A utopia política de Platão, por Marcio Sales Saraiva

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Marcio Sales Saraiva

Nada como reler um clássico da filosofia política depois dos tempos de juventude no curso de Ciências Sociais, na UERJ. O nosso olhar muda, substancialmente. Percebemos certas nuances que antes “passavam batido”. Claro que, no curto espaço destes comentários, não poderei trazer todas as minhas anotações, mas tentarei fazer um resumo do que mais me chamou atenção nesta “A República” (Tradução Leonel Vallandro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018) do grande mestre Platão (428-348 a.C.).

Escrito como um grande diálogo, Sócrates, o personagem, é o porta-voz das ideias platônicas. Então, vamos aos pontos centrais.

Na utópica República, o objetivo do governante é o interesse dos governados e não os seus próprios interesses. Explica Platão:

“— E assim, Trasímaco — disse eu —, ninguém que tenha governo, na medida em que é governante, considera ou ordena o que convém a si mesmo, mas sim o que convém ao governado e sujeito à sua arte; e tudo quanto faz ou diz tem em mira unicamente isso.” (p. 36) Porque “o verdadeiro governante, como o verdadeiro profissional, não busca a sua vantagem pessoal, mas a perfeição da sua arte”. (p. 41)

Sobre os omissos, ele nos diz que “o castigo pela recusa de governar é o ser governado por um inferior”. (p. 42) Então, assuma o governo, participe.

A defesa da justiça é fundamental na construção da República. Diz Platão: “Não posso renunciar a defendê-la, pois temo seja uma impiedade o calarmo-nos quando em nossa presença atacam a justiça e não levantamos a voz para rebater as acusações”. (p. 72)

A origem do Estado está nas “necessidades dos homens” (p. 73), pois “ninguém basta a si mesmo” (p. 73) e precisamos de rede social para vivermos.

Ao construir sua República, Platão deixa claro que estava “purificando a cidade” (p. 126) de todos os elementos negativos e corruptores, incluindo os poetas. Aliás, a concepção platônica é bastante autoritária nesse sentido. Tudo em nome do bem comum da República. Defendendo a censura e o controle ideológico, diz ele:

“(…) não teremos de vigiar apenas os poetas, obrigando-os a expressar a imagem do bem em suas obras ou a não divulgá-las entre nós; será preciso fiscalizar igualmente os demais artistas e impedir que exibam as formas do vício, da intemperança, da vileza ou da indecência na escultura, na edificação e nas outras artes criadoras. E aos que não se conformarem a esta regra será proibido exercer sua arte em nossa cidade, para que não venham a corromper o gosto dos cidadãos. Não admitiremos que nossos guardiães cresçam rodeados de imagens de depravação moral, alimentando-se, por assim dizer, de uma erva má que houvessem pascido aqui e ali em pequenas quantidades, mas dia após dia, de modo a introduzirem, sem se aperceber disso, uma enorme fonte de corrupção em suas almas. Busquemos, pelo contrário, aqueles artistas cujos dotes naturais os levam a investigar a verdadeira essência do belo e do gracioso; destarte os jovens crescerão numa terra salubre, sem perder um só dos eflúvios de beleza que cheguem aos seus olhos e ouvidos, procedentes de todas as partes, como se uma aura vivificadora os trouxesse de regiões mais puras, induzindo nossos concidadãos desde a infância a imitar a ideia do belo, a amá-la e a sintonizar com ela.” (p. 128)

Tendo em mira o bem comum, Platão destaca que, ao fundar a República (a polis, a cidade), seu objetivo “não foi tornar especialmente feliz a uma determinada classe, e sim alcançar a maior felicidade possível para a cidade inteira”. (p. 157)
Depois, o fundador da Academia em Atenas irá expor as quatro virtudes fundamentais para a vida da polis, para sua República. Veja neste trecho do diálogo:

“— Então, meu amigo, podemos presumir que, de certo modo, a justiça consiste nisso: em fazer cada qual o que lhe compete. E sabes de onde tiro essa inferência?

— Não, mas gostaria de saber.

— Parece-me que é esta a única virtude que resta na cidade após fazermos abstração da [1] temperança, da [2] coragem e da [3] prudência, em outras palavras, trata-se daquela que é causa primeira e condição de existência de todas as outras três, e que as conserva enquanto nelas subsiste. Dissemos também que, se encontrássemos as outras três, a que faltasse seria a [4] justiça.” (p. 179)

A justiça é a virtude central de uma República, incluindo aí a temperança, a coragem e a prudência. Talvez por isso, a mentira poderá ser útil (ou remédio) em algumas situações políticas.
“(…) é possível que os nossos governantes tenham de fazer uso frequente da mentira e do engano no interesse de seus governados; e dizíamos, se bem me lembro, que o emprego de tais coisas a título de remédios poderia ser útil.” (p. 217)

Na República ideal de Platão, o ódio, as lutas de classes, os conflitos sociais, tudo isso deve ser substituídos por uma visão orgânica e harmoniosa do funcionamento da sociedade. Há aqui um nítido louvor ao consenso, em detrimento do dissenso na polis.

“— Pode haver maior mal que a discórdia e a desagregação, que faz com que a cidade seja muitas em vez de uma só? E pode haver maior bem do que o laço de unidade?
— Não pode.” (p. 222)

O filósofo tem clareza da distância existente entre o real e as construções de tipos ideais, tal como acontece nas utopias. Sua República nunca se realizará plenamente, mas trata-se de um projeto que poderá servir de bússola para as transformações sociopolíticas necessárias.

“(…) não me forces a provar que a cidade real coincidirá sob todos os aspectos com a ideal; mas, se chegarmos a descobrir o modo de constituir uma cidade que se aproxime o máximo possível daquela que temos em mente, confessa que o que pretendíamos é realizável. Eu, pelo menos, me darei por satisfeito.” (p. 239)
Para que a República seja algo realizável, a mesma deverá ser governada por um rei filósofo, claro. Aqui Platão faz uma defesa do que, bem mais tarde, daria origem à chamada “escola elitista” no campo da ciência política. Os mais capazes, os mais preparados, os virtualmente nobres, são os que devem governar a polis. Trata-se de uma concepção de elite intelecto-moral. Justifica Platão:

“— A menos — disse eu — que os filósofos reinem nas cidades ou que os reis e príncipes deste mundo pratiquem verdadeiramente e adequadamente a filosofia, que filosofia e poder político venham a ser uma coisa só e que sejam afastadas pela força as naturezas mais comuns que exercem qualquer deles com exclusão do outro, não haverá, amigo Gláucon, trégua para os males da cidade, nem tampouco, creio eu, para os do gênero humano. Só assim esta cidade que descrevemos terá uma possibilidade de existência e verá a luz do dia.” (p. 240)
Para alguns especialistas, a concepção de “vanguarda”, no interior do marxismo do século 20, não está distante desta concepção platônica “elitista”. Porém, como identificamos o verdadeiro filósofo, apto para governar os destinos da República? Quem é ele? Responderá Platão:

“— Aquele cujos desejos o conduzem para o saber sob todas as suas formas se entregará inteiramente aos prazeres da alma e porá de lado os do corpo, se for filósofo verdadeiro e não fingido.
— Sem nenhuma dúvida.

— Tal homem será temperante e nada avaro de riquezas, pois não têm lugar em sua alma os motivos que levam os outros a desejar a posse daquelas, com seu cortejo de dispêndios.” (p. 256)
Se assim é, então, dirá Platão, nenhuma forma de governo existente (naquele tempo) é ideal para este Rei filósofo. É preciso construir socialmente uma República adequada para tal governo dos sábios:

“(…) jamais haverá cidade ou governo perfeitos, nem tampouco indivíduos que o sejam, até que, por alguma imposição do destino, essa pequena classe de filósofos que qualificamos de inúteis, porém não de corruptos, sejam forçados a ocupar-se com os assuntos da cidade e que esta tenha de submeter-se a eles; ou até que, por obra de alguma inspiração divina, um verdadeiro amor à filosofia se apodere dos atuais reis e governantes ou, se não deles, pelo menos de seus filhos. Que uma dessas duas alternativas ou ambas sejam irrealizáveis, não vejo motivo para afirmá-lo; se o fossem, poderíamos com justiça ser apontados ao ridículo como sonhadores e visionários.” (p. 276)
Não haverá governo perfeito enquanto a polis não for governada pelos filósofos ou, se por obra de milagre, quando a filosofia se tornar o guia da vida dos atuais mandatários ou de seus filhos.

Você poderá achar que Platão estava delirando, mas não é assim que ele pensa. A República não é uma construção de “sonhadores e visionários”. Ela é realizável sim, dirá Platão, mesmo que não plenamente. Ele repete:

“(…) não cessarão os males da cidade e dos cidadãos, nem se verá convertido em realidade o sistema que construímos em imaginação enquanto a classe dos filósofos não assumir as rédeas do governo.” (p. 280)

A famosa alegoria da caverna é exposta no livro VII. Não vou relembrar aqui, mas destaco a missão dos filósofos (e de todas as vanguardas políticas?) que, na visão platônica, é “descer ao mundo sombrio” das cavernas humanas para trazer a luz do conhecimento, a consciência, a emancipação. Será isto muito diferente da concepção de esclarecimento (teoria crítica), de conscientização (Paulo Freire) ou do papel exercido pela vanguarda do proletariado (Marx e Lênin)?

Até mesmo a simpatia de Platão pelo coletivismo (“socialização dos bens”) é um dado muitíssimo interessante. Para ele, “na cidade perfeita devem ser comuns as mulheres, os filhos, a educação inteira e todas as ocupações da paz e da guerra; e que serão reis os que se revelarem melhores tanto na filosofia como na arte militar” (p. 342), pois “nada será propriedade exclusiva de ninguém, mas tudo será comum a todos”. (p. 342)

Não por acaso, há pesquisadores que identificaram possíveis “raízes platônicas” na ideia de comunismo. O filósofo francês Alan Badiou escreveu sobre isso, recentemente.
Em Platão, há cinco formas de governo: aristocracia, timocracia, oligarquia, democracia e tirania. Pela ordem, o governo de poucos, o governo que busca vitórias e honras, o governo dos ricos (plutocracia), o governo do povo (que poderá degenerar em anarquia) e o governo de um só.

Estas formas de governo não são fixas na história. Platão reconhece o devir, a impermanência, afirmando que “tudo que nasce está sujeito à corrupção”, portanto, qualquer desses governos “se dissolverá com o tempo”. (p. 346)

Há um ponto que rende muitos debates até hoje. A crítica que Platão faz à democracia.

“Considera também o espírito indulgente da democracia e a displicência com que esquece aquele princípio tão importante que proclamamos ao fundar a cidade… o de que jamais poderá ser homem de bem, a menos que esteja dotado de uma natureza excepcional, quem não tenha começado desde criança a brincar com coisas belas, para mais tarde continuar aplicando-se a tudo que com elas se assemelha. Com que magnífica indiferença ela espezinha todos esses nossos ideais, sem se preocupar em absoluto com a formação dos que se dedicam à política e honrando qualquer um que se declare amigo do povo!

— Sim, vê-se que é muito generosa.

— São, pois, estes e outros similares os traços característicos da democracia: uma prazenteira forma de governo, cheia de variedade e desordem, e conferindo indistintamente uma espécie de igualdade tanto aos que são iguais como aos que não o são.” (p. 366)

Esse “igualitarismo democrático” parece repulsivo para Platão. Ele acusa esta anarquia democrática de ser a parteira da abominável tirania. Diz ele que “é natural que a tirania não possa surgir de outra forma de governo senão da democracia, isto é: da extrema liberdade nasce, segundo penso, a maior e mais rude servidão”. (p. 376)

Alguns setores da esquerda recuperam essa crítica platônica a democracia como pertinente ao modelo liberal burguês de democracia eleitoral. Por outro lado, setores conservadores e de direita usam esses argumentos platônicos para defender concepções mais elitistas e autoritárias no exercício do poder político. O debate permanece até hoje.

Ao analisar a sociedade, Platão reconhece a existência de três classes, cada uma com seus interesses: a elite política, os ricos e o povo. A República deverá harmonizar esses interesses num todo orgânico, mas, para isso, é fundamental que os filósofos dirijam o processo e tenham “hegemonia”, pois o tipo ideal mediano existente numa sociedade é o que prevalecerá no governo da polis (páginas 395-397).

A República de Platão não é somente uma utopia política que poderá servir de orientação para a ação concreta. Ela é também uma alegoria do ser humano, da República interior. Uma fonte de inspiração para a vida.

“— Mas talvez — continuei — exista no céu um modelo dessa cidade [República] para quem queira contemplá-lo e fundar de acordo com ele a sua cidade interior. Não importa nada que exista ou venha a existir em algum lugar; por ela regulará a sua vida e não quererá saber de nenhuma outra.” (p. 422)
No final do livro X, o último capítulo de “A República”, Platão atacará os imitadores (poetas, comediantes e artistas) como sendo elementos subversivos que devem ser impedidos de entrar na República, pois eles não valorizam a Razão, aquela que é considerada por Platão como a parte “divina” de nossa alma. Por outro lado, Platão, enfeitiçado pela poesia, pelos seus afetos e paixões, admite que:

“(…) se a poesia prazenteira e imitativa tivesse uma razão aceitável a alegar em favor do seu direito de existir numa cidade bem regida, a admitiríamos de bom grado, pois estamos muito longe de ser insensíveis aos seus encantos; mas não é justo que por esse motivo atraiçoemos o que nos mostra como a verdade. Não duvido, Gláucon, que te sintas tão enfeitiçado por ela quanto eu, especialmente quando é Homero quem fala.” (p. 445)

“A República” se encerra com Platão defendendo a imortalidade da alma. A justiça, virtude maior da República, será sempre recompensada no final desta vida, acreditava ele, e também na vida depois da morte. Ainda que o sábio viva na pobreza, doente ou sob outros infortúnios, todo o bem que ele faz será bem para ele mesmo, “se não nesta vida, pelo menos na outra. Porque”, dirá Platão, “nunca será abandonado pelos deuses quem procura fazer-se justo e parecer-se com a divindade, tanto quanto isso é possível a um ser humano, pela prática da virtude”. (p. 453)
Que esta República platônica continue inspirando muitos debates no interior da filosofia política do século 21.

M.S. Saraiva é escrevinhador e autor do livro “Estado, democracia, políticas públicas e direitos LGBT” (Metanoia, 2017).

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