contraposição ao Espiritismo.

Kardec, a seu tempo, desejava um movimento espírita bem organizado, estruturado em bases firmes, mas, como livre-pensador que era, via nas propostas espíritas um poderoso instrumento de libertação do espírito. Nada mais libertador do que o pressuposto filosófico espírita de que doutrina alguma “salva” alguém. A introdução do conceito de evolução moral como conquista individual do espírito, em contrapartida às doutrinas religiosas salvacionistas, confere ao espiritismo uma característica eminentemente libertadora de consciências.

Ora, uma doutrina com essas características não pode eleger “chefias”, não se compatibiliza com “unificação” organizacional ou de práticas doutrinárias. Nisso ele tem um pouco de anarquismo e muito de libertário.

Pensamos que há muito espaço para o crescimento do Espiritismo, dentro de uma visão racional, moderna, progressista e livre-pensadora, efetivamente “pós-cristã”. Nunca houve, como hoje, esse espaço. É nessa senda que devemos avançar.

Da verdadeira assunção dessa identidade “pós-cristã” está a depender a própria sobrevivência do Espiritismo na cultura pós-moderna, afastando-a da perpetuação desse atrelamento espírita à cultura judaico-cristã, quando sua principal missão é, justamente, superá-la e criar um novo paradigma.

Nota do ECK:

Adaptação de entrevista do autor ao site “Pense”, em agosto/2011.

Textos da edição

EDITORIAL: Jesus, entre o homem e o mito

Separar Jesus do Cristo!, por Marcelo Henrique

Jesus a porta, Kardec a chave?, por Natália Canizza Torres

Jesus e as verdades espirituais, por Carlos Antonio Fragoso Guimarães

Jesus e o Espiritismo pós-cristão, por Milton Medran Moreira

Jesus, um exemplo moral que permanece até hoje, por Paulo Roberto Santos (in memoriam)

O maior revolucionário de todos os tempos, por Reza Aslan

Jesus numa moto, por Manoel Fernandes Neto

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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