Os novos cátaros?!, por Marcelo Henrique

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Marcelo Henrique

Os cátaros foram um grupo de dissidentes cristãos que, na Idade Média, foram considerados hereges pela Igreja Católica. Sua “rebelião” era motivada pela negação da autoridade papal e a condenação das práticas do clero, considerado corrupto. No século XII, principalmente no sul da França (espargindo-se para alguns outros locais da Europa).

A principal argumentação da seita era de que a Igreja havia abandonado o aspecto essencial da fé (elevação espiritual), em nome dos bens materiais. Duramente perseguido pelo poder clérigo-estatal, os cátaros foram praticamente exterminados em meados do século seguinte e os poucos sobreviventes preferiram seguir no anonimato, para não sucumbir ante as fogueiras inquisitórias.

Evidentemente, o apelo de nosso título está direcionado ao movimento espírita que possui, a exemplo do que ocorreu com o catolicismo, uma parcela majoritária, considerada “religiosa”, “cristã”, liderado pela Federação Espírita Brasileira (FEB), no Brasil, e que está sendo disseminado há algumas décadas para alguns países do mundo, formando ou aglutinando pequenos núcleos espíritas ali existentes, o Conselho Espírita Internacional (CEI).

A FEB, assim, de modo tradicional, pode ser nominada como a “voz oficial” do Espiritismo no Brasil, mesmo que não se tenha feito nenhum acordo político (expresso ou tácito) para conceder-lhe poder e autoridade, efetivos, a não ser o histórico “pacto áureo”, de 1949, que “uniu” várias das federações, uniões ou ligas espíritas estaduais e, depois pouco a pouco, foi adicionando outras ou substituindo algumas por outras. Fala-se, assim, que existe um “governo” espírita centralizado, em torno do qual se mantém as organizações regionais. Vale dizer, ainda, que nem todas as associações espíritas brasileiras são filiadas aos referidos órgãos estaduais de espiritismo ligados à FEB, mas sua ascendência, domínio e importância em termos de cenário brasileiro, são notórios, dada a presença efetiva em todos os Estados brasileiros.

De fato, não há consenso nem unidade, em termos de Espiritismo, no Brasil. Assim como o cristianismo primitivo, erigido à condição de religião oficial do Estado romano, foi alvo de dissidências e separações, ao longo dos séculos – e, até hoje – não há um Espiritismo único em nosso país, justamente porque, a par das (pequenas) diferenças interpretativas, aqueles que se consideram como “espíritas verdadeiros” não dialogam nem mantêm qualquer relação de convivência e parceria com os outros grupos, salvo em raríssimas situações ou fatos isolados, muito mais decorrentes da “forma de agir” individual ou de pequenos grupos, por parte de seus dirigentes.

Deste modo, apesar de, entre os diversos segmentos espíritas existentes, haver um “vínculo” filosófico e, quase que unanimemente, uma unidade de expressão e ação – a chamada “religião espírita” – sobressai um grupo em especial se distingue dos demais, adotando uma postura completamente refratária à ideia de prática religiosa: a Confederação Espírita Pan-Americana (CEPA), que defende o laicismo espírita, ou seja, a conceituação e a prática espiritistas nos âmbitos filosófico, científico e moral, mas não religioso, nem em essência nem em práticas.

Mas, ultimamente, sem uma vinculação formal a este movimento laico, têm surgido, pelo país afora – e, também, em algumas partes do mundo – um grupo de pessoas “descontentes” com o modus operandi de igreja, seita, religião ou organização religiosa das associações e grupos espíritas. Vale lembrar, também, um quesito importante neste cenário que é o de que, ao se autodenominarem juridicamente como “instituições religiosas”, os entes jurídicos espíritas, independente da nomenclatura que adotem (centros, casas, templos, associações, sociedades, tabernáculos, institutos, cabanas, etc. – já que a criatividade brasileira é algo peculiar) passam a gozar de INCENTIVOS FISCAIS, como a isenção do pagamento de determinados tributos, entre eles um de valor considerável, todos os anos, chamado Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), porque a Constituição Federal concede esse tratamento diferenciado, isentando tais instituições deste pagamento, em face da imunidade tributária a igrejas e templos de qualquer natureza. Os minguados cofres das entidades, composto, quase sempre à base de carnês de contribuição e algumas doações, agradecem.

Retomando o título deste artigo, seriam os espíritas “descontentes”, “dissidentes”, não-religiosos ou, até, laicos, os novos cátaros?

Do ponto de vista financeiro, não há como comparar a “estrutura” da “casa-máter” com a da facção religiosa romana, até porque o tempo de existência desta última – e as “conquistas” patrimoniais dele decorrentes – são infinitamente díspares. Todavia, não há que se negar que a FEB possui uma “invejável” situação financeira (mesmo que não tenhamos, em regra, pelos meios federativos acesso aos balanços patrimonial e financeiro da federativa), tanto em termos de amplitude da estrutura física (bens imóveis).

Enquanto isso, seja a CEPA seja qualquer instituição “independente”, não alinhada às federações, não possuem estrutura “física” destacada, na forma de bens imóveis ou móveis. E, igualmente, em número de pessoas associadas ou vinculadas a entidades filiadas, a distância é gigantesca.

Todavia, embora não com a contundência e a expressão de protesto adotada pelos cátaros originais, muitas pessoas têm manifestado, por artigos e documentos de eventos, assim como, notadamente pelas redes sociais, seu inconformismo ante a postura “religiosista” adotada pela corrente oficial, que, inclusive, por meio de diversos signatários, tem expressado que aqueles que não vêem o Espiritismo como religião deveriam “fundar um movimento próprio”, à parte, com outra denominação e estrutura, já que, para eles, os majoritários, a Doutrina Espírita teria um “tríplice aspecto”: ciência, filosofia e religião.

De qualquer modo, há um “espírito catarítico” nos não-religiosos, calcado na provocação e na disposição constante para o diálogo e o debate acerca da natureza finalística e essencial do Espiritismo, já que, conforme a cátedra de Kardec, não há uma só questão que seja definitiva, permitindo a evolutividade dos conceitos e, principalmente, a revisão da filosofia e da prática espíritas, a qualquer tempo, em função do próprio desenvolvimento humano-espiritual, impedindo a dogmatização da Doutrina. Excetuando-se, portanto, os princípios doutrinários, toda e qualquer questão está aberta, permitindo e proporcionando a ampla discussão a seu respeito.

Vale dizer, ainda, que, sem propugnar por qualquer movimento separatista entre os que se dizem espíritas, no mais amplo sentido do dito atribuído a Jesus de Nazaré (“a casa dividida rui”), o catarismo foi precursor da Reforma Protestante (ocorrida a partir de 1517, como reflexo de todo um período de grande transformação social – cultural, econômica e política – ocorrida na Europa). A abertura proporcionada pelo exame racional das questões pertencentes à (então) religião cristã oficial e majoritária nos parece necessária para os dias presentes, em termos de prática espiritista. Há, notadamente, no cenário brasileiro – e, aí, poderíamos ampliar o conceito tradicional de “movimento espírita” para incluir todo e qualquer indivíduo que se declare espírita, não somente, como se poderia pensar, os adeptos de entidades que, vinculadas a entes federativos regionais, estão alinhados à FEB – muitas consciências lúcidas, entre elas intelectuais e acadêmicos, autores de livros e conferencistas de renome, os quais têm insistido na proposta de revisão das práticas espíritas e do distanciamento do caráter “religioso” das atividades espiritistas. Em verdade, remontando a Kardec (“Período de luta”, dissertação inclusa na Revista espírita de dezembro de 1868), a fase religiosa caminha para a de transição, esta última marcada pela real inserção das idéias (e dos) espíritas na Sociedade, de modo participativo, influenciando, com base na filosofia espírita, as transformações sociais, para chegarmos, por fim, à fase de renovação social.

Afastar-nos da “pecha” de movimento “religioso” é fundamental para inserir o Espiritismo no panteão das ciências humanas, já que sua filosofia de bases humanistas permite o intercâmbio entre as diversas correntes do pensamento humano, sem alijar qualquer delas, utilizando-se dos progressos materiais para comprovar as verdades trazidas pelo intercâmbio mediúnico – ontem e sempre – apresentando à Humanidade uma visão mais real do conjunto de fatos e fenômenos presentes na vida física. A idéia de um movimento religioso promove a dissensão, o separativismo e o fundamentalismo, porquanto derivados da idéia “única” de verdade, impossibilitando tanto o diálogo quanto a construção coletiva de soluções e alternativas para a evolução da Sociedade.

Então, por que, nós que não entendemos o Espiritismo como Religião e desejamos a desvinculação da Filosofia Espírita do “caráter religioso”, não nos considerarmos cátaros espíritas?
A pergunta segue para as respostas de nossas consciências e de nossas atitudes…

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