A sociedade humana é um organismo vivo, por Maria Cristina Rivé

Tempo de leitura: 4 minutos

Maria Cristina Rivé

A luta maior é do ser contra ele mesmo, contra os interesses pessoais e contra o materialismo que destrói a humanidade, acabando com a esperança e os projetos de vida. E o mundo segue sendo consoante ao que se é: aparências e buscas do que é perecível, mas ainda tão agradável aos sentidos materiais.

Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
(Geni e o Zepelim, Chico Buarque).

A sociedade humana é um organismo vivo, assim, como a linguagem que utilizamos. Vive-se em consonância com os anseios íntimos de todos aqueles que participam dos agrupamentos sociais, que definiram as normas utilizadas para a realização dos objetivos sociais de cada um de seus integrantes. De todos? Não! De alguns, os que ditam as regras. Essas serão, então, utilizadas para cercear as aspirações da grande massa, que deverá sempre se ajustar às normas impostas. Caso, ainda, algum indivíduo consiga se desvencilhar dessa teia, mesmo assim ele ajudará a manutenção do status quo. Vale, então, lembrar um adágio: a força de vontade e o querer são milagrosos – mas, só para quem crê em milagres, naturalmente…

Lembremos da Geni. Ela era uma prostituta – situada no fundo do poço da sociedade – com sua vida fácil. Seu corpo, sua desumanização e os olhares condenadores corroboram com a tranquilidade de sua vida. Aqueles que não se esforçam, diz-se, é porque se entregam às drogas, à prostituição. Moram na rua porque gostam. Não querem se alimentar direito, preferindo a cachaça. Pobre humanidade! Não há força de superação, porque ganhar o peixe sempre será a atitude mais fácil.

Ah! Essas mulheres não têm jeito não! – ouve-se, costumeiramente… Apesar da rejeição social que sofre, ela, a Geni, consegue ainda exalar bondade e ternura. Mas, mesmo assim, dela se diz: – Que coisa horrível! Talvez seja mesmo coisa do “demônio”, a tentar corromper a “nata” humana, a fim de que muitos caiam nas malhas infernais, retirando dos “escolhidos” a paz de espírito, fazendo com que Deus se revolte.

Eis que, mesmo com os ameaçadores canhões do destino apontados para a cidade, é ela, a prostituta, a indigna, a corruptora, que alcança o coração do maioral e impede a destruição da cidade. A pseudo-insignificância dessa MULHER que, no momento, pode salvar a cidade acaba, em realidade, por apavorar a todos os “cidadãos de bem”. Mas, enfim, o capital, os poderes públicos e religiosos se rendem, afinal ela salvará a todos. Refletem, pois poder e dinheiro não servem sem a vida física. Todavia, não se pode esquecer: é preferível perder a vida, a perder a liberdade!

E evidenciando a sua grandeza, Geni domina seu asco e se submete, então, aos apelos carnais do comandante, para salvar a cidade que, justamente, tanto lhe despreza.

Genivaldo, contudo, não teve a mesma sorte, isto, é claro, caso ela existisse. Ele se deparou com um grupo amparado por “cidadãos de bem” e, dizem estes, teve o que merecia. Vale lembrar que, em tempos idos, mas não tão distantes, aqueles que não eram perfeitos – para o padrão – ou eram mortos, ou eram escondidos. A justiça não foi feita no momento adequado e o grupo supracitado atuou. Ouvimos aqui ou ali: – Foi deus operando através deles – conhecereis a verdade! Que verdade? A de que o nosso amigo Genivaldo é, apenas, mais um. Não!

Genivaldo é, pois, a representação do povo brasileiro. Extorquido, maltratado e humilhado. Vive-se tempos inglórios em que a dor sobrepuja a felicidade, porque criaturas desprezam o diferente em nome de um deus humano, criado pela ânsia do capitalismo selvagem que submete os enfraquecidos ao desprezo.

A dor de sua família é a dor das criaturas que persistem acreditando no bem e preferem não se calar ante as injustiças. Oh! Deus, quanto tempo mais se terá que sofrer? – estas se perguntam. Nós nos perguntamos…

É fato que o Progresso é inexorável. Nenhum ser pode detê-lo. Será preciso o que mais para sair dessa lama moral criada pelas próprias criaturas. Mas, como disseram as Inteligências Invisíveis a Kardec, “Há um progresso lento e gradual” que se faz. Os seres humanos hão de superar, sim, essa fase nefasta, repleta de incompreensões, em que a guerra se imiscui nas cidades, visto ser dirigida pelos corpos, os quais não entenderam o motivo de tudo isso, ou seja, da vida, da criação.

Ao reler a questão 798, de “O livro dos Espíritos”, nosso coração se aquieta e as angústias são abrandadas, pois a luta maior é do ser contra ele mesmo, contra os interesses pessoais e contra o materialismo que destrói a humanidade, acabando com a esperança e os projetos de vida. E o mundo segue sendo consoante ao que se é: aparências e buscas do que é perecível, mas ainda tão agradável aos sentidos materiais.

Geni e Genivaldo são os brasileiros, são os cidadãos do mundo em contraponto aos pretensos “de bem”. Somos nós! É preciso olhar além desses corpos, aparentemente inertes e sentir a vida sufocada daqueles que não sabem como lutar para extinguir as intempéries morais. São representativos os gritos emudecidos dos moradores de rua, do filho abandonado pelo genitor, do desempregado que não provê o sustento da família, do descalço que fere seus pés ao caminhar pela cidade e de todos aqueles seres simples que trabalham duro e que vivem para enriquecer os ricos, porque não lhes sobra o mínimo para sub-viver.

De Genis a Genivaldos a exclusão é sempre a mesma. Um personagem é fictício, mas bem real, faz parte da música tema de “A Ópera do Malandro” que, com sua letra forte, crítica o falso moralismo, a hipocrisia de uma época tão “infeliz da nossa história”, refletindo tanto a passada como a presente. Mas o outro é real. E, diante dele, Deus acaba sendo o passe para justificar as insanidades cometidas a Genivaldo e a tudo o que ele representa, ou seja, a miséria e o desprezo. O segundo personagem é bem real. Vive, mas está morto em seus desejos e em suas aspirações.

Imagem de Thomas Wolter por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “A sociedade humana é um organismo vivo, por Maria Cristina Rivé

  1. Belo texto amiga. Não conheço a história da Geni e Genivaldo mas deu para perceber as analogias a que faz referência e que sem dúvida fazem parte da nossa sociedade . Estou sempre a aprender com tod@s vocês. Muito obrigada.

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