O CUEE – Autoridade e Controle? por Célia Aldegalega

Tempo de leitura: 5 minutos

Poderá o CUEE colocar demasiada pressão na interpretação e avaliação das comunicações recebidas? Quer dizer, não se revelam comunicações que não tenham sido replicadas por outros espíritos, ou não se tomam como válidas?

O que caracteriza um estudo sério é a continuidade que se lhe dá.
Allan Kardec
(Introdução de “O livro dos Espíritos”, 55ª edição, FEB, Trad. Guillon Ribeiro, p. 31.)

Em meio a basta controvérsia espiritualista e científica sobre a comunicabilidade dos Espíritos, e a sua própria existência, entre diversas perspectivas sobre a popularização de fenômenos como as famosas mesas girantes, em ambiente de exaltação populista da espetacularidade da medianimidade, que propiciava fraude, mistificação, superstição, e exploração financeira, Allan Kardec empreendeu criar um método que permitisse aferir a legitimidade e a qualidade de comunicações recebidas. De igual modo, procurou criar instrumentos reguladores do exercício da atividade medianímica, ao categorizar médiuns e Espíritos, elencar tipos de mediunidade, e dispensar orientações à conduta de médiuns com faculdades desenvolvidas (ostensivos). Produziu assim, o primeiro manual de medianimidade conhecido, sistematizando todo o processo, “O livro dos Médiuns”, mítico e referencial dentro e fora do movimento espírita.

Contrastando com a popularidade de médiuns e sessões mediúnicas, é total o mutismo de Allan Kardec quanto aos médiuns colaboradores no processo de elaboração das obras, que resultam da sua seleção de comunicações dimanadas pela equipe espiritual que implementou, e/ou colaborou, no advento do Espiritismo. A omissão da menção aos médiuns colaboradores nas obras, sequer sob a forma de agradecimento, antes sendo aludidos em prefácio através de justificativas para não serem mencionados, causa-nos, hoje em dia, alguma estranheza ética, e despoletou conflito com a médium Celine Japhet, que se declarou responsável por três quartos dos conteúdos da obra seminal do Espiritismo, “O livro dos Espíritos”. A fixação da norma “dar de graça o que de graça recebeis” caminha em contramão à exploração financeira do exercício da mediunidade, quer em consultas, quer em entretenimento, e a retirada de protagonismo aos médiuns, é estratégia para credibilizar a prática no contexto do Espiritismo.

Allan Kardec zela por tornar respeitável, legitimar e normalizar o exercício da mediunidade, que, apesar de tendencialmente empolado na percepção pública sobre o Espiritismo, não o traduz ou resume, antes constituindo o seu aspecto experimental. O título da obra icônica “O livro dos Espíritos” já destaca o tema mais impactante e desafiador do Espiritismo, ao remeter a sua autoria para os Espíritos, assim apresentado como revelação divina, a que o próprio Kardec acrescentaria a faceta científica.

Kardec empreende a criação de uma metodologia experimental, de caráter científico, desde logo comprometida pela imaterialidade do objeto de estudo. No entanto, a prática investigatória é exequível através da observação e da comparação, e Kardec cria e torna a “Revista Espírita” (a “Révue Spirite: Journal d’ Études Psychologiques”, edição mensal, a partir de janeiro de 1858), o repositório de investigações e pesquisas, e ponto convergente de materiais provenientes de todo o mundo.

Uma reflexão sobre o papel desempenhado por Kardec, frequentemente apelidado de codificador, o compilador das comunicações dos Espíritos, podendo afigurar-se aos menos acostumados com a doutrina espírita, o de mero redator. No prefácio da primeira edição de “O livro dos Espíritos”, em 1857, posiciona-se como agente passivo, mas na introdução da primeira edição da Revista, embora sustente que os conceitos não são seus, e se remeta a intérprete das instruções dos Espíritos, assume proatividade, ao definir métodos de investigação. Aliás, o simples fato de lançar a revista, posiciona-o como investigador. A revista é o laboratório possível!

Atente-se ainda que as perguntas são da sua autoria – Kardec lança, ou propõe, as questões a que os Espíritos respondem, embora também se refira a comunicações espontâneas. Pensando bem, é Allan Kardec quem dirige todo o processo do ponto de vista organizativo, sendo a orientação e formulação das perguntas, também, sua iniciativa e prerrogativa.

Noutra época do espiritismo brasileiro, os Espíritos passaram a escrever integralmente os conteúdos das inúmeras psicografias editadas… E o formato pergunta-resposta terá ficado relegado para os ambientes de sessões mediúnicas privadas.

Ao constituir a “Revista Espírita” e ao manter correspondência com adeptos do Espiritismo em todo o mundo, além das viagens que fazia, inteirando-se pessoalmente, para ele convergiam os dados, que podiam assim ser cruzados, analisados e selecionados. Sublinhe-se que a “Revista Espírita” é lançada meses depois da primeira edição de “O livro dos Espíritos”, que, em 1860, é reeditado na sua versão definitiva, com mais que o dobro das questões da primeira edição (501-1019).

O Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos (CUEE) assenta na replicação de comunicações produzidas por diversos espíritos, através de diversos médiuns, em diferentes territórios nacionais e internacionais, concomitantemente. Observação e comparação. A recorrência do conteúdo das comunicações, ou mesmo a unanimidade, como Kardec afirma, certificaria a sua veracidade, e o seu valor. É apresentado simultaneamente na edição de abril de 1864 da “Revista Espírita” e em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, sob o título lapidar “Autoridade da Doutrina Espírita”, e o subtítulo, “Controle Universal dos Ensinamentos dos Espíritos”. O título impositivo e afirmativo denota propósito de legitimação da doutrina através de um método replicado da ciência, enunciado em subtítulo, com reforço na palavra “controle”. Em rigor, o extenso texto está mais próximo de formato manifesto, onde afirma a universalidade da doutrina espírita, do que de explicitação de critérios metodológicos, sendo a razão o primeiro critério de avaliação dos conteúdos, até à enunciação:

A única garantia segura do ensino dos Espíritos está na concordância das revelações feitas espontaneamente, através de um grande número de médiuns, e em diversos lugares (Kardec, Allan. “O Evangelho segundo o Espiritismo”, Trad. de J. Herculano Pires, ed. Centro Espírita Perdão e Caridade, Lisboa, 2009, p. 24).

O que o leva a ser entendido como o melhor método possível, mas não necessariamente infalível. Um método mais próximo de ser dedutivo, do que o almejado experimentalmente. Em última instância, Kardec designa a opinião universal como juiz supremo, o que, na nossa atual idiossincrasia, é discutível.

E, apesar da diretriz da máxima de Erasto, como não lamentar a possibilidade de perda de dez verdades? E quantas mentiras podem ter circulado, circulam e circularão, quando a aplicação do CUEE é dispensada, a favor da credibilidade e referenciação pública dos médiuns, que, progressivamente, se tornaram a creditação dos conteúdos junto da opinião pública?

Poderá o CUEE colocar demasiada pressão na interpretação e avaliação das comunicações recebidas? Quer dizer, não se revelam comunicações que não tenham sido replicadas por outros espíritos, ou não se tomam como válidas?

Hoje em dia, apesar das ligações cibernéticas, para onde convergem informações e relatórios sobre atividade mediúnica na comunidade espírita? Há troca de informações entre centros de todo o mundo? Há notícias sobre comunicações simultâneas ou próximas que reflitam o mesmo conteúdo, a mesma mensagem? É possível criar esse ponto de convergência? Quem/ou o que tutelaria e administraria essas informações?

A aplicação do CUEE, para aqueles que o aplicam, restringe-se à atividade interna do centro espírita? É razoável esperar-se que vários Espíritos se manifestem num mesmo local, pronunciando o mesmo? O que se divulga sobre comunicações de Espíritos na comunidade e fora dela? Como se fosse totalmente leiga, estranho que apenas atoardas [1] de médiuns populares tenham surgido sobre a pandemia de Covid. Não seria de esperar múltiplas comunicações numa situação tão peculiar?

Que categorias de Espíritos estão comunicando? Consabidamente, Espíritos familiares manifestam-se em sessões públicas, porventura privadas, bem como Espíritos perturbados, e obsessores, no exercício de conhecidas funções dos médiuns espíritas. Há relatos e informações sobre comunicações de Espíritos cujas características encaixem no perfil de Espíritos superiores?

E, finalmente, como agrega o Espiritismo estudos e investigações contemporâneos no campo da medianimidade de áreas como a Parapsicologia, por exemplo?

Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. Kardec (“A Génese”, Capítulo 1, Item 55).

Nota do ECK:
[1] Atoardas – boatos, rumores, notícias vagas.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “O CUEE – Autoridade e Controle? por Célia Aldegalega

  1. Estar paripasso com a ciência não é estar de acordo com tudo sem uma análise seria baseada na lógica, na razão e bom senso porque nem a ciência é exata sem um estudo e análises contínuas para a repetição do efeito perante a mesma causa.

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