Afinal, o que é o Espiritismo Laico? por Salomão Jacob Benchaya

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Salomão Jacob Benchaya
Foto de aboodi vesakaran na Unsplash

“Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor, inevitavelmente, se teria equivocado. Eis porque simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral” (Allan Kardec – “Revue Spirite”, Dezembro/1868).

Adjetivação, origem e contexto
A rigor, o Espiritismo não deveria ser adjetivado. A expressão “Espiritismo laico” só existe por necessidade comunicacional de distinguir-se do “Espiritismo cristão (ou evangélico)”, segmento majoritário liderado pela FEB. No movimento espírita, o primeiro é constituído pelos que consideram o Espiritismo sob uma perspectiva laica, humanista, livre pensadora, progressista, pluralista e alteritária. A expressão “Espiritismo laico” é tão imprópria como “Espiritismo cristão” ou “Espiritismo religioso”, mas permite identificar as posturas decorrentes, na prática espírita, de uma ou de outra posição. Queiramos ou não, é forçoso admitir que os espíritas se agrupam por preferências e particularidades formando segmentos ou vertentes, tais como, religiosos ou evangélicos ou cristãos, laicos ou não religiosos, roustainguistas, ubaldistas, ramatizistas, armondistas, apometristas, chiquistas, divaldistas etc.

O Espiritismo laico e livre-pensador contrapõe-se ao modelo dominante de Espiritismo religioso, cristão e/ou evangélico. Enquanto o Espiritismo religioso apregoa a tríade ciência-filosofia-religião, os laicos preferem ciência-filosofia-moral, embora admitam que Kardec nunca propôs essa tripartição. Kardec classificava o Espiritismo como ciência filosófica de consequências morais. A definição de Espiritismo dada por Kardec na Introdução do livro “O que é o Espiritismo” expressava essa condição epistemológica.
No Capítulo I de “O evangelho segundo o Espiritismo”, quando Kardec idealizou a “Aliança da Ciência e da Religião” sua intenção era de que o Espiritismo se tornasse um traço de união entre as mesmas. Ou seja, o Espiritismo forneceria à Religião argumentos racionais que a fortaleceriam e à Ciência, o elemento espiritual de que esta carece para a melhor compreensão dos fenômenos que estuda. Mas, para isso, não necessitaria, o Espiritismo, se transformar em uma religião.

Na segunda metade do Século XIX, as ideias fomentadas pelo racionalismo e pelo livre-pensamento originadas com a Revolução Francesa preocupavam a Igreja, que começava a perder o controle sobre o seu rebanho. Kardec percebia o crescente descrédito das religiões e o anseio da sociedade por uma espiritualidade desvinculada do dogmatismo clerical. Até então, o domínio da Igreja no terreno do espiritualismo era completo e apregoava uma moral heterônoma.

A primeira acusação de que o Espiritismo surgira como uma nova religião partiu da própria Igreja na pessoa do Abade François Chesnel, com quem Kardec polemizou através do periódico “L’Univers” (e que foi descrito por Kardec, na “Revue Spirite”, de maio/1869).

A publicação das obras que se seguiram ao lançamento de “O livro dos Espíritos” e “O livro dos Médiuns” – em especial “O evangelho segundo o Espiritismo”, “O Céu e o Inferno” e “A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo”, todas enfatizando uma acentuada relação entre a revelação espírita e o cristianismo – contribuiu, de certa forma, para a formação de um movimento de caráter religioso, notadamente no Brasil, onde a nova doutrina encontrou um solo fértil para a sua disseminação.

Mas, o que é o Laicismo?
O Laicismo, ou secularismo, é uma doutrina filosófica que surgiu na França como reação à intromissão religiosa na política, defendendo a autonomia das atividades humanas em relação à religião. O Laicismo ganhou prestígio no fim do século XIX e no início do século XX, mas, por contrariar os interesses da Igreja, foi por esta combatido e acusado de estimular a antirreligiosidade e o ateísmo.

Todavia, ser laico não é ser antirreligioso, nem ser ateu. Ser laico é ser “arreligioso”, ou seja, isento, autônomo, neutro em relação à religião, embora tolere, respeite e conviva com esta. A religião é um fenômeno cultural da humanidade e como tal deve ser considerada.

A Laicidade é uma conquista civilizatória associada ao livre-pensamento, daí encontrar séria oposição nos regimes políticos totalitários, quer sejam estes relacionados a alguma confissão religiosa, ou a uma ideologia política. O Brasil é um Estado laico desde a Constituição de 1891, ou seja, se propõe a garantir a liberdade religiosa, o direito do cidadão de ter (ou não) religião, não devendo interferir nos cultos e não devendo sofrer influência de natureza religiosa. Se a Constituição é respeitada, isso é outra questão.

Laicismo não é materialismo
É um equívoco confundir Laicismo com materialismo.

Há uma ideia, equivocadamente difundida no meio espírita, por desinformação ou má fé, de que os espíritas laicos seriam ateus, materialistas, céticos, sem sentimentos ou sem afetividade. E que o Espiritismo laico seria constituído por espíritas “duros”, “secos”, que não se sensibilizam diante do sofrimento humano, ao ouvir uma música melodiosa ou apreciar a Natureza, que não fazem preces, que não são solidários e caridosos, que não choram com suas perdas afetivas, etc. Há quem, inclusive, classifique os laicos como “não espíritas”! E isso, pasmem, proveniente de espíritas ditos “cristãos”.

Kardec e a religião
Kardec recusou classificar o Espiritismo como religião, definindo-o como filosofia espiritualista e ciência filosófica, mas valorizou o sentimento religioso do homem e o papel da religião. Colocou, inclusive, o Espiritismo como subsídio para o fortalecimento das religiões e para a complementação da Ciência, sem, todavia, ser uma religião. Em “O que é o Espiritismo”, Kardec assevera que das reuniões espíritas podem participar adeptos de todas as religiões, destacando, com isso, o caráter de neutralidade da filosofia espírita.

Por ocasião do discurso de abertura da sessão anual comemorativa dos mortos, realizada na Sociedade de Paris, em 1º de novembro de 1868, Kardec afirmou:
“No sentido filosófico, o Espiritismo é religião e nós nos ufanamos disso porque é a doutrina que funda os elos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as mesmas leis da natureza”.

Os que utilizam essa afirmativa de Kardec para defender o aspecto religioso da Doutrina Espírita, estão desconsiderando o fato de que o Codificador se referia ao “resultado produzido pela comunhão de pensamentos que se estabelece entre pessoas reunidas com o mesmo objetivo” (“Revue Spirite”, dezembro/1868). Kardec conceitua o “sentido filosófico” da palavra religião quando diz, no mesmo discurso:
“Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembleias religiosas deve ser a comunhão de pensamentos; é que, com efeito, a palavra religião quer dizer laço. Uma religião, em sua acepção nata e verdadeira, é um laço que religa os homens numa comunidade de sentimentos, de princípios e de crenças”.
Assim, fica evidente que “religião”, para Allan Kardec, não tem o sentido que comumente lhe é atribuído, de “religar o homem a Deus” – uma interpretação católica, que remete ao mito do “pecado original”, e da “expulsão do paraíso”, incompatíveis com o Espiritismo, embora convenientes para a Igreja no seu pretendido papel de intermediária entre Deus e o homem – mas, sim, o de “laço” social resultante da comunhão de pensamentos que o Espiritismo inspira entre os que o estudam e praticam. Portanto, uma relação horizontal e laica.

O Espiritismo não nega a dimensão religiosa do ser humano, mas prefere não se revestir do caráter de religião para não assimilar desta o comportamento sectário, exclusivista, dogmático que, definitivamente, ele – o Espiritismo – recusa. Além de tudo, como crença religiosa, ele se descredencia para o exame e para a discussão na Academia.

O uso da expressão
Uma das recomendações do I Congresso Espírita Internacional, celebrado em Barcelona, Espanha, em setembro de 1888, foi:
“O Congresso Espírita recomenda um constante esforço para difundir o LAICISMO por todas as esferas da vida. A absoluta liberdade do pensamento, o ensino integral para ambos os sexos e o cosmopolitismo como base das relações sociais”.

Essa manifestação veio corroborar o pensamento de Allan Kardec, que, afirmou, repetidas vezes, não ser o Espiritismo uma religião. Foi, todavia, após a publicação do livro “Espiritismo Laico”, de David Grossvater, na Venezuela, em 1966, que se popularizou a expressão “espíritas laicos”.

O Laicismo espírita no Brasil
A autonomia e a laicidade inerentes ao Espiritismo logo seriam corrompidas por alguns continuadores de Kardec, particularmente por influência da obra “Os Quatro Evangelhos – Revelação da Revelação”, de Jean Baptiste Roustaing, advogado contemporâneo de Kardec, assessorado pela médium Émilie Collignon.

Os primeiros líderes espíritas brasileiros eram, em sua maioria, extremamente católicos e roustainguistas. A adoção da obra de Roustaing, pela FEB, desde os seus primórdios, impingiu ao Espiritismo brasileiro a feição heterônoma das religiões salvacionistas, radicalmente discordantes da proposta original de Allan Kardec. Na Bahia, onde surgiu o primeiro centro espírita no Brasil e o primeiro jornal espírita no Brasil – O Eco de Além-Túmulo – o seu fundador, Luiz Olímpio Teles de Menezes, católico fervoroso, amigo de Roustaing, convertido ao Espiritismo, escreveu, em polêmica travada com o Padre Juliano José de Miranda, do Arcebispado de Salvador, que “o Espiritismo e o Catolicismo são a mesma Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo: somente estão mudados os tempos e as palavras; O Espiritismo é o tradutor fiel, pelos enviados de Deus, das doutrinas do Evangelho”. Mais recentemente, o médium Francisco Cândido Xavier e o seu espírito-guia Emmanuel tiveram decisivo protagonismo no desenvolvimento da religião espírita.

No final do século XIX, o movimento espírita já se dividia entre “místicos” e científicos”, os primeiros liderados por Bezerra de Menezes e os outros pelo jornalista e professor Afonso Angeli Torteroli, fundador do Centro da União Espírita do Brasil, a primeira instituição unificadora do movimento espírita nacional. Nessa ocasião, aconteceu a primeira tentativa de resgate do caráter não religioso do Espiritismo. Dos embates travados, resultou a vitória dos religiosos. A partir da gestão de Bezerra de Menezes à frente da FEB, em 1895, formatou-se o modelo de religião espírita que logo seria assimilado e assumido pelo movimento espírita, para o que contribuíram as características culturais da população brasileira.

O Movimento Universitário Espírita (MEU), de São Paulo, no final da década de 1960, também viria a discutir a laicidade do Espiritismo. Esse movimento, entretanto, passaria a ostentar um caráter mais social e político, sob influência do pensamento filosófico dos pensadores argentinos Humberto Mariotti (1905 – 1982), com sua obra “Parapsicologia e Materialismo Histórico”, e Manuel S. Porteiro (1881 – 1936), com seu livro “Espiritismo Dialético”, além de outras influências marxistas, como David Grossvater e seu “Espiritismo Laico”, Eusínio Lavigne e Souza do Prado com o livro “Os espíritas e as questões sociais”, e Jacob Holzmann Netto (1934 – 1994) com “Espiritismo e Marxismo”, obras que serviram de inspiração para o discurso crítico, laico e politizado dos universitários espíritas da época. Esse movimento, entretanto, teve curta duração.

Em 1978, a defesa do caráter laico do Espiritismo ressurge com grande ímpeto, com o chamado “grupo de Santos”, principalmente através do jornal “Espiritismo e Unificação”, órgão oficial da União Municipal Espírita de Santos (UMES) e da LICESPE Editora. Esse grupo, liderado pelo jornalista e psicólogo Jaci Regis, era também integrado por José Rodrigues, Egydio Régis, Henrique Diegues e outros. Vários deles eram integrantes da UMES, mantinham forte atuação na União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP) e instituíram a campanha denominada de “espiritização” combatendo a igrejificação do Espiritismo e promovendo a cultura espírita.

Nessa época, a Federação Espírita do Estado do Rio Grande do Sul (FERGS) era conduzida pelo grupo oriundo da Sociedade Espírita Luz e Caridade (SELC) – atual Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA) –, integrado por Maurice Herbert Jones, Salomão Jacob Benchaya e Milton Rubens Medran Moreira, entre outros. Em 1986, o autor deste artigo, ao início de seu segundo mandato como presidente da FERGS, lançou o “Projeto: Kardequizar”, em sintonia com a campanha “espiritização” deflagrada por Jaci Regis e seu grupo. Em outubro de 1986, com o lançamento, pela FERGS, da edição de número 402 da revista “A Reencarnação”, cuja capa estampava a expressão “Espiritismo: Ciência e Filosofia. Até que ponto é Religião?”. Disto deriva uma forte reação conservadora e, na eleição seguinte, uma nova diretoria assume a Federação e reafirma o caráter religioso da Doutrina Espírita, naquela entidade.

Neste contexto, o Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), idealizado por Jaci Regis e realizado bienalmente, de 1989 a 2017, pelo Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS) teve destacada importância na consolidação do segmento laico e livre-pensador espírita em terras brasileiras. Esse evento contribuiu para o retorno da Confederação Espírita Pan-americana (CEPA) ao Brasil – do qual estava ausente desde 1949, após a realização do seu II Congresso Pan-americano, no Rio de Janeiro. Esse evento havia sido organizado com o apoio da Liga Espírita do Brasil, mas contrariava os interesses da Federação Espírita Brasileira (FEB) que, reunindo alguns dirigentes de federativas estaduais presentes no Rio de Janeiro, instituiu o chamado “Pacto Áureo”, expresso numa Ata que orienta o movimento espírita federado no Brasil.

A CEPA – Associação Espírita Internacional, antiga Confederação Espírita Pan-Americana, fundada em 1946, na Argentina, herdeira da tradição espírita espanhola de características acentuadamente livre-pensadoras, onde se destacaram José María Fernandez Colavida e Amália Domingo Soler, e que encontraram ressonância entre pensadores sul-americanos como Cosme Mariño, Manuel Porteiro, Humberto Mariotti, David Grossvater, Luiz di Cristóforo Postiglioni e, mais recentemente, Jon Aizpúrua, dentre outros, sempre se manteve distante do religiosismo vigente no “Espiritismo à brasileira”, sendo hoje a instituição mais representativa da vertente doutrinária laica e livre-pensadora.

Felizmente, o movimento espírita, mais amadurecido, aos poucos se distancia do modelo hegemônico e imobilizante. Líderes e pensadores identificados com o genuíno projeto kardeciano compõem uma nova força que deverá impulsionar o Espiritismo a assumir a sua verdadeira identidade e a se libertar das amarras religiosas para exercer o seu papel junto à Humanidade.

* Artigo originalmente publicado no Blog “Ágora Espírita”, dezembro de 2020. Texto ligeiramente adaptado.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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