Impressões sobre o lançamento da obra original, por Beto Souza

Tempo de leitura: 6 minutos

Beto Souza

Os documentos encontrados na França esclareceram as dúvidas sobre a realidade da adulteração ocorrida na obra “A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo” e demonstraram a urgência em estudar as diferenças entre as edições.

Em dezembro de 2017 ouvi os primeiros rumores sobre o trabalho de Simoni Privato, divulgado dois meses antes no 4º Congresso Espírita Sul-Americano em Bogotá. Ainda não havia tradução para o português e alguns poucos que tinham tido a possibilidade de ler “El Legado de Allan Kardec” deixavam escapar aqui e ali alguns trechos da pesquisa.

A quinta edição da obra “A Gênese, Revisada, Corrigida e Ampliada”, que acreditávamos ter sido modificada pelo codificador em 1868 antes de desencarnar, na verdade havia sido elaborada em 1872, pelos continuadores de sua obra. Para nossa surpresa, praticamente todas as traduções brasileiras foram baseadas no conteúdo adulterado, com exceção de uma versão digital disponibilizada pelo professor Carlos de Brito Imbassahy em 1999 e outra de Albertina Escudeiro Sêco, publicada pelo Centro Espírita Leon Denis em 2010.

Não era culpa das editoras, pois ninguém sabia que aquele conteúdo era póstumo e modificado. A primeira tradução de “A Gênese” no Brasil foi publicada em 1882, já baseada na oitava edição francesa, que era cópia da quinta edição adulterada. O conteúdo de 1868 estava esquecido, pois o considerávamos corrigido pelo autor. Não sabíamos que Allan Kardec jamais havia modificado a obra.

Em março a União das Sociedades Espíritas de São Paulo – USE promoveu um seminário com Simoni Privato Goidanich e, na ocasião, sua obra “O Legado de Allan Kardec” foi lançada em português. As cópias dos documentos encontrados na França esclareceram as dúvidas sobre a realidade da adulteração ocorrida na obra “A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo” e demonstraram a urgência em estudar as diferenças entre as edições.

Resgate do Conteúdo Original de “A Gênese”

Era necessário o resgate do conteúdo original de Allan Kardec e a Fundação Espírita André Luiz (FEAK) aceitou o desafio. Com a intermediação do professor Marcelo Henrique foi realizado contato com o professor Carlos de Brito Imbassahy (autor da primeira tradução do conteúdo original para o português em 1999) e os direitos de publicação foram cedidos para a FEAL.

26 de maio de 2018 – Data Histórica

No dia 26 de maio de 2018, a edição comemorativa aos 150 anos da obra “A Gênese” foi lançada conforme a original de 1868, com a tradução primorosa do professor Imbassahy e notas do autor e pesquisador espírita Paulo Henrique de Figueiredo, além de textos de Simoni Privato Goidanich, Júlio Nogueira e Marcelo Henrique.

O evento foi prestigiado por espiritas de todo o país e do exterior, além de transmitido ao vivo pelas redes sociais.

Quatro palestrantes dividiram o palco, ampliando nosso entendimento sobre assunto e seus desdobramentos no movimento espírita mundial.

Simoni Privato apresentou parte de sua pesquisa com os documentos encontrados na França. Observamos a cópia do depósito legal do conteúdo de 1868 e os registros de impressão das quatro edições realizadas durante a existência física de Allan Kardec, sendo a última em fevereiro de 1869, um mês antes de seu falecimento, comprovando que ele não havia alterado a obra. Na sequência, as cópias da declaração de impressão e de novo depósito de conteúdo demonstraram que as alterações foram efetuadas apenas em 1872. Ao final de sua exposição Simoni exibiu ao público um exemplar da nova edição, conforme a original, finalmente reencarnada no Brasil.

Paulo Henrique de Figueiredo nos surpreendeu com exemplos de trechos suprimidos da obra. Conduziu-nos para a França daquele período quando duas versões sobre a evolução espiritual estavam em confronto.

De um lado a continuação da visão ancestral de encarnações punitivas, onde nascemos pagando pelos erros do passado e precisando nos reformar para não aumentar nossas dívidas.

De outro lado a revelação revolucionária do Espiritismo, com o livre arbítrio surgindo gradualmente conforme cresce o nosso entendimento das leis divinas gravadas na nossa consciência e a responsabilidade relativa ao nosso grau de adiantamento.

Paulo Henrique apontou onde as conclusões morais de Allan Kardec de 1868 foram removidas nas alterações de 1872, gerando dúvidas e incentivando o misticismo. A restauração do conteúdo original reestabelece o entendimento de que o livre arbítrio nasce com a inteligência racional e não é uma dádiva, mas uma conquista do indivíduo.

Júlio Nogueira focou sua apresentação no aspecto jurídico dos direitos morais do autor, o único que legalmente poderia alterar a obra. Júlio teceu considerações importantes sobre a herança do codificador, que fechou o conteúdo da obra, ordenou a produção das matrizes no final de 1868 e as utilizou em fevereiro de 1869 na impressão de dois mil exemplares da quarta edição de “A Gênese”.

Ao desencarnar, o autor deixou para sua única herdeira, a esposa Amélie Boudet, o conteúdo publicado em quatro edições e as matrizes de 1868 prontas, que ela concedeu quatro meses depois para a recém-fundada Sociedade Anônima, responsável pela continuação das publicações espiritas. As matrizes utilizadas em 1872 eram obviamente diferentes das recebidas como herança e foram produzidas em algum momento entre julho de 1869 e dezembro de 1872, após o falecimento do autor e de forma ilegal segundo a legislação francesa da época e os tratados internacionais.

Marcelo Henrique nos trouxe reflexões sobre o momento decisivo em que nos encontramos como espíritas, numa rara sinergia pelo trabalho de resgate do Espiritismo, visto como um todo.

O professor Marcelo nos trouxe uma visão de conjunto, encarnados e desencarnados presentes ombro a ombro naquele evento histórico, no reencontro com o codificador em teoria e prática.

Não há Espiritismo sem Espíritos, num movimento espírita que hoje fala muito dos Espíritos e pouco com os Espíritos, sendo que este norte precisa ser retomado em grupos sérios interpretando o espiritismo de forma sistêmica, sabendo que a doutrina espírita não é estática, como Allan Kardec também não era estático em suas obras.

Encerrada a parte inicial foi realizado um breve intervalo.

A curiosidade

Alguns não continham a curiosidade e já passavam a verificar a nova edição, analisando sua folha de rosto, os detalhes de sua tiragem inicial de dois mil exemplares, a separação elegante dos capítulos, a fonte adequada, numeração das notas e o doce perfume de livro novo, que os amantes da boa leitura tanto sabem apreciar. Retornamos ao salão de eventos para acompanhar o anúncio oficial do Centro de Documentação e Obras Raras (CDOR).

Rumores e Lendas sobre o “Dossiê Canuto de Abreu”

Quando iniciei minhas pesquisas sobre a história do espiritismo logo ouvi os boatos, rumores e lendas sobre o “Dossiê Canuto de Abreu”. Seria uma arca contendo escritos originais e inéditos do próprio punho de Allan Kardec, escondida e protegida pelos descendentes de um importante pesquisador espírita brasileiro.

Era praticamente uma lenda, mas começou a tomar traços de realidade quando o campeão brasileiro de marcas e pilotos de 1985, Luiz Lian de Abreu Duarte tomou seu lugar no evento.

Ele não vinha pilotando um Ford Escort, mas como o responsável pela transmissão do legado espírita de seu avô, Canuto de Abreu.

Nascido em Taubaté (SP), no ano de 1892, Silvino Canuto de Abreu concluiu seu primeiro curso superior aos dezessete anos em Farmácia. Na sequência dos estudos obteve mais dois diplomas, de Direito e Medicina.

Fluente nos idiomas clássicos, fundador da Associação Paulista de Homeopatia e pesquisador do Espiritismo, viajou pela Europa formando seu acervo com mais de vinte mil exemplares raros. Conheceu Leon Denis e acompanhou os trabalhos do grupo mediúnico de Gabriel Delanne, como amigo estimado.

A Guerra

Abreu encontrava-se em Paris durante a Segunda Guerra Mundial e nas vésperas da invasão nazista um grupo de espiritas franceses buscou seu auxílio para uma missão de extrema importância.

Ele deveria proteger uma arca com documentos, textos e cartas originais de Kardec.

Salvá-los da guerra e preservar sua integridade para o futuro do movimento espírita. No Brasil distante da destruição da guerra, a missão foi cumprida. Canuto foi o fiel guardião dos manuscritos por toda sua vida e no seu desencarne, em 1980, transmitiu o legado para sua família, como uma promessa solene.

A criação do CDOR envolvia diretamente o resgate do acervo de Canuto de Abreu, passado por sua família para os cuidados da Fundação Espírita André Luiz. Com laboratórios para a restauração e preservação de todo o acervo histórico além da digitalização e tradução dos originais para finalmente serem publicados integralmente.

Ao se descerrar uma cortina todos os presentes tiveram o privilégio de observar uma pequena fração daquele tesouro histórico. Entre fotos e textos encontravam-se numa moldura azul pequenas páginas amareladas pelo tempo, escritas numa caligrafia miúda e ágil… Um rascunho com riscos, correções e pequenos apontamentos…

Esperamos que os trabalhos de pesquisa do CDOR [1] sejam protegidos pelos encarnados e desencarnados envolvidos, que consigam sintonia somando suas forças ao conjunto e retirem antigos véus com novos aprendizados, quando enfim chegar o momento da esperada publicação dos resultados.

Nota do ECK:

[1] Depois de algum tempo o acervo foi confiado à guarda da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que está catalogando o material para futura disponibilização, universal e gratuita ao movimento espírita bem como a qualquer outro interessado, espírita ou não.

Imagem de ian kelsall por Pixabay

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