Controle Universal? Sim, mas…, por Milton Medran Moreira

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Mais do que expressar uma concordância dos espíritos superiores por ele entrevistados, cada princípio espírita deveria estar claramente sustentado pela racionalidade.

“A opinião da maioria dos Espíritos é um poderoso controle para o valor dos princípios da Doutrina, mas não exclui o do julgamento e da razão cujo uso incessante todos os Espíritos sérios recomendam”.
Allan Kardec
(Revista Espírita, março/1868).

Elaborada por seres humanos, encarnados e desencarnados, a doutrina espírita tem como uma de suas características essenciais a de não se autoproclamar infalível.

Uma primeira objeção possível à afirmativa acima: “Mas, Kardec não escreveu que a origem da revelação espírita é divina?”. E logo: “Sendo divina não há de ser, necessariamente, perfeita?”.

Sem dúvida, como filosofia fundada na “lei natural”, que é a mesma “lei divina”, segundo o conceito exposto na questão 614 de “O livro dos Espíritos”, e integrando uma área afeta ao conhecimento – existência, imortalidade e comunicabilidade dos espíritos – os princípios apregoados pelo espiritismo podem ser interpretados como de origem divina. Entretanto, como também assinalou Allan Kardec, “sua elaboração é fruto do trabalho do homem” (“A Gênese” – “Natureza da Revelação Espírita”).

A infalibilidade é um predicado assumido pelas religiões, não pelo espiritismo. Aquelas sustentam que seus livros sagrados, dos quais derivam os respectivos dogmas, se constituem na própria “palavra de Deus”, e, por consequência, são verdades irrefutáveis e não sujeitas à contestação humana, ainda que firam a razão.

O fundamento das religiões é a fé. O do espiritismo é a razão. Talvez esteja justamente aí o principal elemento distintivo entre religião e espiritismo.

Mesmo, contudo, que em toda a história da humanidade, a crença na imortalidade do espírito tenha sido uma constante e figure na cultura de todos os povos, nunca, antes do advento do espiritismo, foi elaborada uma obra tão vasta e tão consistente, versando sobre Deus, o universo, o homem e sua natureza, origem e destino, construída, toda ela, a partir do diálogo entre as inteligências humanas que partiram para outras dimensões (espíritos) e aquelas que aqui permanecem provisoriamente (encarnados).

Toda a teoria espírita, assim, é calcada numa realidade estritamente natural. Diferente, pois, das religiões cujos dogmas e ensinamentos destes derivados integram a dimensão sobrenatural. Para o espiritismo não existe o sobrenatural, assim como inexiste a divisão sagrado/profano. Toda a realidade, percebida ou não, compreendida ou ainda não, relativa a Deus, ao espírito e à matéria, integra a Natureza, obra grandiosa, primariamente advinda de uma “inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas”, da qual emanam as leis naturais.

Sendo, então, o espiritismo uma obra humana, embora integrando a ordem divina, porque fundada na lei natural, como atribuir foros de verdade absoluta aos princípios por ele adotados?

Na “Revista Espírita” de abril de 1864, Allan Kardec formula alguns conceitos que se fariam igualmente presentes na introdução de sua obra “O Evangelho segundo o Espiritismo”, reconhecendo a diversidade de níveis de conhecimentos entre os espíritos. Salienta que eles, “por força da diferença existente em suas capacidades, estão longe de estar individualmente na posse de toda a verdade”. Reconhece ainda que, na erraticidade, pululam “Espíritos vulgares” que “não sabem mais que os homens e até menos que certos homens”.

Justamente por reconhecer a relatividade e até a precariedade de conhecimento e de atributos morais dos espíritos, tanto quanto dos encarnados, naquele e em outros escritos, propõe como critério para a aceitação das mensagens obtidas dos espíritos o que chama de “Controle Universal do Ensino dos Espíritos”. Argumenta que “quando o mesmo princípio é ensinado em muitos pontos por diferentes Espíritos e médiuns estranhos uns aos outros e isentos de idênticas influências, pode-se concluir que ele está mais próximo da verdade do que aquele que emana de uma só fonte e é contradito pela maioria”. Observe-se “mais próximo da verdade” não significa “verdade absoluta”.

Menciona ainda Kardec as severas condições que impôs a si próprio, nesse sentido, “a receber comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados pelos mais diversos pontos da Terra”. E que, só aplicando aquele critério, relativamente a cada um dos princípios doutrinários presentes em sua vasta obra, pôs-se “em condições de observar sobre que princípio se estabelece a concordância”.

Está aí, pois, o fundamento teórico daquilo que Kardec denominou de controle universal dos ensinos dos espíritos: a ampla concordância de espíritos capazes de demonstrar seriedade, em comunicações recebidas por médiuns igualmente sérios, em diferentes partes do mundo.

Seria, entretanto, isso suficiente para que um determinado princípio fosse incluído como integrante da doutrina espírita?

Certamente não. E aí a justificativa para o título, um tanto fora de padrão, do presente artigo, acrescendo a conjunção adversativa “mas” a uma afirmativa fundamental de Kardec, precisamente para, a partir daquela conjunção, introduzir outra afirmação que o mesmo Kardec sempre fez questão de expor juntamente com o princípio da concordância do ensino: a submissão de cada um desses princípios “ao exame severo da razão, ao bom senso e à lógica”. (“O Que é o Espiritismo” – Cap. II).

Numa palavra, mais do que expressar uma concordância dos espíritos superiores por ele entrevistados, cada princípio espírita deveria estar claramente sustentado pela racionalidade.

Não basta, pois, que haja concordância de espíritos aos quais, a juízo nosso, é atribuída a condição de “superiores”. Eles, mesmo se os considerarmos com atributos intelectuais e morais acima dos nossos, e ainda que seus ensinos coincidentes cheguem até nós por meio de médiuns diferentes e distanciados geograficamente uns dos outros, não devem, de pronto, ser tidos por infalíveis. Sobre os espíritos, mesmo os “superiores”, deixou Kardec escrito em “Obras Póstumas”, ter aprendido que “nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral”.

O espiritismo, bem mais que revelação, é razão. A revelação destituída da razão, ainda que sustentada por muitos e aceita por tantos, é sempre suscetível de trazer consigo os mitos, as crenças infundadas, a precariedade de percepções daqueles que a ditam ou de quem a recebe e interpreta.

Uma doutrina que vê Deus como “inteligência suprema” necessariamente há de considerar a razão ou a consciência, na qual “está escrita a lei de Deus” (“O livro dos Espíritos”, q. 621), como a mais eloquente comprovação da presença divina no ser inteligente.

O espiritismo, por sua origem e natureza, é filho da razão. Surgido no período pós-iluminista, quando se consolidava no Ocidente cristão a autonomia do saber, livre dos grilhões da fé cega, é uma proposta espiritualista/racionalista.

Como muito bem salientou Maurice Herbert Jones, em artigo recentemente resgatado e publicado na página de Facebook do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, sob o título de “Escola ou Igreja?”, “nenhuma filosofia espiritualista é mais ventilada, assectária, progressista e racional que o Espiritismo cujos princípios fundamentais, pela sua logicidade e clareza, possuem características que podem ser facilmente universalizadas”.

Por tudo isso, mais do que a quantidade de espíritos a dizerem algo, importa a qualidade do que dizem eles, medida essa qualidade pelo metro do bom senso. Ou, como salientou Kardec: “O primeiro controle é, sem sombra de dúvida, o da razão à qual é preciso submeter, sem exceção, tudo quanto vem dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos que se possuem, por mais respeitável que seja a sua assinatura, deve ser rejeitada” (“Revista Espírita”, abril, 1864, “Controle Universal do Ensino dos Espíritos”).

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