Sobre o Controle Universal do Ensino dos Espíritos, por Leonardo Paixão

Tempo de leitura: 7 minutos

Leonardo Paixão

***

No decorrer da História do Espiritismo no Brasil, se consolidou a irrestrita confiança em médiuns e em Espíritos, bem como a falta de criticidade nos adeptos da Doutrina Espírita, notadamente em relação às comunicações dos Espíritos, o que deu (e ainda dá) margem a muitas mistificações. Rever o método de Kardec e adaptá-lo aos dias atuais, com o emprego da metodologia científica de hoje pode contribuir seja com a pesquisa seja com o exame das comunicações mediúnicas.

***

Um tema que permanece mal entendido no movimento espírita brasileiro e até entre escritores espíritas é este do Controle Universal do Ensino dos Espíritos. Buscaremos aqui trazer algumas referências para o entendimento da questão e não deixando de pensar a metodologia científica de hoje e como ela pode ser aplicada no caso.

É preciso primeiro se compreender que os Espíritos não sabem tudo. Não falaríamos isso aqui caso observássemos que os espíritas estivessem bem imbuídos do sentido dessa afirmação. No entanto, não é isso que percebemos nas falas de muitos que dizem, quando para elas se colocam discordâncias e/ou questionamentos: “Mas, o Espírito tal falou”; “Discordar do Espírito tal é desrespeito não só a ele, mas também ao médium”.

O que falta a espíritas que assim pensam? Estudo sério e bem meditado da Doutrina Espírita, dizemos.

Então, o que Allan Kardec disse com relação às suas observações dos Espíritos? Vejamos:

Um dos primeiros resultados que colhi de minhas observações foi que os Espíritos nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuem nem a plena sabedoria, nem a ciência integral […]. Reconhecida desde o princípio, esta verdade me preservou do grave escolho de crer na infalibilidade dos Espíritos e me impediu de formular teorias prematuras, tendo por base o que fora dito por uns ou alguns deles.

O simples fato das comunicações com os Espíritos, dissessem eles o que dissessem, provava a existência do mundo invisível ambiente. Já era um ponto essencial, um imenso campo aberto às nossas explorações, a chave de inúmeros fenômenos até então inexplicados. O segundo ponto, não menos importante, era que aquela comunicação permitia se conhecesse o estado desse mundo, seus costumes, se assim nos podemos exprimir. Vi logo que cada Espírito, em virtude de sua posição pessoal e de seus conhecimentos, me desvendava uma face daquele mundo, do mesmo modo que se chega a conhecer o estado de um país, interrogando habitantes seus de todas as classes, não podendo um só, individualmente, informar-nos de tudo. Compete ao observador formar o conjunto, por meio dos documentos colhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados e comparados uns com os outros. Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como houvera feito com homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados. (KARDEC, 1993, p. 269, grifos nossos).

Conforme se pode verificar nas palavras do Codificador do Espiritismo, além dele não dar crédito à informação mesmo de alguns Espíritos que poderiam convergir, ele deixa claro que o trabalho de colecionar, coordenar e comparar os documentos (para os dia de hoje essas fontes são textos, gravações em áudio e/ou vídeo, atas, depoimentos) é nosso e devemos fazê-lo. Para isso, temos de nos preparar e, se não nos consideramos aptos, que deixemos esse trabalho a outros preparados.

Na Introdução de “O evangelho segundo o Espiritismo”, Kardec faz uma explanação sobre o Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE – assim nos referiremos a ele a partir de agora) e este, verdadeiramente, não é fácil de ser feito, porque é preciso se ter um ambiente controlado, onde médiuns não se conheçam e estejam distantes geograficamente e perguntas feitas aos Espíritos Superiores ou outros, porém, sérios e verdadeiros (ver a Escala Espírita, n. 100 e seguintes, em “O livro dos Espíritos”) sejam respondidas e, depois de analisadas e convergindo e tendo lógica, se terão informações a que se pode dar crédito.

Vejamos o que disse Allan Kardec sobre o ensino dos Espíritos: “A única garantia segura do ensino dos Espíritos está na concordância das revelações feitas espontaneamente, através de um grande número de médiuns, estranhos uns aos outros, e em diversos lugares” (KARDEC, 2003, p. 18).

Veja-se que Kardec fala de revelações espontâneas, mas pode-se também perguntar diretamente aos Espíritos como ele próprio o fez. Em “O livro dos Médiuns”, no item 266, nos orienta o Professor francês:

Submetendo-se todas as comunicações a um exame escrupuloso, perscrutando-se-lhes e analisando o pensamento e as expressões, como é de uso fazer-se quando se trata de julgar uma obra literária, rejeitando-se, sem hesitação, tudo o que peque contra a lógica e o bom senso, tudo o que desminta o caráter do Espírito que se supõe ser o que se está manifestando, leva-se o desânimo aos Espíritos mentirosos, que acabam por se retirar, uma vez fiquem bem convencidos de que não lograrão iludir. Repetimos: este meio é único, mas é infalível, porque não há comunicação má que resista a uma crítica rigorosa. Os bons Espíritos nunca se ofendem com esta, pois que eles próprios a aconselham e porque nada têm que temer do exame. Apenas os maus se formalizam e procuram evitá-lo, porque tudo têm a perder. Só com isso provam o que são.

Eis aqui o conselho que a tal respeito nos deu São Luís:

“Qualquer que seja a confiança legítima que vos inspirem os Espíritos que presidem aos vossos trabalhos, uma recomendação há que nunca será demais repetir e que deveríeis ter presente sempre na vossa lembrança, quando vos entregais aos vossos estudos: é a de pesar e meditar, é a de submeter ao cadinho da razão mais severa todas as comunicações que receberdes; é a de não deixardes de pedir as explicações necessárias a formardes opinião segura, desde que um ponto vos pareça suspeito, duvidoso ou obscuro.” (KARDEC, 1998, p. 235-236, nossos destaques).

Não vemos tais ocorrências no movimento espírita brasileiro, pelo contrário, o que vemos é a aceitação do que ditam os Espíritos tidos por Mentores, Protetores, Guias, sem maior exame. Médiuns como Chico Xavier e Divaldo Pereira Franco podem ter uma moral inatacável. No entanto, o que os Espíritos por eles escreveram é a opinião, a visão deles e não a verdade inquestionável, pois como pudemos ler no que Kardec trouxe de suas observações é que cada Espírito desvenda uma parte do mundo invisível, o que, claro, não quer dizer que tudo quanto este ou aquele Espírito disser é verdade só porque ele é bom. As orientações do Espírito São Luís, acima reproduzidas, deixam clara a nossa necessidade de realizar o pensar crítico com relação às mensagens que trazem os Espíritos sejam estes quais sejam e venham, pelos médiuns que vierem. Há, porém, uma análise histórica sobre isso:

O protagonismo dos médiuns brasileiros

A presença do Espiritismo no Brasil foi reforçada em 1907 pela fundação do Colégio Allan Kardec, em Sacramento, Minas Gerais, por iniciativa do médium Eurípedes Barsanulfo. Dotado de múltiplas possibilidades medianímicas, Eurípedes tornou-se um ícone do Espiritismo em terras mineiras, de onde seus alunos se espalharam por várias regiões do país levando consigo suas ideias e a sua maneira particular de praticar o Espiritismo, fortemente ancorada na ação mediúnica e no uso da “corrente magnética”, uma prática derivada do “magnetismo animal” de Mesmer. Disso resultou uma enorme quantidade de instituições que adotam o seu nome e o seu modo de atuação como inspiração para as suas atividades.

Na década de 1930 o Espiritismo receberia um impulso ainda maior a partir do trabalho desenvolvido por outro médium extraordinário, o também mineiro Chico Xavier, que publicou em 1932 um livro constituído de 60 poemas cuja autoria era a atribuída a 14 poetas brasileiros e portugueses já falecidos, o Parnaso de Além Túmulo. Castro Alves, Guerra Junqueiro, Augusto dos Anjos, retornavam pelas suas mãos com a mesma poesia, seguidos depois por Humberto de Campos com a riqueza das suas crônicas, trazendo agora uma visão mais espiritual da vida, com o mesmo estilo, o mesmo vocabulário [16].

Emerge nos anos 1950 a figura de Divaldo Franco, um médium baiano com uma fala eloquente e um trabalho social expressivo junto a uma comunidade pobre na periferia da cidade de Salvador. Com sua oratória brilhante, ele leva a mensagem espírita para todo o Brasil e, gradativamente, também para o exterior, alcançando os cinco continentes e estimulando a formação de grupos inspirados no modelo brasileiro de Espiritismo.

Ao mesmo tempo em que Chico Xavier se destaca pela psicografia, Divaldo se destaca pela oratória. A FEB, que se propunha a dar continuidade ao trabalho estruturante de Allan Kardec, procura se ancorar no brilho desses expoentes, que passam a falar, cada um em seu campo, em nome do Espiritismo. Com isso o protagonismo se transfere da instituição para a figura dos médiuns. Se com Kardec, na França, o nome dos médiuns sequer era citado, aqui eles se tornaram os porta-vozes do pensamento espírita, falando diretamente ao povo.

[16] Rocha, Alexandre Caroli. A Poesia Transcendente de Parnaso de Além Túmulo, pag. 15. Diss. Mestrado, Unicamp, São Paulo/SP, 2001. (MORAES, 2023. p. 26).

Vemos assim que, no decorrer da História do Espiritismo no Brasil, se consolidou a irrestrita confiança em médiuns e em Espíritos, bem como a falta de criticidade nos adeptos da Doutrina Espírita, notadamente em relação às comunicações dos Espíritos, o que deu (e ainda dá) margem a muitas mistificações. Isto também resultou no fato de que muitos médiuns não trabalhassem a questão do ego ferido, quando suas comunicações são questionadas. Mas, estaria tal estado de coisas presente somente por questões históricas? A História investiga o passado para explicar o presente, mas também ela está por se fazer, a ser construída no momento atual. Portanto, cabe aos dirigentes espíritas, ao nosso ver, em especial, trabalharem para que os membros dos Grupos/Casas que dirigem construam o pensamento crítico. Do contrário se permanecerá na mesma e com o reforço de dirigentes espíritas, ainda que tenham formação educacional em nível superior.

No início deste artigo, colocamos que faríamos referência à metodologia científica atual. No caso da comunicação dos Espíritos, não sabemos de trabalho de revisão por pares, método esse adotado como critério para a publicação de trabalhos acadêmicos. Na revisão por pares cega simples, os autores não sabem quem são os revisores, mas estes sabem quem são os autores. Na revisão duplamente cega, nem os autores nem os revisores sabem os nomes uns dos outros… Uma forma de (re)construirmos a criticidade no movimento espírita brasileiro, talvez, possa ser essa, em que uma comunicação mediúnica recebida seja psicograficamente, psicofonicamente (e gravada), psicopictograficamente, possa ser enviada a quem esteja apto/a a fazer tal análise sem que essa pessoa saiba o nome ou os nomes dos médiuns e da instituição em que as comunicações mediúnicas possam ter sido recebidas e que o ou os médiuns também não saibam para quem as mensagens por eles intercambiadas foram direcionadas.

Pensando a esse respeito, a metodologia científica de hoje pode contribuir com a pesquisa e o exame de comunicações mediúnicas, verificando-se como ela pode ser aplicada no caso.

Referências:

KARDEC, A. Obras Póstumas. 26. Ed. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1993.

KARDEC, A. O evangelho segundo o Espiritismo. 59. Ed. São Paulo: Lake, 2003.

KARDEC, A. O livro dos Médiuns. 20. Ed. São Paulo: Lake, 1998.

MORAES, E. I. O Processo Mediúnico: Possibilidades e Limites na Produção do Conhecimento Espírita. Goiânia: Aephus, 2023.

Nota do Autor: Leonardo Paixão é Orador, Escritor, Pesquisador, Magnetizador, médium espírita, presidente e Fundador do Grupo Espírita Semeadores da Paz, Campos dos Goytacazes, RJ. Como escritor espírita tem dois livros editados pela Editora Virtual O Consolador (EVOC): “Reflexões Doutrinárias” e “Novas Reflexões Doutrinárias”, onde estão presentes algumas digressões filosóficas fundamentadas nas pesquisas que realizou. Participou como conferencista do Encontro de Grupos Espíritas de Campos e Região (RJ), em suas seis edições. Escreveu artigos diversos no jornal online “O Rebate”. Participou de live com o escritor e pesquisador Guilherme Velho falando sobre o tema “Obsessão”. Participou de duas temporadas do programa “Caminhos do Infinito” pelo canal TVB, no Youtube. Escreve artigos para o blog Semeadores da Paz  (gesemeadoresdapaz.blogspot.com).

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.