Nosso Lar, sequela zero, por Célia Aldegalega

Tempo de leitura: 8 minutos

Célia Aldegalega

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André Luiz, encarnado ou desencarnado, só subscreveria estas declarações atualmente se estivesse estacionário, contrariando a lei do progresso. No entanto, há planos para difundir massivamente todas as suas declarações pretéritas.

Foto divulgação do filme

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Esta declaração talvez seja a melhor frase literária do capítulo 20, de “Nosso Lar”, mas pode, ironicamente, reverter-se em comentário sobre a perceção das mulheres que o capítulo contém: “O assunto mais trivial assume singular encanto nas palestras mais fúteis. “Nosso Lar” é a obra psicografada mais incensada por espíritas e simpatizantes espíritas de orientação religiosa do Movimento Espírita Brasileiro e do Movimento Espírita Português, porventura mais divulgada do que as obras de Kardec, e, sem dúvida, mais conhecida do que obras de outros/as autores/autoras espíritas vetustos e contemporâneos/as. Para a estratégia arquitetada pela Federação Espírita Brasileira, secundada por outros países, como Portugal, de difusão massiva desta obra como pedagógica, instituindo-a como o “El Dorado” espírita (“El Dorado” na Terra, certamente, traduzido em proveitos financeiros com as suas vendas), terá contribuído também a adaptação cinematográfica de 2010 [1], que terá sido vista por milhões de pessoas, e o luxo da banda sonora de Phillip Glass é o que o filme tem de notável. Intriga-me se o compositor, por sinal budista, se terá dado conta antecipadamente do teor e da fraca qualidade cinematográfica do filme em que colocou a sua genial música.

A estreia da sequela “Nosso Lar 2” estava prevista para 31 de agosto, mas foi adiada para janeiro de 2024. A estética do trailer e do cartaz causaram constrangimento. Quanto ao título: “Nosso Lar 2”, subtítulo, “Os Mensageiros”, a traficância entre os títulos (e conteúdos) de duas das 16 obras de André Luiz psicografadas por Chico Xavier como tática de marketing, testemunha a popularidade de “Nosso Lar”. Se o título fosse apenas “Os Mensageiros”, alguns espíritas e a maior parte dos públicos, não identificariam a obra, o que poderia resultar em fracas audiências.

Assisti a uma entrevista de Mayara Paz e João Rabelo, respetivamente, coordenadora e diretor da FEB Cinema, de maio do ano passado, num podcast chamado “Espaço Cidadão”, conduzido por Robson Carvalho, que se apresenta como cientista político. A coordenadora declarou que “Nosso Lar” (o “1”) foi visto em 40 países, e que a sequela conta com a parceria da Disney para distribuição (o anterior, contou com a da Fox, que, segundo o diretor da FEB cinema, contratou 600 salas de exibição de cinema). Mesmo um filme muito fraco em efeitos especiais e décors indispensáveis, custa milhões a produzir.

A FEB não se poupa a gastos para disseminar o “espiritismo à brasileira”. De acordo com João Rabelo, se o primeiro filme pretendia explicar a visão espírita do mundo espiritual, ou o que acontece quando se desencarna, o novo filme pretende explicar como se encarna. Entre o seu discurso, o diretor declarou que “nós não temos a pretensão de ser a melhor religião”, assumindo frontalmente o viés religioso.  Interpelado sobre os planos da FEB cinema, informou que é sua intenção lançar um filme a cada ano, que já está previsto o lançamento do filme Emmanuel, e as sequelas 3, 4, 5, 6 de Nosso Lar. A FEB Cinema foi formada no ano passado, e, noutra entrevista de João Rabelo para a revista Senda, da Federação Espírita do Estado do Espírito Santo, este declara que o departamento é

uma nova área da FEB que objetiva estruturar, organizar e viabilizar a divulgação da     Doutrina Espírita pelos recursos audiovisuais. O Cinema deseja e trabalha, contando         belas histórias que comovam, agradem e divirtam as pessoas. Sabe-se que a   sociedade, no Brasil e no mundo, está insatisfeita com o que se faz, sobretudo porque o apelo tem sido a apelação e violência. As pessoas desejam conteúdo,             valores, de      maneira lúdica, agradável. A Doutrina Espírita, em suas obras, tem muito a oferecer             e contribuir nesse aspecto. Tem a FEB cerca de 600 títulos, quase todos substanciosos    de valores morais. É uma nova maneira e ferramenta de divulgação doutrinária. 

Para aceder à entrevista completa e informações sobre o departamento, veja o link ao final [2].

Antes de prosseguir, quero deixar bem claro que não considero o relato uma mistificação, nem da parte do Espírito que o produziu sob o pseudônimo André Luiz, nem da parte de Chico Xavier, que o psicografou. Acredito que André Luiz teria experienciado o que relatou, mas ainda não possuímos informação bastante para escrutinarmos os mecanismos que expliquem a produção de realidades subjetivas, afins com as nossas crenças, nossas ideologias, nossa cultura, nossos medos e traumas, enfim toda a parafernália de experiências que nos habita, e que, enquanto encarnados, pode, ao limite, traduzir-se em patologias mentais que produzem alucinações. Como também não estamos suficientemente esclarecidos sobre dinâmicas da interação de médiuns e desencarnados, nomeadamente, o quanto o acervo cultural, em sentido estrito e lato, dos primeiros, podem influenciar o produto final psicografado.

Acresce que, em relação a “Nosso Lar”, também não é despiciendo que o manuscrito original tenha sido destruído. Depois de vir a conhecimento que houve adulterações de obras psicografadas por Chico Xavier, conviria que o manuscrito original pudesse ser consultado. Mas ele não existe mais!

Este capítulo 20, reli-o, e não consegui evitar o choque já sentido quando li a primeira vez, ao sentir-me confrontada com uma perspetiva sobre a mulher totalmente inaceitável. Porém, antes de me debruçar sobre os conteúdos, vou destacar algumas formas. O que significa “alma feminina”? Desde logo, de acordo com o Espiritismo, alma, é o que chamamos ao Espírito quando encarnado. Em “Nosso Lar”, as personagens “estão mortas”. Portanto, na resposta da senhora Laura à questão de André Luiz, quando expressa “as almas femininas, aqui, assumem numerosas obrigações, preparando-se para voltar ao planeta ou para ascender a esferas mais altas”, há contradição com a nomenclatura em uso no Espiritismo. Que pode depreender-se desta diferenciação de almas femininas e almas masculinas? Do que sabemos, reiteradamente confirmado por inúmeras fontes, somos Espíritos que no seu processo evolutivo assumem corpos humanos, alternadamente de gênero feminino e masculino, podendo haver maior incidência de encarnações num ou noutro gênero. Por pouco, então, não discutimos o chamado sexo dos anjos, neste caso, dos Espíritos…

Prosseguindo, o mais comum bom-senso terá noção de que não existem almas ou Espíritos femininos, nem masculinos. Existem corpos com sexo biológico feminino, masculino, e, para escândalo dos mais retrógrados, há Espíritos encarnados com disforia de género e há os que consideram haver mais gêneros além do binarismo. Em 1944, as questões de identidade de gênero e de orientação sexual não eram assuntos abordáveis, e as pessoas não normativas eram remetidas para a invisibilidade e a marginalização.

É duro constatar que Espíritos apresentados como desenvolvidos, praticando o acompanhamento e a orientação de outros espíritos encarnados e desencarnados estavam alinhados com esse comportamento social. A orientação do discurso contido neste capítulo aponta para a eternização da rejeição e do desprezo por todas as pessoas desalinhadas da normatividade, e, apesar de nos anos 40 do século 20, já haver desenvolvimentos assinaláveis quanto à emancipação da mulher, a ideologia do texto é retrógrada. E, por isso, o lar é definido como “sagrado vértice onde o homem e a mulher se encontram para o entendimento indispensável”, sendo o homem a linha horizontal, e a mulher a vertical, numa exibição de absurdo ao não desenvolver o que se pretende exprimir com a adscrição da linha horizontal ao homem, e da vertical, à mulher.  Especulando, podemos inferir que a linha horizontal significa a base, a sustentação, e a vertical, a transcendência, apesar da circunscrição das funções da mulher, e das do homem também, assim remetido para uma espécie de plataforma de cimento que sustenta todo o edifício familiar.

Estamos em 2024, século 21, e bem sabemos que as sociedades de países desenvolvidos, ou em vias de desenvolvimento, embora ainda muito divididas, acolhem casais alternativos, que edificam lares, que têm filhos e filhas biológico/as e adotado/as. E sim, é de confrontar o texto com o que o próprio texto diz “(…) todos os seres são belos quando estão verdadeiramente amando.”

O designado “instituto doméstico”, segundo as palavras atribuídas ao Espírito Laura, deveria basear-se “na harmonia justa com direitos e deveres devidamente partilhados”. Por instantes, pode julgar-se que o rumo da conversa segue em bom caminho, mas é ledo engano. A frase desemboca noutras em que ao homem é atribuído o poder temporal, à mulher, a ternura e o sentimento. Quando alheados dos respetivos cônjuges, os homens pensam em assuntos de trabalho, as mulheres, na modista. Pasmem!

Raríssimas serão as mulheres que subscrevam esta atribuição de clichés, porque a realidade é já diversa, felizmente. Mais ou menos conservadoras, são poucas as mulheres contemporâneas que não exercem uma profissão, ou seja, que se ocupam de assuntos temporais. E sonegue-se aos homens os sentimentos, e a ternura! Para as “almas femininas” de “Nosso Lar”, tudo converge na aquisição de conhecimentos para ser “mãe, esposa, missionária, irmã.” Atividade intelectual e ação na sociedade, estão totalmente omissas no discurso de Laura, com o qual, claro, André Luiz não poderia estar mais de acordo. Não surpreende que trecho imediato exiba um agressivo ataque ao feminismo, classificado de abominável, atitude pouco caridosa, no mínimo, mas se há aspeto recorrente nestes diálogos, é o quanto as personagens são representadas como desenvolvidas e boas avaliadoras de caracteres alheios, pronunciando abominações com piedosas e doces palavras. Fossem realmente sábios e desenvolvidos, estes Espíritos saberiam mais de história da humanidade, ainda antes de investigações trazerem ao conhecimento público inúmeras mulheres que, desde tempos ancestrais, desempenharam funções que a cultura patriarcal atribuiu exclusivamente a homens, invisibilizando essas mulheres.

Em “Nosso Lar”, as tais enigmáticas “almas femininas” são industriadas “na enfermagem, na indústria do fio, na informação [?!], e nos serviços da paciência”. Haja paciência para a atividade lapidarmente adscrita ao que insistem em chamar “alma masculina”, e a inspiração à “alma feminina”! E pela mentalidade que remete as mulheres para a esfera do lar, e os homens para a esfera pública, sempiternamente! As “almas femininas” de “Nosso Lar” são compensadas com os famosos bônus – os habitantes desencarnados do “lar deles” ainda manifestam muito apego por hábitos corporais e temporais terrestres, mas revertem os dados, alegando que são a matriz do que se passa na Terra.

Aliás, a frase mais digna de atenção em todo o capítulo, pode passar despercebida. É na resposta de Laura à pergunta de André Luiz relativa a ainda ter tempo para desempenhar funções fora de casa: “vivemos numa cidade de transição”. Um dado concreto, assertivo, que define “Nosso Lar” como espaço transitório, embora a ideologia religiosa espírita o tenha entronizado como sucedâneo do Paraíso. Por outro lado, não serão todos os lugares transitórios, até que se alcance o estádio de Espírito puro? Nesta resposta, há ainda um contraditório a toda a peroração sobre os papéis da mulher. Afinal de contas, Laura, além das ocupações domésticas, desenvolve atividades fora de casa…

Novo choque com a expressão “almas gémeas”, um conceito refutado por Allan Kardec, apesar de imediatamente emendado para “almas irmãs ou afins”, num trecho em que Laura declara que apenas um número mínimo de casais terá esse perfil, e a maioria das uniões são ligações de resgate, culminando com a declaração apocalíptica “O maior número de casais humanos é constituído de verdadeiros forçados, sob algemas.” Alguém se animaria a casar depois de ler este trecho?!

O capítulo encerra-se com mais um desconcerto. Na “colônia”, o “Nosso Lar”, o tempo corresponde ao tempo terrestre, e, circunstancialmente, vigoram oito horas de trabalho diário, e a semana de 48 horas de trabalho – só se folga ao domingo! –, o que certamente corresponderia a práticas dos anos 40 do século 20. Ah, se os certamente também abomináveis sindicatos soubessem quão divinas eram estas disposições do patronato! Numa época em que países desenvolvidos praticam horários de 36 a 40 horas semanais, e se implementa ou pondera encurtar a semana de trabalho, como esperar que pessoas contemporâneas aceitem tais anacronismos, e se identifiquem com perspetivas inquinadas por ideologias conservadoras? Ou é precisamente a conservadores que o Espiritismo febiano apela?

A “colônia”, que se afigura mais um entreposto, estará atualizada, alinhada com a evolução terrestre, que, apesar de desigual e insuficiente, é indubitável? Por que razão não se registam mais comunicações significativas dela emanadas? Não seria natural que nos fizessem chegar atualizações 79 anos após a sua existência ter sido revelada ao mundo através do Espírito André Luiz, inaugurando a carreira de psicógrafo de um dos médiuns mais capacitados de sempre? Creio que André Luiz, encarnado ou desencarnado, só subscreveria estas declarações atualmente se estivesse estacionário, contrariando a lei do progresso. No entanto, há planos para difundir massivamente todas as suas declarações pretéritas.

Que pena!

Notas da Autora:

[1] Realização de Wagner de Assis, com Wagner Prieto, Fernando Alves Pinto, Rosane Holland, Helena Varvaki, Werner Schunneman, Rodrigo dos Santos, Inez Viana, e outros.

[2] A entrevista pode ser lida no seguinte link: https://febcinema.febnet.org.br/na-midia-entrevista-de-joao-rabelo-para-a-revista-a-senda/

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “Nosso Lar, sequela zero, por Célia Aldegalega

  1. Mais um texto primoroso de alguém que está entre nós para nos “ajudar “a progredir e a libertar. Parabéns Célia pela análise da obra em questão que se bem entendo é uma visão mental e individual de um espírito na erraticidade que conta a sua versão do mundo espiritual. Excelente.

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