Erraticidade, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 6 minutos

Por Marcelo Henrique

Imagem meramente ilustrativa de Stefan Keller por Pixabay

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Se as Inteligências Invisíveis foram unânimes ao afirmar a Kardec não existir, no espaço, lugares de contemplação estéril ou beatitude ociosa, vale dizer que em tudo vige a Lei do Trabalho e todas as situações envolvem o compromisso e a vinculação dos Espíritos laboriosos, porque cada qual possui o seu papel, concorrendo para a grande obra, na exata medida de seu mérito e adiantamento.
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León Denis, na esteira de Allan Kardec, em duas magistrais obras, “Depois da Morte” e “O grande enigma”, ensina que o ser humano pertence a dois mundos: pelo corpo físico, ao visível e pelo fluido, ao invisível. Por conseguinte, importa fazer uma ilação, no que tange às duas realidades: o sono é a separação temporária, enquanto a morte, a definitiva.

Assim, enquanto Espíritos, somos seres errantes, justamente porque seguimos sem conseguir domar plenamente nossas paixões – kardecianamente, as “más inclinações”, o que nos endereça à repetição de uma vida desordenada, quando na esfera corporal (física), quase sempre embebidos na inquietude e na incerteza. E, quando desencarnados, uma vez que “em a Natureza nada dá saltos”, somos a exata continuidade do que vivemos na encarnação – com nossos gostos, simpatias, afeições e condicionamentos. Ao desencarnarmos, então, todos passamos à condição de erraticidade (estado dos Espíritos imperfeitos), permanecendo na ambiência do plano que acabamos de deixar.

É por isso que alguns estudiosos espíritas – incluso o Professor Herculano Pires – afirmam que, na Terra (e é importante falar daquilo que conhecemos – Mundo de Expiações e Provas –, deixando de cogitar de como seja a morada em planos mais avançados – e considerando que já conhecemos a condição imediatamente inferior à qual nos encontramos – Mundo Primitivo), tem-se a convivência de duas humanidades (a encarnada e a desencarnada), em profunda simbiose, em termos de relações e influências, desembocando no conceito de que (mais ou menos) somos seres interexistentes – porque participamos, ao mesmo tempo das duas realidades, corporal e espiritual.

Erraticidade, assim, não é “lugar geográfico” – que a literatura mediúnica “sem controle”, “sem exame”, “sem aferição” cultua com nomes (mais ou menos pomposos), porque o imaginário “popular” dos espíritas – a imensa maioria egressa de religiões ou igrejas e suas construções de gozo e dor – precisa se vincular a âncoras de sustentação na imaterialidade. Umbrais, Vales ou Colônias são, assim, a exata correspondência, em “ambiente espírita” da tríade Inferno, Purgatório e Céu, dos cristãos. Erraticidade é condição (estado espiritual, mental, psíquico, sensorial) da maioria dos Espíritos que viveram na Terra, os quais, na generalidade ainda não são nem bons nem maus, porquanto sejam ainda fracos e muito inclinados às coisas materiais.

Se os poetas, inspirados, falam no “sétimo céu” e no “fogo eterno” para ilustrar os sentimentos (nitidamente humanos, enquanto características da imperfeição) que estão presentes no cotidiano de todos nós, enquanto “variações de humor” ou “estados d’alma”, pode-se dizer que, nas experiências cotidianas, de fato, experimentamos o gozo do Céu e a dor do Inferno, em repetidas cenas do dia. Alegria e Tristeza, Gratidão e Mágoa, Esperança e Desilusão, Desprendimento e Apego, Temperança e Excesso, Sanidade e Loucura, são os estados antagônicos experimentados por aqueles que estão “em marcha”, sujeitos à Lei do Progresso.

Na Erraticidade, a maior parte dos Espíritos levitam ou flutuam – já que a matéria não lhes impõe qualquer obstáculo, pairando entre o justo e o injusto, a verdade e o erro, a luz e a sombra, de modo indeciso. Se, porventura, se encontrarem – transitoriamente, porque ninguém jaz abandonado à própria sorte e pela eternidade nestas condições – na melancolia, no insulamento, na obscuridade, nos sentimentos de vingança e ódio, em realidade, é porque aguardam um instante onde possam usufruir da simpatia, do acolhimento, da benevolência e do amor que lhes sejam dirigidos, na esperança disso encontrar.

Se as Inteligências Invisíveis foram unânimes ao afirmar a Kardec não existir, no espaço, lugares de contemplação estéril ou beatitude ociosa, vale dizer que em tudo vige a Lei do Trabalho e todas as situações envolvem o compromisso e a vinculação dos Espíritos laboriosos, porque cada qual possui o seu papel, concorrendo para a grande obra, na exata medida de seu mérito e adiantamento (meritocracia espiritual). Os que estão mais avançados se envolvem em tarefas maiores e atendem àqueles que ficaram à margem do caminho. São, de fato, as ocupações dos Espíritos o móvel para que as individualidades (desencarnadas) prossigam em seu curso eterno, arrastados irresistivelmente para um estado superior, posto que entregues a ocupações diversas.

Denis insiste em florir a árvore kardeciana para dizer que há conhecimento (ciência) a adquirir, avanços a realizar, onde dores, remorsos, sacrifícios, devotamento, expiações e provas estarão associados ao elemento amor que parece ser o elo de ligação para todas as situações que o Espírito experimenta, na carne e fora dela. Tudo, pois, segue em movimento – ainda que a aparência, em alguns momentos, seja a de estar estacionado. E a constatação evidente, diante das experiências dos colóquios com os desencarnados, é que tanto as faculdades intelectuais quanto as qualidades morais permanecem e não se alteram com o fenômeno transitório da morte. Em outras palavras, a individualidade não se consagra superior ao que seja nem regride a ponto de esquecer o que vivenciou (e o que aprendeu).

Denis reforça a função do perispírito, como elemento intermediário com função específica e importante, porquanto seja o “locus” de registro (ou de ressonância) das vivências do ser espiritual. Ao despertar na nova condição, imaterial, a de desencarnado, o ser vai compulsando e resgatando todas as experiências pregressas – tanto a da vida que acabou de se exaurir, quanto as anteriores – recompondo o conjunto de conhecimentos, sentimentos, sensações, atos e percepções e, as mais das vezes, vê despertar na memória as realidades adormecidas, sobretudo das existências mais remotas.

À semelhança das Experiências de Quase-Morte (EQMs), individualidades que comparecem aos laboratórios mediúnicos – mesas de comunicação de grupos espíritas – atestam que, no instante da morte, os sucessivos quadros da vida recém-encerrada se desenrolam sucessivamente como um filme de trás para a frente, em pormenores, revivendo-se, em mais ou menos tempo, as sensações agradáveis ou desagradáveis, correlacionadas a todos os atos da vida inteira.

Resgatando importante conceito derivado da cátedra dos Espíritos Colaboradores na obra kardeciana, de que é na consciência que se encontram grafadas as Leis Universais (Espirituais), de tal maneira que é impossível escusar-se de seu cumprimento (obediência), é esta mesma consciência, em estado desperto, sem as limitações e os obstáculos do envoltório corporal – e, nele, as visões parciais e os entendimentos limitados pelos sentidos físicos – que opera um “julgamento” espiritual, com o instantâneo balanço dos atos da existência. O diferencial, no entanto, não é, como à moda humana, a existência de um tribunal, uma promotoria e um julgador, já que o veredito é dado pelo próprio Espírito, em autoexame, disso derivando a “sorte” tanto no pós-morte quanto na próxima encarnação.

Considera, Denis, a morte como um segundo nascimento, daí a majestade da afirmação de Kardec – “nascer, viver, morrer, renascer ainda e progredir continuamente, tal é a lei” – e o ingressar e abandonar os mundos (físico e espiritual) se dá pela mesma razão ou segundo a mesma lei. O filósofo francês, poeticamente, que no crepúsculo da fronteira entre os dois mundos, a alma recebe as impressões do mundo em que está ingressando, ao mesmo tempo em que os fantasmas da existência finda lhe povoam a memória.

E como a condição existencial, dos Espíritos, não é a do insulamento, nas idas e vindas, nos sentimos envolvidos e aconchegados pelas almas afins, que conservam os laços de proximidade, bem-querência, sentimento e afeição. E esta condição, para uns e para outros, é favorecedora dos experimentos mediúnicos – daí termos um bom número de desencarnados, em mesas mediúnicas, explicitando acerca do pós-morte recém-ocorrido.

Vale dizer, ainda, que estas mudanças de realidade, conceituadas como transformações do Espírito, ora encarnado, ora desencarnado, ocasionam estados de perturbação. Em especial, versando sobre a transição decorrente da morte (desencarnação), podemos listar três causas: 1) a mudança de meio; 2) a mudança das condições de expressão do Espírito; e, 3) da mudança dos meios de ação.

Ao renascer para o mundo invisível, a individualidade permanece algum tempo (variável) sem tomar conhecimento em relação ao seu estado e ao seu destino. Nestas situações, conforme os relatos mediúnicos, o Espírito ouve os murmúrios (remotos ou próximos) dos dois mundos, pode entrever os movimentos e gestos, sem definição ou precisão e não consegue quantificar nem tempo, nem espaço. Segue, pois, tateando nas estradas do Além!

É comum alguns se suporem vivos, em face da semelhança com a ambiência que acabaram de deixar, já que a condição é do Espírito e não de qualquer local (ambiente). Ao permanecerem, ainda, perturbados, não percebem a alteração por que passaram. E isto é a prova inconteste de que os dois mundos, de fato, se interpenetram e que a continuidade das relações, das situações, das experiências, dos “mortos” se dá nos ambientes físicos em que eles existiram por décadas. Ali estão seus gostos, tendências, paixões, afinidades, preferências e, é claro, os entes queridos (encarnados) que aqui remanescem. Por que haveria de ser diferente?

 

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