O direito moral e a garantia da integridade da obra, por Júlio Nogueira

Tempo de leitura: 6 minutos

Júlio Nogueira

As prerrogativas do direito moral, de respeito e de paternidade subsistem mesmo depois da morte do seu autor, a fim de garantir a preservação da obra contra tentativas de alteração, de má utilização ou de supressão no nome do autor.

Colocados tais fatos, há interesse em examinar as questões do depósito legal da obra e do direito moral frente ao direito autoral, já que ambas as questões geram efeitos na situação em discussão.

O sistema de depósito legal tem sua origem em França quando, em 1537, o rei Francisco I, através da Ordonnance de Montpellier, decretou como expressamente proibida a venda de livros, a todas as impressoras e livreiros do reino, dos quais não tivesse sido entregue ao menos um (01) exemplar à biblioteca real do Castelo de Blois.

A Ordonnance tinha por objetivo tanto a identificação de obras dignas de memória quanto a contenção da disseminação de ideologias protestantes através do controle do sistema de impressões do reino.

A partir do século XIX, o Decreto Imperial francês de 05/02/1810, sob o pretexto de conferir a função de proteção à propriedade literária, reformulou a utilização do sistema da autorização prévia e depósito legal, respectivamente, como instrumento de controle da impressão e da comercialização das obras impressas.

Posteriormente, com a implementação da Convenção de Berna, em 1886, todos os países signatários, entre os quais a França e o Brasil, buscaram uma forma mais racional de proteção ao direito autoral sem, no entanto, deixar de utilizar o depósito legal para formar um acervo cultural nacional.

Na situação específica da 1ª edição francesa do livro “A Gênese”, o tipógrafo de Allan Kardec providenciou junto ao Ministério do Interior da França a autorização mediante a declaração n. 9460, de 07/10/1867, através da qual manifestou a intenção de imprimir 3000 exemplares. Como não houve oposição por parte de nenhum dos ministros, foi então autorizada a sua impressão. Foi realizado daquela obra o depósito legal n. 61, de 04/01/1868, dois dias antes que o livro estivesse disponível para venda [1].

Já na 5ª edição francesa, o tipógrafo foi encarregado por Pierre-Gaëtan Leymarie para providenciar a citada autorização mediante declaração n. 10769, de 19/12/1872, através da qual manifestou a intenção de imprimir 2000 exemplares de uma edição que havia sido “revista, corrigida e aumentada”. Por isso, como o conteúdo da 5ª edição era diferente daquele da 1ª, 2ª, 3ª e 4ª edições, fez-se necessário realizar um novo registro oficial dessa 5ª edição do livro “A Gênese”, o que foi feito através do depósito legal n. 9181, de 23/12/1872 [2].

Tudo isso evidencia e comprova que, ao ser realizado um novo depósito legal do livro, em 23/12/1872, está-se diante de uma obra nova (revisada, corrigida e aumentada), e, portanto, similar, mas, ainda assim, diversa da original.

O problema dos mais graves que se impõe a esta questão é que Allan Kardec faleceu em 1869, mas agora se sabe que o requerimento de autorização de publicação e depósito legal da obra alterada foi realizado 1872, ou seja, mais de 03 (três) anos depois do seu falecimento, quando houve a solicitação de autorização para publicação e o depósito legal dessa 5ª edição francesa do livro “A Gênese”, o que inviabiliza a informação que até então circulava que teria sido Allan Kardec quem supostamente teria solicitado pessoalmente das autoridades públicas francesas a autorização para a impressão e realizado o depósito legal dessa obra modificada.

Some-se ainda a esta questão de alta gravidade outro fato relevante, que é a completa ausência da informação na sucessão hereditária de Allan Kardec sobre uma suposta autorização dele para que se fizesse alteração de conteúdo no livro “A Gênese”, pois em França, desde aquela época, a alteração de uma obra após a morte do autor só poderia ser realizada mediante autorização expressa deste mesmo autor apurada na sua sucessão hereditária [3]. No caso examinado não se vê no testamento [4] ou no inventário [5] de Allan Kardec qualquer respaldo jurídico, autorização ou ainda simples menção sobre a publicação de nova edição de “A Gênese” com revisões, correções e alterações, até mesmo porque em nenhum desses instrumentos sucessórios foi evidenciada qualquer instrução para que, após a morte de Allan Kardec, houvesse a publicação do livro “A Gênese” revisado, corrigido e aumentado.

Portanto, como o falecimento, o testamento e o inventário de Allan Kardec ocorreram antes do pedido de autorização para publicação e o depósito legal da 5ª edição de “A Gênese”, e neles não havia qualquer menção de autorização para publicar obra com revisões, correções e alterações, é possível extrair as seguintes conclusões:

a) Não foi Allan Kardec quem solicitou a autorização de publicação e o depósito legal da 5ª edição;
b) As alterações realizadas em A Gênese após o falecimento de Allan Kardec somente poderiam ser consideradas juridicamente válidas como originadas da vontade deste, se no procedimento sucessório fosse apresentada a autorização ou indicativo apto a reconhecer estas alterações como vontade do autor;
c) Na situação examinada não foram apresentados no testamento ou inventário quaisquer autorizações ou indicativos que apontassem no sentido de que as alterações seriam da vontade de Allan Kardec.

Deste modo, resta agora enfrentar o direito moral como garantia da integridade da obra original aplicada mesmo no caso de obras que caíram em domínio público, como é o caso do livro “A Gênese”.

O direito moral em matéria de direito autoral é identificado através do aspecto da idoneidade do conteúdo da obra ou do artista. A isso se denomina ato de criação ou fato gerador do direito moral, o qual impede qualquer alteração à obra original via acréscimo ou supressão não autorizada pelo autor, e garante ainda ao autor o direito de ter o seu nome creditado junto a ela. Tem, portanto, duplo objetivo: o de identificar o seu autor e o de levar ao conhecimento do consumidor a criação, tal como por ele concebida, pois somente é dado ao autor o direito de alterar a sua própria obra.

Portanto, as prerrogativas do direito moral, de respeito e de paternidade subsistem mesmo depois da morte do seu autor, a fim de garantir a preservação da obra contra tentativas de alteração, de má utilização ou de supressão no nome do autor.

Nem aquela presunção de que os herdeiros e sucessores do autor sejam as pessoas mais indicadas para velar pelo resguardo da integridade e genuinidade da obra resulta verdadeira, já que são bastante numerosos os casos em que aqueles não manifestam a necessária isenção de ânimo, compromisso com o sucedido ou superioridade intelectual indispensável para dar fiel cumprimento às intenções do criador da obra, não faltando mesmo os que vejam aí uma oportunidade para dar vazão a sentimentos de hostilidade, de desrespeito, ou simplesmente concedam primazia às suas preferências, nem sempre em harmonia com a intenção do falecido.

É importante fixar que uma legislação ciosa do patrimônio intelectual dos seus jurisdicionados deve proteger o direito moral post mortem, de maneira a garantir a proteção das obras sem a vontade ou mesmo contra a vontade dos herdeiros ou cessionários, porque a personalidade do autor sobrevive para o direito através da obra da qual é a sua emanação. Para realizar a proteção das obras mesmo após a morte do autor foi que o Homem lançou mão do direito moral e encarregou-lhe dessa missão póstuma.

Reconhece-se ordinariamente que uma obra caiu em domínio público quando ultrapassado em média de cinquenta a setenta anos após a morte do seu autor, a depender da legislação vigente em um país.

No entanto, ainda assim, no âmbito internacional, a UNESCO realizou no ano de 1979, em Paris, uma discussão para aplicar no Direito Internacional parâmetros com vistas a preservar o direito moral do autor e o consequente respeito e à integridade das obras caídas em domínio público, tendo já naquela época concluído que [6]:
– A expiração do prazo de proteção ao direito de autor e, portanto, o fato de que as obras do espírito caiam no domínio público, não deve ser considerado como licença para que as obras sejam desfiguradas.

1 — com referência ao autor: preservação da paternidade da obra e de sua integridade, os «condensados», adaptações ou quaisquer outros tipos de modificação do original, deverão ser claramente indicados ao público;
2 — com relação ao público: preservação de seus direitos de livre acesso à informação e, sobretudo, à informação correta;
3 — sobre as futuras gerações: no sentido de que lhes seja resguardado o acesso a obras não deturpadas e que, através da mensagem cultural autêntica dos autores do passado, o patrimônio mundial seja protegido.

Assim, é aplicável no caso examinado o direito moral como garantia da integridade da obra, mesmo quando se trata de obra submetida a domínio público, como é o caso do livro “A Gênese”. No caso, atendendo a este direito, deve ser obstada a circulação dos livros “A Gênese” que estejam tomando como base a 5ª edição francesa, e, também, as traduções nela baseadas.

Notas do Autor:

[1] GOIDANICH, Simoni Privato. “O Legado de Allan Kardec”. USE/CCDPE, 2018, páginas 80 e 81.
[2] Op. Cit. Páginas 164 a 166.
[3] MENEZES, Joyceane Bezerra de. JUNIOR, Vicente de Paulo Augusto de Oliveira Junior. Limites ao direito autoral post mortem. “Revista de Direitos Fundamentais e Democracia”. V. 11. N. 11. Curitiba: UniBrasil, 2012. P. 415.
[4] GOIDANICH, cit. Páginas 115 a 117.
[5] GOIDANICH, cit. Páginas 124 e 125.
[6] CHAVES, Antônio. O Direito Moral após a Morte do autor. “Revista Forense”. V. 298. N. 83. Rio de Janeiro: GEN JURÍDICO, 1987. P. 428-429.

Nota do ECK:
Artigo publicado como parte da “Apresentação” da edição de “A Gênese”, editada pela FEAL, com base na primeira edição autêntica, em francês, publicada por Kardec. Reprodução autorizada pela Editora.

Imagem de Nina Evensen por Pixabay

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