Qual Jesus?, por Nelson Santos

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Nelson Santos

 Impõe-se a figura do homem de Nazaré justamente por sua natureza humana, sua simplicidade e, ao mesmo tempo, profundidade e amplitude. O que nós é legado, ao estudar a historicidade e a filosofia de Yeshua, distanciando-nos do componente mítico-místico, é a força contagiante dos seus ensinos, o que imprime uma marca indelével em sua figura.

 Toda a estrutura da teoria educacional e ético-moral espírita é embasada no alicerce da cristandade, que parte dos registros (nem todos historicamente verdadeiros) acerca de suas palavras e seus feitos. No contexto europeu e cristão da delimitação da Doutrina dos Espíritos (32 obras de Allan Kardec) não poderia ser diferente, posto que a quase totalidade dos Espíritos que dialogaram diretamente com o Professor francês – assim como os que se apresentaram nos textos manuscritos obtidos em vários outros lugares distintos da capital francesa e enviados, por carta, a Rivail-Kardec – nos legando ensinamentos e orientações, foram, quando encarnados, prelados ou, por vezes, santos, considerando a definição e interpretação mítico-católica de suas realizações, por parte da Igreja.

Pois logo na pergunta 625, da obra pioneira, “O livro dos Espíritos”, o emérito professor questionou qual seria o tipo mais perfeito que Deus teria oferecido à Humanidade, a fim de servir-nos de guia e modelo, no que ele recebeu a seguinte resposta (na tradução correta de Herculano Pires): “Vede Jesus” [1].

Nas questões sucedâneas, então, didaticamente, Kardec nos apresenta, sinteticamente, o alcance dos ensinamentos morais e espirituais, o conhecimento possível (em face dos nossos níveis de progresso, na Terra) das leis divinas ou naturais, e outros elementos relativos ao saber espiritual (frise-se, contemporaneamente, mas vinculado à sociedade e ao contexto do Século XIX) até o limite da compreensão da mente humana, desvelando-os.

Voltando às referências cristãs-católicas-protestantes, nos evangelhos canônicos e nas cartas subsequentes, os quais integram o chamado “O Novo Testamento”, há um olhar múltiplo sobre Jesus (já que, hoje, sabidamente, os textos foram baseados no “ouvi dizer” e nas tradições daquele povo antigo, pois nenhum dos evangelistas teria convivido de perto com Yeshua – apesar da “crença” cristã, dos mitos criados em relação ao Mestre e seu entorno e, também, da necessidade dos fiéis espíritas subscreverem as crenças católico-cristãs para dar maior sustentação aos relatos sobre o destacado Espírito. Vale dizer que há discrepâncias entre o Yeshua histórico e real e o Jesus Cristo mítico, sua natureza e seus ensinos, assim como o há no Alcorão e no Talmud, muitas afirmações díspares e incompatíveis com o pensamento kardeciano.

É preciso enaltecer, sempre, a não-aceitação de todo o conteúdo dos “quatro evangelhos” com as máximas, ideias, princípios e fundamentos espiritistas. Tanto o é que, num exame comparativo, você NÃO irá encontrar muitos versículos e capítulos transcritos/interpretados por Kardec no seu “O evangelho segundo o Espiritismo”, uma vez que os relatos evangélicos que foram deixados de lado apresentam total incompatibilidade com a Filosofia Espírita, pertencendo tão-somente à alegoria mítica e mística de “O Novo Testamento”, inteligentemente alinhavada para dar sustentação aos dogmas, sacramentos e mandamentos da religião cristã ocidental.

Repise-se, a esse respeito, o subtítulo dado pelo Professor francês, para o evangelho por ele publicado: “Contendo: a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação às diversas situações da vida” (na tradução exemplar de Herculano Pires [1], com marcações nossas).

Assim, é de se perguntar: – De qual Jesus estamos falando?

Se nos basearmos no conjunto de afirmações que não constam nem no “evangelho espírita” nem nos outros livros de Kardec (em especial, “O livro dos Espíritos”, “O Céu e o Inferno” e “A Gênese” – sendo que esses dois últimos associados ao evangelho podem ser tratados como a “tríade” de informações sobre Yeshua, na visão espírita, concebemos uma destacada diferenciação entre o Jesus de Nazaré (mais próximo, ideologicamente, ao que consta nas obras kardecianas) e o Jesus Cristo, religioso, místico e mítico, aceito pelas Igrejas. E, nas cartas de Paulo de Tarso, considerado o fundador do Cristianismo, Jesus é o ser divino, o filho (unigênito) de Deus, o cordeiro de Deus que retira os pecados do mundo, o salvador da Humanidade, em relação ao pecado original e, em suma, o Cristo (de Deus) [2]. É de se registrar, ainda, que os escritos paulinos são direcionados aos gentios [3] e objetivam a universalização da palavra do Rabi.

Os evangelhos sinóticos –  diz-se de ou cada um dos evangelhos pela sua similitude ou paralelismo – sabidamente escritos em diferentes épocas e não certamente pelos chamados evangelistas, apontam-nos enfoques diversos para a natureza e o direcionamentos dos ensinos de Jesus. Para Mateus, Jesus é o messias profetizado, direcionado aos judeus; para Marcos é o servo, o homem de ação, direcionado aos gentios; para Lucas, é o filho do homem, ser  humano, salvador da humanidade, sendo direcionado aos gregos e à cultura universal; para João, é o ser divino, apresentando-nos a cristologia de  uma igreja organizada.

Já no Alcorão, Jesus é um profeta e, portanto, um ser humano, com a mantença de todo aspecto místico e religioso que envolve o “missionário”. Posição contrária, todavia, possui o Talmud, embora este tenha pouco valor histórico. No livro, as adjetivações relacionadas a Jesus são sempre depreciativas: enganador, mago manipulador, discípulo inconveniente, gerado por uma mulher infiel, fundador de seita insignificante. Isto, resumidamente, frisando apenas alguns dos pontos.

Em contraposição ao Talmud, apesar destas serem descrições ainda eivadas de misticismo, estão os códices de Nag Hammadi, que nos apresentam várias faces de Jesus. Em especial o Evangelho de Tomé aborda um Jesus singular,  descrevendo os cristianismos nascentes, alguns inclusive gnósticos, que acabam auxiliando a compreensão do Jesus-homem, histórico, em estudo e contextualização do personagem.

Temos, portanto, o Jesus da fé e o Jesus-homem, principiologicamente antagônicos, pois a fé cristã é sacralizante e mística, enquanto a histórica, como deve ser a espírita – mas não o é, em razão dos seus praticantes –, é crítica e racional e pode oferecer pontos adicionais e verossímeis, que permitem a apresentação de um cenário abrangente, humanista e notadamente antropocêntrico, para conhecermos de fato Yeshua – um homem judeu campesino, iletrado, mas sábio (em decorrência, sabemos, de suas múltiplas vivências encarnatórias anteriores), com virtudes e defeitos, profundamente cativante com uma retórica pungente, em uma Palestina ocupada pelos romanos, onde a religião,  a política e a cultura encontravam-se em efervescência.

Apesar do sectarismo e do atavismo existentes nas instituições religiosas e no movimento espírita hegemônico, não há, em pleno século XXI, condições hábeis para, em termos de racionalidade científica e justificação individual-social, adotar-se e praticar-se a fé pela fé, da parte do ser, no mundo contemporâneo. Porque ao se fazer isso, se afasta do objetivo final da própria existência individual, o progresso, e, em consequência, do coletivo, enquanto sociedade e mundo, em face da progressividade das ciências, das filosofias e da moralidade no seio da humanidade, considerada a sequência de anos e séculos. O progressivo não comporta a fé cega e dogmática!

Considerando que o Jesus-homem, Yeshua bar Yosef, real e histórico, possui correspondência com a mundivisão – ou mundividência, na expressão herculanista [4] – espiritista, desde que seja o Espiritismo original, de Kardec, que afasta (o quanto possível, para a realidade dos homens cristãos do fim do Século XIX – e Kardec assim o era!) o dogmatismo, a mística e de todos os termos “sagrados”, para tornar crível a humanidade de Jesus, albergando os contextos verossímeis e racionais dos textos “evangélicos”, em nossas digressões atuais, em um ambiente paradigmático totalmente em consonância com o pensamento kardeciano.

Raros são os ensaios ou estudos isentos de dogmatismo e mística no Espiritismo-religião, hegemônico no Brasil e irradiado ao mundo. Mas, se faltam, de fato, legítimos historiadores espíritas, formados em cursos de Doutorado na área, tivemos pensadores como Deolindo Amorim, Herculano Pires, Krishnamurti de Carvalho Dias, entre outros, que nos forneceram algum alento a partir de suas análises não sacralizadas sobre Jesus.

Deolindo Amorim [5], por exemplo, enfatiza que a moral de Jesus basta à interpretação doutrinária, mas adverte que as demais facetas que envolvem o homem Jesus devem passar pelo escrutínio da verdade:

“[…] a parte moral do Evangelho permanece inatacável, enquanto as outras partes são objeto de controvérsias. O Espiritismo atem-se à parte moral como fundamento e como cúpula de todas as suas consequências. Quanto às outras facetas, cuja interpretação não tem caráter decisivo para o adiantamento espiritual do homem, compete à crítica histórica e religiosa esclarecer os pontos ainda obscuros, tanto quanto possível. Sob o ponto de vista histórico, é natural que se façam pesquisas de documentos ou de textos antigos, com a preocupação, aliás necessária, de corrigir interpretações equívocas.”

Herculano Pires, no Preâmbulo de “Revisão do Cristianismo” [6], propõe a necessidade do abandono do sectarismo religioso-místico e a adoção da plena compreensão dos ensinos morais:

“O Mahatma Gandi exclamou, ao ler os Evangelhos: “Como pôde uma árvore como esta dar os frutos que conhecemos?” Kalil Gibran Kalil viu Jesus de Nazaré encontrar-se com o Jesus dos Cristãos numa colina do Líbano, onde conversaram, e Jesus de Nazaré retirar-se murmurando: “Não podemos nos entender.” […] É tempo de compreendermos que Jesus de Nazaré não voltou das nuvens de Betânia, mas em espírito e verdade, para conduzir-nos a toda a Verdade Prometida” .

Krishnamurti de Carvalho Dias, em “O Culto e o Laço” [7], traz a corruptela dos ideais de Jesus pela necessidade da criação da identidade sagrada em detrimento do homem:

“A ideia pura, os ensinamentos de Jesus, foram asfixiados por um número incrível de adições e desfigurações, restando muito pouco da simplicidade original. […] Hoje, o que se chama de cristianismo e cristandade, moral cristã, Igreja cristã, nada mais tem a ver com o passado, são os mistérios e culto recauchutados, puramente láticos, místicos, rituais”.

Para um pleno entendimento de Jesus, conform Kardec, necessário é despir-se da mística e abandonar os mitos, pois os ensinos morais de Jesus dispensam tais conotações. Aos que creem e seguem os liames da religião cristã pari passu, inclusive numerosos adeptos  do Espiritismo, nada a lhes opor, pois afinal todos somos dotados de livre-arbítrio. Entretanto, respeitar e dialogar não significa a aderência à visão católica-cristã impregnada no meio espírita. Há, sempre, que se pontuar esta diferenciação.

Impõe-se a figura do homem de Nazaré justamente por sua natureza humana, sua simplicidade e, ao mesmo tempo, profundidade e amplitude. O que nós é legado, ao estudar a historicidade e a filosofia de Yeshua, distanciando-nos do componente mítico-místico, é a força contagiante dos seus ensinos, o que imprime uma marca indelével em sua figura. O Nazareno é, então, o gérmen da paz, do amor, do altruísmo, da humildade, da pureza de Espírito, sendo, assim, ainda, extremamente revolucionária, pois tanto quebrou os paradigmas em uma sociedade profundamente misógina e preconceituosa, àquele tempo e, como se a História continuasse se repetindo, infelizmente, em nossos dias.

Por isso, uma visão mais próxima quanto possível da realidade físico-fática-espiritual do “Ecce Homo” [8], seria alta e profundamente enaltecedora a força da vida e da ascensão do Espírito no mundo.

Referências:

[1] KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Trad. José Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE. 2004.

[2] A expressão “Cristo”, que não pertence ao nome de batismo nem a qualquer “apelido” consagrado por seus circunstantes à época de sua encarnação, foi uma invenção (neologismo) cristão. Sua origem é baseada no termo grego “Khristós”, que tem como significado o “ungido” ou o “escolhido por Deus”, representando, na junção entre a teologia do Antigo e do Novo testamentos, o Messias anunciado como libertador dos judeus.

[3] Paulo é realmente cognominado o “apóstolo dos gentios”, em razão de suas pregações se direcionaram aos povos não-judeus, conforme a retórica católica-cristã, em razão do “chamado do Senhor”, culminando na expansão evangélica por todo o mundo greco-romano. As principais referências a este epíteto estão em Atos (9:15; 22:21; e 28:28), na Carta aos Romanos (11:13), na Carta aos Efésios (3:8), na primeira Epístola a Timóteo (2:7), e na primeira Epístola aos Gálatas (14-16). A liderança, a influência e o legado de Paulo formaram comunidades que foram dominadas por grupos gentios. Estes adoravam o Deus de Israel, aderindo ao Código Moral judaico, todavia não adotaram as obrigações alimentares e demais rituais do Judaísmo, em face dos ensinamentos de Paulo.

[4] Herculano, no texto “O que é o Espiritismo?”, aposto no Capítulo II (“Filosofia e Espiritismo”), item II, do seu “Introdução à Filosofia Espírita”, Editora Paideia, 4. Ed, 2005, p. 19.

[5] AMORIM, D. O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas. Rio de Janeiro: CELD. 1988.

[6] PIRES, J. H. Revisão do Cristianismo. 2. Ed. São Paulo: Paideia. 1983.

[7] DIAS, K. C. O Laço e o Culto. São Paulo: DICESP 1985.

[8] “Ecce Homo” teriam sido as palavras em latim que o governador Pôncio Pilatos teria dito, para apresentar Jesus Cristo, flagelado e coroado de espinhos, aos judeus, em seu julgamento, de acordo com o Evangelho (cristão) de João (19:5), simbolizando, no nosso idioma “Eis o Homem” (em alusão ao “rei dos judeus” ou ao “senhor dos homens”), ainda que os registros da historiografia não sejam concordes com tal episódio.

Imagem de amurca por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Qual Jesus?, por Nelson Santos

  1. Excelente! Revisitou com maestria os caminhos que a história escreveu através dos homens de cada tempo, os saberes acerca da figura de Jesus. Eu precisaria de muitas encarnações e muita dedicação para conseguir alinhavar todos esses pensamentos, portanto, agradeço ao autor e ao ECK o envio desse trabalho, que engrandece a racionalidade progressista espírita.

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