O Espiritismo e a questão social, por Deolindo Amorim (in memoriam)

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Deolindo Amorim (in memoriam)

O Estado é bom quando os homens são bons. O maior problema, portanto, é melhorar os homens. Creio, nesse caso, que a Democracia Cristã, sem o predomínio de uma classe ou de outra, mas pela união de todas as classes, realizará a maior missão social da História, resolvendo o conflito entre o capital e o trabalho, para o bem-estar geral.

Embora se preocupe diretamente com a vida futura ou extraterrena, não deixa o Espiritismo, todavia, de cogitar do bem-estar humano, discutindo os aspectos fundamentais da questão social. Não se pense, pois, que a Doutrina Espírita seja omissa nos pontos essenciais da vida terrena. E tanto é verdade, que o Espiritismo encara a questão social com realismo, situando-a racionalmente no ângulo em que ela se encontra. Neste ponto, conquanto não concorde com a solução puramente científica, divergindo assim, da dialética materialista de Engels e de Marx, o Espiritismo é objetivo, é muito objetivo até, porque não é nas regiões etéreas nem pela prática de penitências, mas no mundo material, pelo aperfeiçoamento das próprias instituições sociais, que procura a solução da luta entre o capital e o trabalho.

Embora o conflito social, que não é deste século [século XX – nota do ECK], mas um fenômeno peculiar ao desenvolvimento da civilização, tenha a sua origem nas relações humanas, não pode ser resolvido exclusivamente por meios materiais. Coerente com este princípio, o Espiritismo não esposa a tese materialista e analisa a questão à luz de outra ordem de ideias. Neste momento de confusão universal, talvez nem todos os estudiosos dos problemas sociais, incluindo-se possivelmente alguns espíritas, tenham procurado conhecer o pensamento da Doutrina a respeito da questão social.

O materialismo admite o nivelamento geral enquanto que a Doutrina Espírita explica as desigualdades à luz da reencarnação, valendo recordar que a dialética materialista considere o assunto como sendo problema fundamental da sociedade e tendo natureza econômica.

Ora, a questão social existe, sim. Os problemas são evidentes. Mas o Espiritismo e o materialismo histórico encaram a questão por prismas diferentes. O Espiritismo não nega a existência da questão social, uma vez que a má distribuição da riqueza, produzindo a opulência de uns e a miséria de outros, é um fato notório e incontestável. A Igreja Católica Romana também reconhece que a riqueza não está sendo distribuída com equidade, pois não é outro o pensamento da encíclica Rerum Novarum [“Das Coisas Novas”, encíclica escrita pelo papa Leão XIII em 1891, trata das condições da classe trabalhadora causadas pela Revolução Industrial. É considerada como um dos pilares da Doutrina Social da Igreja].

A questão social existe porque há desarmonia entre o capital e o trabalho, determinando o conflito de classes. Mas as soluções propostas são desiguais, de acordo com as divergências filosóficas.

Tomando-se por premissa a negação da existência da alma, está claro que o materialismo não pode chegar à conclusão espiritualista, dentro de cuja concepção o problema do homem não é exclusivamente econômico. O Espiritismo, neste particular, não diverge da Igreja, porque ambos admitem, sem qualquer atrito filosófico, três pontos primordiais:
a) existência de Deus;
b) imortalidade da alma; e,
c) preponderância do princípio moral.

Até aí não há divergência. A discordância entre o Espiritismo e a Igreja, em matéria filosófica, começa quando se abre a questão reencarnacionista. Embora seja também espiritualista e tenha, como o Espiritismo, aqueles três pontos de coincidência, a Igreja não admite a reencarnação e, por isso mesmo, não pode apreciar as desigualdades sociais com a mesma visão da Doutrina Espírita.

Não aceitando o princípio da igualdade absoluta, justamente porque a concepção igualitária entra em conflito com a teoria da reencarnação, o Espiritismo prescreve, todavia, solução pacífica, condicionada ao progresso moral. Pouca gente, porém, sabe o que diz a Doutrina Espírita acerca do debatido e complexo problema social. É o aspecto menos estudado no Espiritismo. Entretanto, não conheço orientação mais segura, mais equilibrada do que esta que encontramos em “Obras Póstumas”, de Allan Kardec: “Por melhor que seja uma instituição social, sendo maus os homens, eles a falsearão e lhes desfigurarão o espírito para a explorarem em proveito próprio.”

Como se vê, a reforma social exige, antes de tudo, a reforma do indivíduo. Nenhuma transformação violenta resolve o problema do equilíbrio social sem obter, primeiramente, o progresso moral pela educação do espírito. A chave da questão social não está na subversão radical das instituições, porque ainda que se substitua a estrutura da sociedade ou se dê nova organização ao Estado, sem elevar o nível moral das massas, haverá os mesmos choques, uma vez que o egoísmo humano subsiste em qualquer situação. Só se poderá aperfeiçoar o mecanismo social com o gradativo aperfeiçoamento individual. A tese espírita, portanto, é realista, senão talvez a que menos se aproxima da utopia, porque se baseia no conhecimento da natureza humana.

Temos aqui, neste pequeno trecho, a interpretação da luta entre o capital e o trabalho, à luz da Doutrina Espírita: “A questão social não tem pois, por ponto de partida a forma de tal ou qual instituição; ela está toda no MELHORAMENTO MORAL dos indivíduos e das massas. Aí é que se acha o princípio, a verdadeira chave da felicidade do gênero humano, porque então os homens não mais cogitarão de se prejudicarem reciprocamente.” (Allan Kardec, novamente em “Obras Póstumas”).

Não aceito a tese comunista porque não vejo traço de afinidade entre Comunismo e Espiritismo. Não creio que a questão social possa ser resolvida satisfatoriamente por meio da solução econômica, quando é certo que as necessidades do homem não são apenas as de ordem material. O problema econômico não contém em si mesmo toda a extensão e complexidade da questão social. Portanto, a problemática das desigualdades sociais não se subordina, exclusivamente, ao desajustamento econômico. Ela reclama indagações de maior transcendência, acima do plano material, embora prevaleçam, é bem verdade, até certo limite, as causas de ordem biológica.

De acordo, pois, com a Doutrina Espírita, não creio na solução materialista. Não encontro semelhança de concepções entre a doutrina materialista e a Doutrina Espírita, porque reconheço a prevalência de três razões que considero substanciais:
a) O Espiritismo, dada a vocação de sua doutrina, está em desacordo com o materialismo, e, portanto, encara a questão social sob ponto de vista diferente;
b) Em face da reencarnação, a pedra filosofal do Espiritismo, a igualdade absoluta é impossível, sob pena de derrogação da Justiça Divina; e,
c) O problema da felicidade humana, tendo raízes profundas no Espírito, e não exclusivamente na matéria, está condicionado à reforma moral do indivíduo, porque na sociedade composta de indivíduos desorganizados e corrompidos, não pode gozar-se a plenitude de paz e de justiça.

Quando, pois, o indivíduo é mau, nenhum regime consegue convertê-lo em homem de bem, sem que ele se reforme interiormente. A Doutrina Espírita prescreve, exatamente por isto, a reforma do indivíduo para que se possa reformar o grupo. E sem a reforma individual, sem a observância do fator moral com base na existência do Espírito, não se destrói o antagonismo social provocado pela luta de classe e pela desproporção dos bens materiais.

Se, sob o aspecto filosófico, vejo profunda divergência entre o Espiritismo e o Comunismo, porque aquele apoia toda a sua filosofia na existência e sobrevivência do Espírito, enquanto este se baseia no materialismo histórico, não é menor a discordância sob o ponto de vista político. Ora, politicamente o Comunismo admite o direito do Estado sobre a propriedade privada, o que está em desacordo com os princípios espíritas. Veja-se Allan Kardec em “O livro dos Espíritos” (Parte Terceira, cap. XI). O regime que melhor corresponde à índole da Doutrina Espírita é a democracia, porque a estrutura filosófica do Espiritismo não se adapta a nenhuma forma de poder totalitário. O nacionalismo estreito é tão contraproducente quanto o internacionalismo incondicional. A democracia é regime de conciliação, de equilíbrio, porque repele instintivamente qualquer hegemonia e permite a participação de TODOS no progresso comum, sem distinção de classes.

O sistema democrático, embora sujeito a deformações humanas, também evolui, marchando para o reinado pacífico da grande democracia cristã. Os exclusivismos são prejudiciais à ordem social, porque o progresso da sociedade depende da cooperação de todas as classes e não apenas de uma só classe.

A democracia cristã não comporta a precedência de nenhuma classe social sobre as outras, mas, ao contrário, oferece oportunidade para o bem-estar coletivo, o entendimento, a solidariedade, dentro da Justiça Social iluminada pelo Evangelho. Qualquer ditadura, seja de um indivíduo ou de uma classe, de um partido ou do Estado; seja do capitalismo ou do proletariado, da cruz ou da espada, da ciência ou da fé, não oferece ambiente propício à livre manifestação do pensamento porque é sempre unilateral. Dentro de um regime democrático não pode subsistir qualquer exceção de classe em detrimento da liberdade humana.

A questão social deixará de ser o pesadelo da civilização quando cessar a exploração do homem pelo homem com a socialização do capitalismo. O Estado é entidade abstrata. Logo, não é o Estado que traz a felicidade geral. O Estado é bom quando os homens são bons. O maior problema, portanto, é melhorar os homens. Creio, nesse caso, que a Democracia Cristã, sem o predomínio de uma classe ou de outra, mas pela união de todas as classes, realizará a maior missão social da História, resolvendo o conflito entre o capital e o trabalho, para o bem-estar geral.

Por todas estas razões é que à luz da Doutrina Espírita não aceito a tese materialista nem qualquer doutrina que reconheça a supremacia do deus Estado. Creio, finalmente, que a questão social, segundo a concepção da Doutrina Espírita, será resolvida, cedo ou tarde, mas pelo processo normal de evolução.

A desarmonia entre as classes (patrões e empregados, ricos e pobres, chefes e subordinados, governantes e governados) não será destruída pelo providencialismo de uma fórmula ou de um sistema, e sim pela compreensão recíproca, pela exatidão de consciência, pelo sentimento de tolerância, quando cada um, em qualquer circunstância ou posição em que se encontre, sem que se faça necessária a fiscalização ou a rigidez da lei, souber viver e agir dentro da sabedoria universal do DEVER.

Notas:
(1) Artigo originariamente publicado no jornal “Mundo Espírita”, edição de dezembro de 1945. Posteriormente, foi incluído no livro “Análises Espíritas”, creditado a Deolindo Amorim, uma compilação feita por Celso Martins, publicado pela Federação Espírita Brasileira.

(2) Deolindo Amorim nasceu na Bahia em 23 de janeiro de1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em 24 de abril de 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas do Brasil. Jornalista, sociólogo, escritor espírita de estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do Espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano. Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, entre outras.

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