A gênese de “A Gênese”, por Marcelo Henrique

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Marcelo Henrique

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“O Espiritismo é uma questão de essência; ligar-se à forma seria uma puerilidade indigna da grandeza do assunto. Eis por que os centros diversos que estiverem imbuídos do verdadeiro espírito do Espiritismo deverão estender-se a mão fraterna e se unirem para combater seus inimigos comuns: a incredulidade e o fanatismo” (“Revue Spirite”, Dezembro, 1868, “Constituição Transitória do Espiritismo”).
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Porque são apaixonantes as teses – e as antíteses, a ela acostadas – ficamos, nós, humanos, imperfeitos, à espera das sínteses. Afinal, assim nossos mestres escolares nos apresentaram, em distintos momentos de nossa trajetória educacional, os princípios e os preceitos das ciências.

Quando Allan Kardec chamou o Espiritismo de Ciência, definiu-lhe o objeto (Espírito) e estabeleceu uma peculiar metodologia para tratar, de forma lógico e racional, os temas espirituais, valendo-se de termos novos e, ao lado disso, de ressignificações para termos já conhecidos (de filosofia, de ciências e da religião). Num parâmetro de humanidade, nosso interesse em descortinar o Espírito seria exatamente a partir das relações travadas entre os seres, compreendidos os dois mundos (o físico, material e o espiritual, imaterial).

Em “O Céu e O Inferno”, o desenvolvimento da teoria e o grande volume de comunicações permitiu ao Codificador concluir a teoria moral, o que fez concatenando a observação dos fatos – as comunicações que reuniu na segunda parte – com a teoria da moral autônoma que apresentou na primeira parte, superando as interpretações equivocadas sobre a vida futura, baseadas nos dogmas religiosos.

Com “A Gênese”, sua obra mais “madura”, Kardec esperava estabelecer uma genuína tese espírita – ao lado de suas demais obras tidas como fundamentais – para responder as principais questões físicas, metafísicas e ontológicas da Ciência e da Filosofia. Não satisfeito, compôs um título denso e diversificado para incluir, no escopo de análise espiritista, os milagres (de Jesus) e as predições (também do Nazareno). Assim, é perfeitamente adequado dizer-se que o livro é, na verdade, um três-em-um, porque trata da Origem do Universo (a gênese), dos fenômenos mediúnicos e anímicos (os milagres) e do futuro da humanidade (as predições).

Este não é um artigo para “dissecar” os derradeiros livros rivailianos (porque ele nunca deixou de ser o Professor Rivail). E sim, para tratar da gênese dessas suas últimas obras. Acompanhe-nos!

Enquanto “O Céu e o Inferno” foi concebido em agosto de 1865, A gênese de “A Gênese”, isto é, a concepção ocorreu em janeiro de 1868, no mês de janeiro. Publicadas, como as demais, de sua lavra e autoria intelectual – já que os desencarnados (Espíritos) que ditaram inúmeras psicografias que ilustram as trinta e duas obras, entre livros e revistas, não são, para nenhum país, considerados autores. Vige, no Direito Internacional, reconhecido pela totalidade dos povos e nações, o princípio de vigência da personalidade jurídica da pessoa humana – desde o nascimento, com vida até a morte física. Após esta, portanto, nenhum Espírito possui “direitos autorais” nem pode ser “responsabilizado” pelo que disse ou escreveu (obviamente, “post-mortem”, por meio dos instrumentos, a que a Ciência Espírita chama de MÉDIUNS).

Desta exegese – também internacional, constante da Convenção de Berna (1886), relativa à proteção das obras literárias e artísticas, que estabeleceu o reconhecimento do direito do autor entre nações soberanas – se compreende um dos quadrantes conceituais do Direito de Autoria, pelo qual a faculdade de modificar uma obra “morre” com o seu portador. De modo que, após a morte do autor, NENHUMA OBRA AUTORAL, literária ou de outra natureza, nova ou adulterada, pode ser reconhecida ao autor morto, a quem se atribui a origem, a autoria, a produção, salvo se, expressamente, este tivesse consignado em testamento ou documento de sucessão hereditária, e, ao mesmo tempo, houver documento específico, reconhecido como absoluta e integralmente legítimo (quanto à autoria, por meio de competente peritagem), com a expressa menção de encaminhamento futuro de uma nova edição (revisada, corrigida e aumentada). Isto posto, em 31 de março de 1869, se ENCERRA, PEREMPTORIAMENTE, a lúcida e pródiga produção espírita-espiritual do Sr. Rivail-Kardec, sendo, IMPOSSÍVEL atribuir a ele a AUTORIA INTELECTUAL de qualquer escrito – por mais singelo que seja – surgido a partir de 1º de abril daquele ano.

No âmbito do Direito (humano, claro!) qualquer obra autoral possui dupla proteção: de caráter material (ou patrimonial) e de caráter moral (ou intelectual).

O direito moral – que está claramente ligado a uma questão humanitária, cultural e de respeito à memória do autor – baseia-se, iniludivelmente, na idoneidade do conteúdo da obra – ato de criação ou fato gerador do direito (moral) – impedindo qualquer alteração em relação aos originais (por acréscimo ou supressão, não autorizada pelo autor). Repetimos: somente ao AUTOR é conferido o direito de alterar a sua própria obra! Após a morte, aos herdeiros é conferido o direito de colher os frutos e proteger a obra (direitos patrimoniais), mas, JAMAIS, de alterá-la. Repetindo: JAMAIS!

Em consequência, tais prerrogativas – a do direito moral, a do direito autoral e às relativas ao respeito à sua memória e à paternidade em relação à obra autoral – subsistem depois da morte do autor, vigorando, por interesse público, o guarda-chuvas do Direito para a ampla e total preservação do conteúdo contra tentativas de adulteração, alteração, má utilização ou supressão do seu nome.

Se não há coincidências, entendendo que a partir desta data (1º de abril), não pode haver NENHUM novo trabalho autoral de Kardec, podemos jocosamente nos valer de que, do DIA DA MENTIRA em diante, somente pseudoverdades podem ser levantadas para vincular o seu nome a qualquer obra registrada postumamente – com o nome do mestre espírita. É como se o legislador internacional tivesse sido inspirado pelo zelo Erastiano (de rejeitar dez verdades  para não aceitar nenhuma mentira), ao entender que, em não havendo a comprovação fático-documental da autoria intelectual, a não ser por projeções e conjecturas, nenhum documento – sobretudo os de caráter literário – pode ser referendado.

Se – e somente se – Kardec, nos dias que antecederam o fatídico 31 de março tivesse a previdência e a coerência que selam todo o seu processo de produção, edição e publicação de obras, ele teria realizado os competentes registros documentais nas repartições competentes do Governo de França, para tal desiderato. Não o fez. Não cumpriu com o último dos requisitos legais para apresentar à posteridade qualquer modificação de seu último livro. Se falhou neste ponto, nem os seus continuadores, nem a herdeira legal, Amélie-Gabrielle, nem aqueles que se dividiram diante do seu legado, em posições – hoje conhecidas a fundo – marcantemente contraditórias, díspares e inconciliáveis, poderiam tê-lo substituído, nem tornado válidos, em nome de Kardec, quaisquer deliberações. Não há, a propósito, qualquer informação a respeito de uma autorização (de Kardec) para a publicação futura de novas edições de seus livros – incluídos, aí, “O Céu e o Inferno” e “A Gênese” – na documentação relativa à sucessão hereditária de Rivail, nem no seu testamento, tampouco no inventário de seus bens. Inexiste, assim, qualquer respaldo jurídico para uma edição alterada em relação à obra depositada, registrada e publicada por ele, em vida. Somente assim se teria a garantia tanto da autoria como do cumprimento dos inafastáveis procedimentos legais cabíveis à espécie.

Certo é que, para lançar “O Céu e o Inferno”, em 1865, foi solicitada a tiragem de 3.000 exemplares, que permitiram a impressão de 3 (três) edições, conforme praxe da época. O mesmo número de exemplares foi solicitado para “A Gênese”, em 1868. Por se tratar de novos conteúdos, ambas as edições, com seus conteúdos originais, receberam os depósitos legais antes da publicação.

É sabido e comprovado por manuscritos originais que Kardec estava preparando alterações exatamente sobre essas duas obras, para lançar novas edições. Em 25 de setembro de 1868, ele informa que estava trabalhando nessa revisão, mas que o trabalho se encontrava ainda pela metade. Menos de um mês depois, em 13 de outubro de 1868, ele escreve outra carta informando que, em razão de seu delicado estado de saúde, precisou suspender todo trabalho além do estritamente necessário. Vemos que, em seguida, Kardec passa a se dedicar apenas à Revista Espírita e à constituição futura do Espiritismo, abandonando o trabalho de revisão das obras fundamentais.

Com a suspensão das revisões e o esgotamento da terceira edição de “A Gênese”, ao tempo que planejava a abertura da “Librairie Spirite” para se desvincular de editores terceirizados, Kardec solicita em 4 de fevereiro de 1869 a tiragem de mais 2.000 exemplares, que permitiriam a impressão de mais duas edições (a quarta e a quinta). Todavia, como não foi feito novo depósito legal, ficou evidenciado que não se tratava de novo conteúdo, e sim do mesmo, de modo que a quarta e a quinta edições haveriam de ter obrigatoriamente o mesmo conteúdo das edições anteriores. De fato, a quarta edição, publicada logo em seguida, foi idêntica às anteriores. Quanto a “O Céu e o Inferno”, apenas as três primeiras edições foram publicadas. E durante a vida do professor Rivail, nenhuma edição com conteúdo novo dessas duas obras foi publicada.

Aconteceu que fatos muito graves tiveram lugar logo após a desencarnação de Rivail, quando indivíduos próximos a ele criaram a “Sociedade Anônima da Caixa Geral e Central do Espiritismo” e urdiram o isolamento de sua viúva Amélie-Gabrielle da administração da estrutura do Espiritismo (nela incluídas as edições das obras e da Revue Spirite, assim como a gestão da Livraria), imprimindo a essa empresa uma organização heterônoma e de motivação exclusivamente comercial, com o afastamento completo da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) e seus membros do projeto de direção coletiva do Espiritismo, arquitetado por Kardec.

Transformada essa empresa em uma editora no mês de julho de 1869 (a editora da Librairie Spirite, situada na rue de Lille, n. 7 – onde Kardec jamais trabalhou), foi possível aos adulteradores fazerem passar as edições adulteradas das duas derradeiras obras da Codificação, fazendo uso das revisões inacabadas nas Kardec trabalhava.

Nesse momento surge uma quarta edição de “O Céu e o Inferno” com gravíssimas adulterações, desfigurando completamente a teoria moral da autonomia, que se encontrava nas edições originais, e inserindo dogmas religiosos sem qualquer conexão com o restante da obra. O mesmo ocorreu com a quinta edição de “A Gênese”, surgida e depositada com conteúdo novo em 1872, como revelado por Simoni Privato, na obra “O Legado de Allan Kardec”. E, como se sabe, esta edição póstuma é que foi a base para as traduções brasileiras, em sua maioria.

E, recentemente, fez-se muito alarido com a “descoberta” de um único exemplar – não registrado e com data de 1869, mas obviamente posterior ao desenlace do Professor francês. Nesse exemplar, consta a informação “Librairie Spirite et des Scienses Psychologiques” na “7, rue de Lille”, demonstração de que ela foi editada pelos responsáveis pela livraria (somente tornada editora em julho de 1869) e não por Kardec. Ademais, todas as edições que foram coordenadas por Kardec traziam inscrição diversa: “bureau de la Revue Spirite, 59, rue et passage Ste-Anne”.

Como se não bastasse – e nós que compomos o grupo de defesa da quarta edição fizemos completa e detalhada investigação nos arquivos das repartições francesas competentes – no que concerne ao pedido de impressão e ao depósito legal da obra em comento, para todas as edições, encontramos que a tal quinta edição de “A Gênese” não teve qualquer registro de pedido de impressão ou depósito legal, senão no ano de 1872 (em 23 de dezembro), quase quatro anos após a desencarnação do Professor Rivail, na edição tida equivocadamente como a “definitiva” por grande parte dos espíritas brasileiros, incluindo-se a federação brasileira. Tudo leva a crer, pelos documentos e pelo resgate feito pelos pesquisadores (em especial Simoni Privato Goidanich), que Desliens inicialmente e depois Leymarie foram os responsáveis por tal “façanha”.

Enfim, de acordo com os documentos oficiais das autoridades francesas e o inquestionável direito moral, reconhecido internacionalmente, as edições com novo conteúdo dessas duas obras só surgiram após a morte do autor, sendo, portanto, consideradas apócrifas, falsas, adulteradas.

Até agora – e não podemos “prever o futuro”, ainda que a terceira parte de “A Gênese” – A RECUPERADA, CLARO! – trate de previsões, como dissemos, de início, inexiste qualquer documento cabal, inconteste e em preciosos detalhes, acerca do encaminhamento oficial do Professor francês dos originais de uma revisão finalizada e expressamente autorizada da obra de 1868, para as autoridades francesas. 

Obviamente que Kardec jamais descansou. Seu Espírito, inquieto e irrequieto, continuava projetando (mas não prevendo) a continuidade do seu trabalho intermundos. Assim o fez com outras obras, especialmente com a primeira (“O livro dos Espíritos”) e com a de fundo moral, que antecede as lucubrações contidas em “A Gênese” (“O Céu e o Inferno”), porque, perfeccionista, buscava, com novos elementos a partir das psicografias, ou com novas conclusões suas, de modo crítico, melhorar o texto para escapar de possíveis – e severas – más interpretações dos “detratores”.

Evidentemente que Kardec também em relação à “A Gênese” iria melhorar o produto final (de 1868) e apresentar uma nova edição (aumentada e corrigida – para nos valermos das expressões dos livreiros deste país). Ele o disse (escreveu) e suas cartas – muitas das quais disponibilizadas depois do sesquicentenário da Doutrina Espírita, considerando o marco desta como 1857 – referendaram. Nos estudos comparados, percebe-se, em alguns trechos da edição “consagrada” como de autoria “plena” de Kardec (mas que não o é, já que não há prova inconteste disto) a incorporação de textos que figuraram em fascículos mensais da “Revue Spirite”, sobre os mesmos temas que já haviam figurado em “A Gênese”. Mas isto, “de per si”, é insuficiente para caracterizar a digital de Kardec no conjunto pleno e completo da quinta edição, porquanto, em essência, falece a pretensão do direito de demonstração desta realidade, por ausentes os documentos considerados essenciais e legítimos.

Entre cartas e rascunhos (!) – sim, pasmem, até isso foi levantado, como se Kardec fosse passar a limpo seus manuscritos para alterá-los e enviar, depois, como correspondência a algum destinatário – estava patente, sim, a intenção de REFORMULAR a obra. Disto, os que são partidários da tese, não duvidam nem contestam. Mas… É impossível decretar que TODO O CONTEÚDO da “malfadada” quinta edição não registrada nem validada seja de Kardec e, se os documentos oficiais não encerrassem a questão, “na ausência dos fatos, a dúvida é a opinião do homem prudente”, como ele mesmo vaticinou, em vida.

Assim, se Galileu, Didier, Arago, Amélie-Gabrielle, Denis, Flammarion, Desliens, Tailleur, Leymarie, ou qualquer outro ser humano vivo naquela época, atestou a necessidade de mudanças na obra autoral, sem o “chamegão” (assinatura do autor, nos atos relativos à publicação e ao registro da obra, no sentido de sua expressa e comprovada autorização para alterações), não se pode concluir que o texto completo (antítese) invalida o texto que ele não só cuidadosamente compôs, como, de posse do primeiro lote dos exemplares, expôs para comercialização com um inegável sorriso a iluminar seu rosto.

Curioso é que um exemplar único de uma edição PÓSTUMA de “A Gênese”, com o indicativo “5ª edição”, seja dada como a suposta “prova cabal da invocada autoria”, atribuindo-a a Kardec. E que ela passe a ser considerada como a referência para a validação de um conjunto de modificações que desnaturam gravemente o seu conteúdo e atentam contra os próprios elementos principiológicos da Doutrina dos Espíritos, inclusive incorporando a fatídica ideia (tese, também) que, até hoje separa os dois núcleos de espíritas presentes em todo o mundo: religiosos e laicos. Ideia que versa sobre a natureza do corpo de Jesus de Nazaré.

Por fim, resgatando o consenso vigente no Direito Internacional e sobretudo uma recomendação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), de 1979, no sentido da ampla transparência, do respeito ao direito autoral e ao direito de informação do consumidor/leitor, a matéria poderia ser, inclusive, objeto de futura judicialização, no confronto entre a edição comprovadamente de Kardec (a quarta) e a sem registro nem depósito legal por Rivail-Kardec. O patrimônio intelectual e moral de Kardec, portanto, pode ser invocado em uma ação que vise retirar de circulação todas as traduções brasileiras baseadas nas edições adulteradas. Todavia, assim não postulamos, tendo em vista que isso ocorrerá naturalmente à medida que o público estiver devidamente esclarecido sobre os fatos e, sobretudo, pela beleza doutrinária que emerge das páginas das obras originais de Allan Kardec.

Deste modo, a síntese é: verdadeiras, incólumes, não-adulteradas são apenas as edições originais de “O Céu e o Inferno” e “A Gênese, escritas, registradas, legalmente depositadas e comercializadas por Rivail-Kardec! “Closed case”, diria Sherlock Holmes a Watson!

Imagem de Use at your Ease por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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