Ó, mundo tão desigual, por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

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Marcus Vinicius de Azevedo Braga

A desigualdade social tem sido crescente e esse progresso do planeta na esperada regeneração não se pode fazer compactuando com a miséria de muitos confrontado a posses desmedidas de outros. Independente de nossa interpretação das causas desse fenômeno, para uma jovem criança ele realmente parece estranho; mas, com o tempo, vamos “normalizando” isso, fazendo com que sobre, como solução, a mão transcendente de jogos de azar para aplacar nossos sonhos milionários.

Isidro dirigia seu velho Siena ano 2000 a caminho do trabalho, quando ouvia no noticiário do carro que a loteria estadunidense “Mega Million” havia acumulado um prêmio de um bilhão de dólares, e que ainda havia tempo para realizar apostas, inclusive por brasileiros, que poderiam fazê-lo pela internet.

Entre um ouvinte e outro que falava no rádio o que faria com vultosa soma, Isidro fica pensando o que resolveria com essa grana, e que gostava de sua vida simples, e que talvez essa bolada lhe trouxesse mais problemas que soluções. Mas, estavam lá aqueles depoimentos de sonhos megalomaníacos, de viagens a empreendimentos, desfiados um a um pelos ouvintes do programa de rádio, e aquilo ficava ali, tentando a mente de Isidro, que só tentava chegar ao trabalho.

Por fim, nosso protagonista, chegando em seu destino e estacionando seu carro, pega seu telefone celular e faz a tentadora aposta. O valor mínimo, só para aplacar as vozes sonhadoras de sua mente. E segue sua vida, esquecido da aposta, do prêmio e de coisas inimagináveis que poderiam habitar seus desejos. Dera despesa aquela tentação matinal.

Passados alguns dias, o telefone celular de Isidro toca as 6h da matina, e era seu cunhado, informando que seu nome estava em todos os jornais no Brasil e no mundo, pois ele havia ganhado sozinho o prêmio de um bilhão de dólares. Atônito, entre acordado e sonolento, Isidro nem se lembrava mais daquele prêmio, e avisa ao cunhado que iria ver do que se tratava.

Mas, realmente ele havia faturado a bolada, tirado a sorte grande, e reuniu a família para conversar sobre o que iriam fazer com essa quantia tão vultosa. Com juros da poupança de 6,5% ao ano, aplicado em um principal de 5 bilhões de reais (Dólar a cinco reais), deduzidos os impostos, daria um rendimento de cerca de 20 milhões de reais mensais, mil vezes o valor de seu salário, já bem superior ao da média nacional.

Após horas intermináveis de discussão, entre compras de imóveis, aplicações, provisões, e ajudas a parentes e amigos, ainda sobraria a bagatela de 3 bilhões de reais, com a qual Isidro não sabia o que fazer. O medo de se tornar vítima de golpes, ou de sofrer assaltos e sequestros, rondava a sua mente. E mais, de como aquela dádiva inesperada poderia destruir a vida que ele tanto gostava. Além disso, Isidro e sua esposa, Hermione, se lembravam de sua infância na pobreza, e que talvez não fosse certo usufruir daquela benesse da maneira com que todos fariam, normalmente.

Uma espontânea e fervorosa prece escondida no quarto lhe forneceu a intuição necessária para resolver o problema que se apresentava. Assim, Isidro reuniu novamente a família e decidiu que o saldo que não seria utilizado, da ordem de R$ 3 BI, já resolvidos os problemas seus e do entorno e feitas as provisões, seria doado, e que a família se engajaria em um projeto de um ano de duração, para escolher as mil entidades assistenciais brasileiras sérias que receberiam um aporte de três milhões de reais cada.

Mais uma vez Isidro voltou as manchetes de jornal, agora por essa sua inusitada ação, sendo objeto de críticas explícitas, de acusações de oportunismo, de fins eleitoreiros e de tentativa de fraudar tributos. Sem se intimidar, a família deu prosseguimento ao projeto e tornou aquela dádiva uma profusão de recursos que ajudou obras conduzidas por tarefeiros dedicados na área da saúde, da educação, da assistência, tornando a vida de muitos menos sofrida, reduzindo as desigualdades sociais.

Esta pequena historieta é livremente inspirada no filme “Chuva de milhões” (Brewster’s Millions, 1985), baseado na obra homônima de George Barr McCutheon (1866-1928), que conta a história de Montgomery Brewster, um fracassado jogador de beisebol que recebe uma herança de magoado parente desconhecido, mediante o dever de cumprimento de condição, no mínimo, peculiar.

Para que Brewster recebesse de herança a significativa quantia de 300 milhões de dólares, ele teria que enfrentar o desafio de gastar U$ 30 milhões em 30 dias. Mas o desafio não era tão simples assim. Ele deveria observar algumas regras, como manter sigilo dos termos do desafio, não acumular bens, submeter-se a limites de despesas em caridade e jogatina, entre outras balizas que restringiam qualquer comportamento pródigo exacerbado.

Faz um bom tempo que gostamos de histórias de grandes prêmios para pessoas comuns, as quais podem trazer uma reflexão sobre a questão da desigualdade, fruto, bem verdade, do arranjo social em que vivemos, na qual existe uma concentração crescente da riqueza (PIKETTY, 2014). Vale dizer que, curiosamente, no período da crise sanitária do novo Coronavírus, se teve uma impressionante marca de cerca de 520 mil bilionários (0,01% da população do planeta) detendo 11% da riqueza global, um índice que correspondia a 7%, em 1995 (BASSI, 2021).

Certamente, isto configura um problema político, derivado da forma de organização das sociedades e da falta de percepção de que essa desigualdade figura como a causa de problemas de toda ordem, gerando miséria, sofrimento, atraso e tornando as relações sociais insustentáveis. Como diz a pergunta 806, de “O livro dos espíritos”, a desigualdade das condições sociais “(…) é obra do homem e não de Deus”.

Entretanto, na carona da história de abertura, o texto não se deterá exclusivamente nas questões políticas e centrais da desigualdade, nem nas questões relativas à responsabilidade dos bilionários em relação a essa desigualdade, analisando as suas tentativas paliativas de mitigá-la. O busílis de nossa discussão será a naturalização da desigualdade, o que Isidro não fez, ao receber um prêmio dessa monta – e que o tornaria, em um salto quântico, mais um desses bilionários infinitesimais –, mas apesar das pressões, ele preferiu repartir em confronto a opção de ascender a esse grupo minoritário.

Relevante notar que o prêmio deriva de apostas de um sem-número de Isidros, de Pedros e Marias, que sonhavam com a fartura infinita, mas conformados com esse desenho tão desigual, de uns famintos e outros com gastos nababescos, não só naturalizando a desigualdade, mas vendo, na saída dessa, a única solução, a transcendental mãozinha da sorte, que lhe tire desse grupo sofredor e o leve para o universo dos eleitos.

A loteria representa a esperança única para os mais pobres (ORWELL, 2009), mas além dessa, existe toda uma coleção de filmes e romances que coloca o sonho de ser milionário como um objetivo de vida, reforçando o egoísmo da resolução dos meus problemas, independente do resto, esquecido o passado de pobreza e de como se chegou a esse contexto.

A luta pela superação da desigualdade precisa romper a busca transcendente da “sorte grande”, ou se limitar a prática da promoção social, relevante e presente nas casas espíritas. Faz-se necessário se pensar mais além, entendendo que a concentração de riquezas nesse nível supera os pontos apresentados em “O livro dos espíritos”, como a questão da diversidade de habilidades (questões 804/811) ou o desejo de reparar uma injustiça (questão 809), ou ainda um elemento de progresso, conforme o Capítulo XVI, de “O evangelho segundo o espiritismo”.

Esse nível de concentração trazido pela obra de Piketty, lastreado em robustos dados e em anos de pesquisa, não contribui para o progresso geral, pois gera, pela sua naturalização, o agravamento da miséria, em suas múltiplas dimensões. No campo político, sem mudanças no espectro vigente, o próprio economista francês faz sugestões interessantes nesse sentido, na tributação de grandes fortunas e das heranças, assim como outras medidas que surgem no cardápio, passando pela renda mínima cidadã e pelo incremento da política social.

O que não dá é, a luz do evangelho de Jesus, observar os bolsões de pobreza, com Espíritos encarnados em condições sub-humanas, e aí se naturalizar tal situação pela “racionalização” do merecimento, de ser um elemento de progresso, ou ainda, por conta da justiça divina. A lei é de amor! Encarnados que estamos no Planeta Terra, temos responsabilidades com as condições dos nossos irmãos, como uma coletividade, no ideal da construção de um mundo melhor. Quantos de nós faríamos algo próximo ao decidido por Isidro e sua família?

A desigualdade social tem sido crescente, como mostrou Piketty, e esse progresso do planeta na esperada regeneração não se pode fazer compactuando com a miséria de muitos confrontado a posses desmedidas de outros. Independente de nossa interpretação das causas desse fenômeno, para uma jovem criança ele realmente parece estranho; mas, com o tempo, vamos “normalizando” isso, fazendo com que sobre, como solução, a mão transcendente de jogos de azar para aplacar nossos sonhos milionários.

Faz-se necessário, como trazido em “O livro dos Espíritos”, entender que essa desigualdade não é natural, e sim criação do homem, de suas relações sociais, sendo mais do que um mero reflexo de aptidões. Uma estrutura que tem como objetivo de vida individualizado se tornar um “Tio Patinhas”, descontextualizado do entorno social, e dos caminhos que conduziram até aquela acumulação. Uma máquina de gerar ilusão e frustração, em suma.

Por fim, resgatando a poesia da composição “A novidade”, de autoria de Bi Ribeiro/Gilberto Gil/ Herbert Vianna/Joao Barone, é preciso olhos de ver para entender que não pode ser naturalizada a situação de termos “De um lado esse carnaval, de outro a fome total”, e que as argumentações vazias nesse sentido, de mérito e esforço, não encontram eco na realidade que perpassa as nossas vistas no cotidiano, e na voz do nazareno, que sussurra ao vento o seu maior mandamento: amar ao próximo como a si mesmo.

Referências:

BASSI, Fernanda. Bilionários detêm 11% das riquezas do mundo; 50% mais pobres têm só 2%. Relatório “Desigualdade Mundial” mostra que diferenças se acentuaram na pandemia. Portal Poder 360. 07/12/2021. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/internacional/bilionarios-detem-11-das-riquezas-do-mundo-50-mais-pobres-tem-so-2/>. Acesso em 30.jul.2022
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PIKETTY, Thomas. O capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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