A obra original, atual e contemporânea, por Marcelo Henrique

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Marcelo Henrique

Estamos, aqui, destarte, paralisando as consequências danosas, até aqui, à memória do Codificador e ao conteúdo de sua obra, denunciando e laborando no resgate do texto original, legando às atuais e futuras gerações a recomposição do edifício espírita, sem desnaturação.

Todo espírita sensato que se debruça sobre o conteúdo completo das obras de Allan Kardec percebe os elementos que caracterizaram o chamado “bom senso encarnado”, designação que o amigo Camille Flammarion deu a Rivail no funeral deste, em célebre discurso. Kardec era metódico, sistemático, organizado, racional, detalhista, tenaz, perspicaz, equilibrado, entre outras de suas virtudes.

Allan Kardec desenvolveu progressivamente a elaboração dos conceitos fundamentais da Doutrina Espírita no decorrer da publicação mensal da “Revue Spirite”, de 1858 a 1869, considerado como verdadeiro laboratório experimental. A obra, como ele mesmo destacou, jamais veio “pronta e acabada”, completa. O intercâmbio propiciado pela sucessão de diálogos, seja os espontâneos, seja os derivados de evocação, foi um enorme quebra-cabeças ou uma colcha de retalhos, ambos compostos ou tecidos com denodo e delicadeza de detalhes pelo Codificador. Não raro eram as respostas obtidas em alguns colóquios o ponto de partida para novos e sucessivos questionamentos. Uma espécie de maiêutica espiritual. À medida que os assuntos iam se desenvolvendo e que ocorria o aprofundamento dos temas, Kardec pensava em obras específicas que poderiam reunir as informações em diferentes contexturas. Assim se deu com “O livro dos Espíritos”, a obra primordial, mas também ficou marcante nas demais, de especificidade e singularidade, distintas umas das outras, como é o caso de “A Gênese”, a última deste segmento, cujo sesquicentenário ora se comemora, com o resgate do pensamento original do Professor francês.

Este contexto, verdadeiramente, merece de nós, que estudamos e defendemos o patrimônio intelectual e cultural de Allan Kardec, sob a proteção da juridicidade à época, especial atenção, remontando aos mesmos critérios de lógica e bom senso existentes na personalidade do educador de Lyon.

A obra que se está a resgatar – frise-se: em sua edição genuína e sem qualquer tipo de alteração posterior e de terceiros –, “A Gênese”, não recebeu, no conjunto de fascículos e volumes da citada “Revue”, qualquer anúncio, por parte de Rivail, de que se estava preparando uma “quinta edição”, sobretudo com as reformulações e adulterações que se constata, no exercício de comparação entre ela e as quatro anteriores, todas idênticas. Poder-se-ia falar, no contexto da publicidade de obras e edições sequenciais, que a segunda, terceira e quarta edições, posto que idênticas totalmente à primeira, da obra em tela, não seriam, propriamente, edições “novas”, mas republicações da inicial, para atender à necessidade de sua comercialização e aquisição por parte dos muitos interessados, por todo o mundo, em razão de estar esgotada a edição imediatamente anterior.

A quinta edição – que passou a ser tida como “definitiva”, equivocadamente (agora o sabemos) – violenta, assim, de modo capital o patrimônio intelectual de seu autor. No Brasil, por exemplo, as muitas editoras que levaram a cabo a publicação de suas próprias traduções, valeram-se da quinta edição e, portanto, proporcionaram durante o final do século XIX (posto que a primeira edição brasileira data de 1882), assim como por todo o século XX e parte do século XXI, em nosso Brasil, o conhecimento dos espíritas acerca de um conteúdo que, lamentavelmente, não é o da disciplina do pensamento de Allan Kardec. Em muitos dos trechos “alterados”, inclusive, há a desnaturação completa de princípios e fundamentos do Espiritismo, tal qual nos legou o pensador lionês, promovendo, assim, a incorporação de teses que não se coadunam com o “edifício espírita” e propiciam, drasticamente, a perda de objeto, ainda que parcialmente, da obra publicada, em relação a todo o contexto espírita.

A atitude desmedida e incompatível com o genuíno método kardeciano, que foi perpetrada por aqueles que estavam de posse do acervo espírita – os continuadores da SPEE –, é a materialização de algo que o próprio Kardec já havia conceituado em sua obra, quando tratou dos Cismas – Constituição Transitória do Espiritismo, publicada na Revue de dezembro de 1868, praticamente um ensaio premonitório daquilo que se materializaria com a adulteração de A Gênese. Diz o Codificador que o Espiritismo “[…] terá, sobretudo no começo, que lutar contra as ideias pessoais, sempre absolutas, tenazes, lentas a se ligar às ideias de outrem, e contra a ambição dos que, a despeito de tudo, querem ligar seu nome a uma inovação qualquer; que criam novidades unicamente para poder dizer que não pensam e não fazem como os outros; ou porque o seu amor próprio sofre por só ocuparem um lugar secundário; ou, enfim, que veem com despeito um outro fazer o que não fizeram e, além disso, triunfar” (destaques nossos).

Estamos, aqui, destarte, paralisando as consequências danosas, até aqui, à memória do Codificador e ao conteúdo de sua obra, denunciando e laborando no resgate do texto original, legando às atuais e futuras gerações a recomposição do edifício espírita, sem desnaturação. E é o próprio Rivail quem estabelece os requisitos deste trabalho: “Para assegurar a unidade no futuro, uma condição é indispensável: é que todas as partes do conjunto da doutrina estejam determinadas com previsão e clareza, sem nada deixar no vago; para isto procedemos de maneira que os nossos escritos não possam dar lugar a nenhuma interpretação contraditória, e procuraremos que seja sempre assim” (grifou-se).

Afirmou Henri Sausse, biógrafo de Kardec e o primeiro a contestar a edição modificada: “se o Mestre tivesse tocado na Gênese, se ele mesmo tivesse inserido essas mudanças tão grandes que constituem quase uma nova obra, ele nos teria advertido. Para essas edições, revistas, corrigidas e aumentadas, ele teria escrito um novo prefácio, como ele o fez para O Livro dos Espíritos” (nossos os destaques). Isto foi publicado no Le Spiritisme (1ª quinzena, fevereiro, 1885).

Como há fatos, e os mesmos estão suficientemente demonstrados no conjunto das brilhantes e extensas pesquisas, estamos na esteira do que prelecionou o Codificador, em contraposição: “Na ausência dos fatos, a dúvida é a opinião do homem sensato”. E tal homem sensato, diante dos fatos, procura entendê-los e buscar a recomposição do estado natural, original e verdadeiro.

Em homenagem a Allan Kardec, nós, espíritas estudiosos e sensatos, permanecemos com a obra original, atual, contemporânea, fiel à dele!

Imagem de Jean-Philippe Fourier por Pixabay

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