Kardec e Morin: algumas reflexões sobre os fundamentos do Espiritismo, por Mário Lange de S. Thiago

Tempo de leitura: 4 minutos

Mário Lange de S. Thiago

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A futura fé… com ela, a ciência tornar-se-á religiosa, e a religião se há de tornar científica”, Léon Denis [1].

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A história da cultura humana assinala três províncias para a produção, localização e utilização técnica e pedagógica do conhecimento decorrente de sua arte. Assim, a ciência, a filosofia e a religião guardam os diversos saberes consoante suas próprias metodologias, o que termina por provocar as incompreensões da complexidade, em atrito divergente.

O Espiritismo, assim entendida a ciência nova do espírito [2], muda esse panorama, porquanto realiza a aliança da ciência e da religião [3], sob a supervisão atenta da filosofia. Tendo por objeto o estudo das correlações da natureza em suas feições material e espiritual, agrega ao conhecimento científico das leis físicas as suas conspícuas asserções sobre a primazia substancial, organizacional e teleológica do espírito. A partir do domicílio “interexistencial”, tão bem exposto por Herculano Pires [4], nessa aliança, o Espiritismo antecipa a “ideia dialógica” de Edgar Morin, “que aceita que duas instâncias não redutíveis uma a outra e contraditórias entre elas estejam ligadas intimamente” [5]. Para saber como isto pode acontecer, de sorte a influenciar-nos o pensamento e o sentimento, na síntese mental e, consequentemente, comportamental, é preciso fazer-lhe o registro teórico aberto e progressivo em suas linhas iniciais.

Pode dizer-se que as proposições espíritas decorreram de intensa pesquisa sobre o fenômeno mediúnico, que logo passou de mediunismo a mediunidade, com a descoberta do estado vibratório do “intermúndio” [6], também referido por Herculano Pires. O conhecimento espírita tem seu ponto de inflexão da árvore do conhecimento no fato espírita, conceito do qual dimana uma nova perspectiva da vida, do universo e da cultura. A referência espírita necessariamente revela que o referido tem origem no plano do Espírito, fora da matéria. Nossas dificuldades de linguagem demonstram que há diferença entre um livro espírita e um livro sobre o Espiritismo. Posto o alicerce, viabilizou-se a construção do edifício espiritista de configurações e interpretações de sentido. Assim, a realidade é que os Espíritos se comunicam conosco, e nós com eles, terminando por sermos todos Espíritos, mas alargando a base fenomenológica, razão por que, o fato espírita passa a ser anímico-mediúnico. Por isso, fazendo um esforço de síntese comunicacional, é possível reconhecer cinco princípios do Espiritismo: a transcomunicabilidade, a transcontinuidade, a pluralidade das existências, a mutabilidade e a divindade. Cada um desses pontos guias arrasta consigo complexidades em sua própria constituição.

No estudo da transcomunicabilidade, em que se vislumbra a comunicação mediúnica, assim como, a interconexão das inteligências nos planos material e espiritual, verificou-se a imprescindibilidade de um elemento intermediário, reconhecido como o fluido cósmico universal. O universo espírita está em larga medida nesse fluido, cujas modulações vão muito além dos estados sólido, líquido, gasoso, plasma e outros determinados pelos avanços quânticos da física. Os cálculos matemáticos já vão paulatinamente reconhecendo o invisível plano de matéria/energia escuros dominante. Determinando o aspecto científico do Espiritismo, a transcomunicabilidade sugere o estudo da transcontinuidade (ou erraticidade, conforme Allan Kardec) e, esta, o princípio da pluralidade das existências. Vivendo em meio fluídico, os Espíritos interferem na morfologia dos corpos e ambientes etéreos, ditos espirituais. Essa influência se dá por decorrência de sua vibração psíquica, reflexo do seu estado intelecto-moral. Esse estado mesmo é que será ainda determinante de suas reencarnações.

Fluidos e vibrações integram o primeiro escalão cognitivo da nova ciência do Espírito. Na erraticidade, sem a consistência das expressões identitárias do corpo físico, o Espírito assume o seu verdadeiro caráter moral. Entende-se o Espírito como sendo a alma humana revestida de um fluido especial denominado perispírito, que, por definição, recebe as impressões vibratórias daquela. Daí é que se deduz a máxima doutrinária de que “Fora da caridade não há salvação” [7], isto porque, não é difícil entrever que a força moral experienciada em nosso plano físico se exterioriza energeticamente na dimensão do Espírito desencarnado. Com esta base de observação, experimentação e dedução, as evidências permitem um olhar epistemológico e a compreensão de uma visão de mundo em muito transcendente à concepção reducionista. Imortalidade, reencarnação e caridade (compreendida como vibração) formam o tripé ressignificador de uma nova filosofia. Desse contexto resultam leis disciplinadoras de um processo de constante mudança vibratória do Espírito conduzido deterministicamente (ação e reação) para o despertamento das consciências e da plenitude do livre arbítrio. Deste modo, pelo princípio da mutabilidade orienta-se o aspecto filosófico do Espiritismo para a dedução da causa primeira, o princípio inteligente do universo, a divindade, consagrando o seu aspecto religioso.

Levando em consideração essas referências, pode dizer-se que o Espiritismo se realiza como conhecimento nos seus três aspectos, a serem vivenciados como ciência, por alguns; como filosofia, por todos e, como religião, por cada um [8].

Referências:

[1] DENIS, L. Cristianismo e Espiritismo. Introdução.  Trad. Leopoldo Cirne. 7. Ed. Brasília: FEB, 1978, p. 14.

[2] KARDEC, A. O evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. Brasília: FEB,2013, p. 59.

[3] Idem, ibidem, p. 60

[4] PIRES, J. H. Curso Dinâmico de Espiritismo. XII – Colaboração Interexistencial. 2. Ed. São Paulo: Paideia, 1982, p. 99.

[5] MORIN, E. A Religação dos Saberes. 8. Os desafios da complexidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 565.

[6] PIRES. Ibidem, p. 99.

[7] KARDEC. Ibidem, p. 306.

[8] KARDEC, A. O que é o Espiritismo. Terceiro Diálogo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. FEB, 2014, p. 130.

Nota do ECK: Este artigo foi originalmente publicado sob o título “Reflexões sobre os fundamentos do Espiritismo – Parte 2”, na coluna “Fé Raciocinada”, da edição de abril/2024 (Ano XCIX, Número 3, da “Revista Internacional de Espiritismo”).

Imagem de beate bachmann por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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