Ai dos que tergiversam!, por Marcelo Henrique e Nelson Santos

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Marcelo Henrique e Nelson Santos

Certos contextos contidos nos Evangelhos, remontando a situações atribuídas a Yeshua, em suas pregações e ações, merecem a nossa atenção, como estudiosos do Espiritismo. Em “Os ais”, aquele Rabi teria recomendado o esforço de cada um na superação de si mesmo, rumo à própria espiritualização, reformulando seus procedimentos. O “ai de quem” direcionado a esta ou aquela atitude humana, não seria a “condenação eterna” nem qualquer “julgamento sumário”, significando, na essência, que a nossa própria consciência, adiante, iria apontar nossos erros e a necessidade das reparações.

Vimos trabalhando, mês a mês, e chegamos a esta quinta edição de 2023, com as questões das adulterações das duas últimas obras de Allan Kardec – “A Gênese” e “O Céu e o Inferno” – ocorridas, sabidamente, após a sua desencarnação (31 de março de 1869), quando supressões, acréscimos e outras alterações de conteúdo foram realizadas por terceiros, em desrespeito aos princípios e fundamentos espíritas, bem como ao conteúdo doutrinário e à metodologia empregada por Kardec em todas as suas demais publicações.

Nesta edição de maio, mais sete artigos reúnem elementos que se juntam aos demais, compondo a tese da adulteração, mas permitindo a qualquer espírita estudioso e sensato analisar fatos e documentos, afastando-se da “mera opinião pessoal”, ou da simpatia em relação a pessoas ou instituições que defendam o contrário.

Na abertura deste número, Milton Medran Moreira nos convida, no seu texto “Com um atraso de 150 anos” a analisar a edição recuperada de “A Gênese” – sugerindo a publicação da Fundação Espírita André Luiz (FEAL) – lado a lado aos exemplares que se baseiam na edição adulterada do mesmo livro, “comparando-se seus conteúdos”, no que será possível, ao estudioso, perceber a “introdução de conceitos advindos da teosofia, do roustainguismo e de outras correntes de pensamento místico/religiosas”, desde que se permita utilizar “a lupa da contextualização e as luzes do bom-senso e do compromisso com a atualização doutrinária e com o progresso das ideias”.

Neste caminho de percepção de interesses materiais e da intenção de incorporar ao Espiritismo ideias alienígenas e totalmente incompatíveis, Denis Denisard no seu texto “Muito alarde e fontes nada confiáveis, alerta para o fato de que a mesma motivação dos que adulteraram as obras “A Gênese” e “O Céu e o Inferno”, está presente naqueles que buscam nos “manuscritos” de Kardec informações esparsas para tentar montar um quebra-cabeças de validação do argumento de que o Professor francês havia tudo preparado e deixado as edições no prelo, mas que não as lançou por ter abruptamente falecido.

Pois os que assim agem preferem a heteronomia, isto é, a dogmática, derivada da aceitação tácita daquilo que lhes é dito como sendo verdade (no caso, as traduções conhecidas das obras de Kardec). Mas a moral espírita é outra, preconizando a autonomia do Espírito. Em nome da autonomia, devemos tudo analisar e é neste sentido que Paulo Henrique de Figueiredo discorre, em Nem Céu nem Inferno: as leis da alma segundo o Espiritismo”, consigna a prova documental de que os últimos livros da autoria do Professor francês foram adulterados – muito provavelmente pela(s) mesma(s) pessoa(s) – e registradas postumamente as edições que servem de base às traduções brasileiras.

Antonio Leite, no seu “A tentativa de negar o óbvio”, questiona todos os que, diante da notícia da adulteração dos livros kardecianos, usam subterfúgios ou estratégias convenientes, tergiversando “através de malabarismos sofísticos” para “esconder algo ou assumir uma postura defensiva”, como os que dizem que tal se refere “apenas a uma velha polêmica hoje sem maior importância”. Do contrário, não só pelo conteúdo doutrinário (advindo da comparação entre as edições), como pelas questões de caráter histórico e jurídico, o tema é gravíssimo e comprometedor, porque “As infames adulterações perpetradas na obra “A Gênese” de Allan Kardec”, para o articulista, “não passam de uma fraude grotesca e um ultraje contra a integridade da obra do mestre codificador”.

Em termos demonstrativos, atestando o criterioso e meticuloso trabalho de comparação entre os textos das edições de “A Gênese”, Marco Milani, escreve acerca das mudanças póstumas no capítulo XV, no artigo “Sobre o desaparecimento do corpo de Jesus”, com a supressão de um dos itens. Milani esclarece: “O leitor poderá seguir o claro raciocínio de Kardec para essa questão no estudo dos itens 64 a 68 da 4ª edição, porém na 5ª edição notará que o desenvolvimento dessas hipóteses foi prejudicado com a eliminação do item 67 da edição original e renumeração do item 68 como sendo esse o item 67 da versão modificada”, prejudicando, portanto, o entendimento da lógica sequencial com que o Professor francês trata desta importante matéria, inclusive para afastar a tese do “corpo fluídico de Jesus”, que é oposta ao corpo biológico, carnal-material, que consta de toda a Codificação.

Antônio Cesar Perri de Carvalho, brinda-nos com o seu “Valor da obra “A Gênese” e de suas primeiras edições francesas”, destacando as ações já realizadas por aqueles que, percebendo a gravidade da questão da publicação póstuma (e com adulterações) das duas últimas obras kardecianas, sugere às editoras espíritas brasileiras que façam “um esforço para se esclarecer as dúvidas sobre a fidedignidade das edições francesas após a desencarnação de Kardec e, se for o caso, acrescentar-se nota(s) explicativa(s) nas edições traduzidas para o português” e, ao movimento em geral, que sejam implementados o estudo e a divulgação das obras.

Derradeiramente, num belo manifesto pelo restabelecimento da ideia espírita, escrito a seis mãos, Lucas Sampaio, Paulo Henrique de Figueiredo e Júlio Nogueira, lamentam a inclusão, pelas adulterações em “A Gênese” e “O Céu e o Inferno”, de “ideias dogmáticas heterônomas, de origem religiosa e materialista, opostas à moral autônoma própria da teoria espírita original”. O texto, questionador, é “Se Kardec voltasse hoje, poderia retomar o Espiritismo e responder às dúvidas do Século XXI?”. A resposta, segundo os autores, deve ser dada pelos espíritas sensatos e interessados, dos nossos dias, que, “interessados pelo pensamento revolucionário das ideias espíritas possuem a missão de restabelecê-las”, retomando “a uniformidade de entendimento que instaura espontaneamente uma nova postura metodológica, moral e social”, o que permitirá aos Espíritos Superiores “utilizar essas novas condições para revisitar sua doutrina e comunicar novos princípios”. Somente isto irá garantir a ideia de permanência do Espiritismo, enquanto filosofia que acompanha paripasso a Ciência, como recomendou o próprio Kardec.

É, assim, o quinto compêndio mensal, com sete artigos cada, em que a Revista Harmonia não se nega a tratar deste árido e ácido tema que envolve as paixões humanas, de “defesa” ou de “ataque”, em nome de ideias ou motivações – nem sempre claras e expressas. Havendo, claramente, a dicotomia inconciliável entre os que adotam a tese de que Kardec seria o autor das obras publicadas após sua morte e os que possuem elementos doutrinários, históricos e jurídicos para afirmar o contrário, mesmo que a autoria material das adulterações não tenha sido identificada, até o momento.

Obviamente, este veículo midiático virtual segue com a segunda hipótese, porque o conjunto de evidências aponta para a adulteração, ainda que no campo da dialética e da dialógica, bem como diante da premissa espiritual-espírita da liberdade de convicção e de pensamento, cada indivíduo, Espírito encarnado que é, possa apresentar seus argumentos.

Argumentos, aliás, que só pertencem ao campo das opiniões. E opiniões – sobretudo quando não lastreadas em fatos e em documentos probatórios – se afastam de consensos e de realidades, desaparecendo, portanto, no curso da História.

E, como, na trajetória da Lei do Progresso, cada qual responde sempre em relação às suas ações, parafraseando as lições atribuídas a Yeshua, nós diríamos: – Ai dos que tergiversam!

Imagem de Mohamed Hassan por Pixabay.

TEXTOS DA EDIÇÃO:

Ai dos que tergiversam!, por Marcelo Henrique e Nelson Santos

Com um atraso de 150 anos, por Milton Medran Moreira

Muito alarde e fontes nada confiáveis!, por Denis Denisard

Nem Céu nem Inferno: As leis da alma segundo o Espiritismo, por Paulo Henrique de Figueiredo

A tentativa de negar o óbvio, por Antonio Leite

Sobre o desaparecimento do corpo de Jesus: o capítulo XV de “A Gênese”, por Marco Milani

Valor da obra “A Gênese” e de suas primeiras edições francesas, por Antônio Cesar Perri de Carvalho

Um manifesto pelo restabelecimento da ideia espírita, por Lucas Sampaio, Paulo Henrique de Figueiredo e Júlio Nogueira

 

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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