Haverá um epílogo para “A Gênese”?, por Marcelo Henrique e Nelson Santos

Tempo de leitura: 9 minutos

Haverá um epílogo para “A Gênese”?

Marcelo Henrique e Nelson Santos

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O ECK, enquanto coletivo espírita, pontua e reitera a permanência e a acuidade da tese de adulteração da obra “A Gênese”, em face das exponenciais e fundamentadas abordagens acerca dos aspectos documental, histórico, registral, jurídico e de conteúdo filosófico-doutrinário, não obstante que muitos possam alegar o contrário. Continuamos, assim, com a posição que Kardec não efetuou grande parte das alterações em “A Gênese” e, portanto, a edição póstuma deve ser desconsiderada, e, assim escrever o epílogo dessa interminável odisseia.

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A historiografia é uma  ciência, mas, também, uma arte, por interpretar o passado com os olhos do presente (o que só é possível por se valorizar os critérios de progressividade e de progressismo, estabelecidos por Kardec como condição de permanência do Espiritismo durante o tempo, neste planeta). Assim, na incessante busca de fragmentos, partes e peças para a montagem de um gigantesco e intrínseco quebra-cabeças que possibilita o imprescindível vislumbre panorâmico, a procura da compreensão de um determinado intervalo de tempo, de uma obra ou de uma personalidade, podemos estar diante de diferentes abordagens a partir dos mesmos documentos, pessoas ou fatos, o que resulta na discordância a partir da ambiência pesquisada entre posicionamentos incompatíveis entre si.

A questão marcante é que, ao estudarmos e pesquisarmos acerca de um determinado momento histórico, é comum encontrar lacunas e inconsistências documentais e também temporais. Outro elemento a ser considerado com acuidade é a tentativa de validação, nos dias atuais, de fatos pretéritos, repetindo-se argumentos passados, nos quais as limitações das pesquisas e aferições feitas preteritamente são repetidas nos dias atuais, consistindo, tão-somente num “bis in idem” (incidência duas vezes sobre o mesmo fato) e num “aberratio fact” (erro quanto ao fato) ou “aberratio rei” (erro quanto à coisa). Neste contexto, quem assim age busca tão-somente estabelecer um “trait d’union” (trato de união) justamente para possibilitar a teorização da ligação entre dois pontos ou eventos, a partir da introdução de toda uma argumentação que aparenta consistência, para defender argumentos parciais que repercutem na construção de uma tese que é “aceitável” por grande número de pessoas.

Quem são, então, estas pessoas que “embarcam” na tese construída sobre bases incongruentes e falíveis? Justamente aquelas que abdicam do direito de pensar por si próprias, ou desejam a rápida “acomodação” dos interesses para sepultar os debates e as discordâncias, e, quase que totalmente (em termos de número) não realizaram pesquisas sólidas nem compararam, entre si, as versões existentes. São, portanto, facilmente induzidas ao erro por acreditarem que estão diante de verdades. Em filosofia estaríamos diante de sofismas, com a menção a duas ou mais premissas, conjugadas entre si, para resultar em uma conclusão com “aparência de verdade”.

Outro fator a considerar – e que tem grande interferência e alcance – é a retórica. Ora rebuscada, ora com a apresentação de muitos detalhes contextuais (vários deles SEM qualquer correlação com os fatos, documentos ou situações históricas em exame) levam o desavisado, apressado ou limitado leitor à concordância tácita, aumentando o quantitativo de pessoas que parecem endossar a tese apresentada.

E, por estarem convencidos – mesmo sem o exame dos fatos e dos documentos reais que embasam a realidade histórica – de que estão diante da “verdade”, passam a repetir, seja em conversações presenciais, em eventos de debates (presenciais ou virtuais) e em comentários de textos, artigos e lives, que “já foi descoberta a sequência histórica” e, portanto, NÃO HÁ MAIS o que discutir!

Nesse contexto está inserida a obra mais madura de Allan Kardec, “A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo”. E, nele, são costurados os elos de uma tese que se propõe justamente ao que mencionamos acima: encerrar as polêmicas que cercam a contraposição entre duas realidades – que repousam sobre a existência material de duas edições diferentes da obra em comento, uma publicada por Kardec, com todas as formalidades legais e outra, póstuma, sem tais formalidades.

Isto não se restringe apenas e tão-somente ao critério de exame documental, jurídico e histórico, embora estes sejam os elementos de MAIOR IMPORTÂNCIA, e não outros, secundários guindados a posições relevantes pelos signatários da esdrúxula tese. Também encampa, consideravelmente, o conteúdo da obra em suas duas “versões”. No exame das publicações em francês são elencadas inúmeras diferenças – enxertos, supressões e alterações textuais presentes na quinta edição (que se tornou de conhecimento e aceitação comum, na França e em todos os países que recepcionaram, na forma de traduções a idiomas locais, a última obra de Kardec.

É sabido que a matriz do celeuma está nas inconsistências documentais, constatadas por Henry Sausse, colaborador e biógrafo de Kardec, em 1884. Avançou, no final do século passado, quase na virada para o atual, quando Carlos de Brito Imbassahy, num grupo virtual de estudos, notando a disparidade entre a terceira edição original, em francês, de que dispunha e a edição em português dos participantes (baseada, hoje sabemos, na quinta edição modificada, datada de 1872, esta sim com registros nas repartições francesas competentes). E ganhou ares de verdadeira pesquisa e análise, em 2017, com Simoni Privato Goidanich que, após hercúlea investigação e meticulosa pesquisa de campo (em documentos originais e instituições de registro e documentação, em Paris), gerou o livro “O Legado de Allan Kardec”, apontando todas as inconsistências documentais e jurídico-legais.

O trabalho de Privado é tão relevante e crucial que muitas instituições no Brasil e em outros países, por suas editoras próprias ou contratadas, resgataram a edição original, anterior à que vinha sendo tomada como verdadeira e publicada por Kardec (a quinta), consolidando a máxima de Erasto:

“Na dúvida, abstém-te, diz um dos vossos antigos provérbios. Não admitais, pois, o que não for para vós de evidência inegável. Ao aparecer uma nova opinião, por menos que vos pareça duvidosa, passai-a pelo crivo da razão e da lógica. O que a razão e o bom senso reprovam, rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa.” [1]

Podemos também repisar a sempre lúcida opinião de Kardec:

“Quando a Ciência sai da observação material dos fatos e trata de apreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas: cada um constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer e sustenta encarniçadamente. Não vemos diariamente as opiniões mais contraditórias serem preconizadas e rejeitadas, repelidas como erros absurdos e depois proclamadas como verdades incontestáveis? Os fatos, eis o verdadeiro critério dos nossos julgamentos, o argumento sem réplica. Na ausência dos fatos, a dúvida é a opinião do homem prudente.” [2]

No cerne das pesquisas foi “encontrada” uma outra quinta edição de “A Gênese”, datada de 1869 (sem qualquer registro documental na França, como necessário e imprescindível), idêntica à de 1872, excluindo-se, apenas, a página de rosto, na Biblioteca da “Université de Neuchâtel”, na Suiça. Esta “descoberta” reforçou a “opinião” de verdade – que é aquela que o majoritário número de espíritas (mesmo sem conhecer direito, arquivística, documentação, nem tido, sequer, realizado o estudo comparativo entre os textos, em francês, lado a lado). Estes, que compõem o “mainstream” espírita, assim, consideram esta “evidência” como prova irrefutável, ou, para repisar o termo que acima apresentamos, o “trait d’union” entre um manuscrito que demonstrava que Kardec pretendia modificar o conteúdo da obra, com a existência da Declaração de Impressão de fevereiro de 1869, validando, para quem assim opina – e é uma opinião totalmente ilegítima e inverídica – com a (para os que assim pensam) “referendada” quinta edição.

Na verdade, a referida Declaração de Impressão corresponde, verdadeira e comprovadamente, à quarta edição (ainda em 1869, estando Kardec encarnado) e não, por alegações de hipóteses sem lastro em fatos nem documentos e baseadas na mera opinião de quem quer formular situações que não resistem à lógica, à racionalidade e à sistemática de Kardec em relação aos (quase) doze anos de sua atividade espírita (18 de abril de 1857 a 31 de março de 1869). Quanto à quinta – de conteúdo diferente e adulterado, publicada postumamente, por pessoas de índole duvidosa (pelo conjunto de “suas obras”) trata-se de uma tentativa extemporânea e nula de pleno direito, porquanto desprovida de legalidade e documentalidade, quando tais pessoas tentaram “regularizar” uma “nova” edição, 1872, quando seria IMPOSSÍVEL republicar uma obra de autor desencarnado, com a alteração de seu conteúdo literário.

Há, ainda, o disparate de se tentar “regularizar” a edição póstuma de “A Gênese” (a quinta, notadamente, para que o leitor não se perca em relação a tantos dados), informando-se que a décima primeira edição da obra “O livro dos Médiuns” teria “se referido à quinta edição, e que o Depósito Legal da obra estaria referendado pelo registro em agosto de 1869 (conforme a Bibliographie de la France).

Ou seja, há uma tentativa (em curso) de buscar apontamentos de “propagandas” de outras obras de Kardec sobre a edição espúria (adulterada) para dar-lhe legitimidade. Uma legitimidade natimorta, pelos extensos e destacados motivos já expostos. Ademais, também é de se considerar com GRANDE RELEVÂNCIA a atuação das mesmas mãos que adulteraram as obras e deram-lhe impressão e divulgação, terem, também, incluído “informes” nas demais obras, para conferir autenticidade à edição póstuma e violentada, da obra em comento.

Em resumo, e sem sombra de dúvida ou interposição de outros argumentos, aponta-se o que segue, tudo escudado na lei francesa, na regularidade dos documentos e registros públicos e em estrita obediência às regras de publicação de obras literárias (situação que nem os opositores de ontem, nem os de agora, nem os que vierem podem rechaçar ou desconstituir):

  1. Depósito Legal n. 61, de 04/01/1868.
  2. Declaração de Impressão (prévia) n. 9.640, de 07/10/1867 – em favor de Rouge Frères. Dunon et Fresné – para a impressão de 3.000 (três mil) exemplares de “A Gênese”. Depósito Legal n. 61, de 04/01/1868.
  3. Declaração de Impressão, para mais 2.000 (dois mil) exemplares – DI n. 979, de 4/2/1869, Rouge Frères, Dunon et Fresné – para impressão de mais 2.000 (dois mil) exemplares, como não há (outra) DL então refere-se ao DL já aprovado.

 

Ainda assim, para a fantasia da construção “intelectual” a que se propuseram os “guardiães” modernos da tese absurda, é solenemente ignorado que o próprio Kardec, em carta datada de 13 de outubro 1868, se consolida o abandono da intenção de atualização de obras, já nos “atos finais” de sua proeminência e liderança em relação à comunidade espírita francesa. Sua saúde precária culmina no abandono total do projeto.

Os “legatários” de seus documentos – Leymarie à frente – na escrivaninha de seu apartamento devem ter, de fato, encontrado esboços, anotações e intenções de introdução de alterações na obra em tela, as quais não se concretizaram em face da doença do Professor francês. Então, antes, hoje e quem sabe “para sempre” INEXISTEM (e NÃO podem ser buscados, nem em qualquer intenção de visita a repartições, livrarias, instituições espiritistas da época ou locais históricos da França dos dois terços finais do Século XIX), documentos que atestem que a QUINTA edição de “A Gênese” seja verídica, válida, legítima ou autoral. Todavia, como somos cientistas, pesquisadores e estudiosos sérios, não poderemos – se e somente se surjam documentos AUTÊNTICOS e irreprocháveis – deixar de considerar a hipótese de “provas futuras” da autoria (embora não acreditemos que elas existam).

Voltando aos imprescindíveis e inafastáveis documentos comprobatórios dos procedimentos editoriais (como a Declaração de Impressão e o Depósito Legal), já suficientemente demonstrados, comprovados e verdadeiros, conforme vasta demonstração documental e registral, na obra de Goidanich, qualquer suscitação de dúvidas em relação à sua veracidade se constitui em ato criminoso, minimamente como calúnia, difamação e injúria.

Tendo Leymarie à frente, só é possível encontrar alguma referência a esta forjada quinta edição, como sendo de 1869, na publicação da décima primeira edição francesa de “O livro dos Médiuns”, em sua contracapa, publicada após a morte de Kardec, a partir da autorização (Declaração de Impressão) de 9 de julho de 1869.  Mesmo assim, deve-se considerar a “ambiência” vigente no mercado livreiro da França, que foi infestado, desde o final do século XVIII, por volumosa quantidade de livros “piratas”, conforme divulgado – fato notório e conhecido, inclusive pelos signatários da tese esdrúxula da quinta edição como “autêntica”.

Ora, lembremos a todos. Esta referência é, igualmente, póstuma. Ou seja, logicamente o Sr. Leymarie (e outros, não nominados, mas ocultos) que fizeram as publicações póstumas de “A Gênese” e “O Céu e o Inferno”, em 1869, após a desencarnação de Rivail-Kardec, OBVIAMENTE, precisavam de “lastro” para a continuidade delitiva e afrontatória à memória e à obra do Professor francês. Então, fazem remissão na edição (décima primeira) de “O livro dos Médiuns”, REPETIMOS, póstuma e, também, sem o competente DL, à edição espúria (adulterada, corrompida) de “A Gênese”. O quebra-cabeças está com todas as suas pecinhas, então…

Portanto, ainda que pese a dedicação de inúmeros estudiosos (e, cremos, a imensa maioria, sérios e sem más intenções), não há como confirmar, pelos meios e documentos disponíveis, a veracidade acerca da autoria da citada quinta edição.  Corroborando com as pesquisas, nós mesmo localizamos (com suporte na plataforma “Google Books”, um exemplar da “Bibliographie de la France” ou “Journal Général de L’imprimerie et de la Librairie”, do ano de 1869 (Figura 1), o qual se encontra depositado na Biblioteca da Universidade de Minnesota, em cujo fac-símile constatamos que não há qualquer publicação inerente ao depósito legal de “A Gênese”, relativo ao ano de 1869 [3].

Portanto, seguimos embasados nos fatos, na metodologia e no pensamento de Kardec, e, sobretudo, na coerência doutrinária do Professor francês. Deste modo, APENAS, as quatro primeiras edições de “A Gênese” foram publicadas pessoalmente por Kardec (com a necessária Declaração de Impressão), a partir da única redação genuína (devidamente corroborada no Depósito Legal de sua elaboração), tendo sido devidamente impressas e comercializadas a edição (primeira) e três reimpressões (segunda, terceira e quarta edições), todas idênticas entre si.

Diante disto, é bom frisar que tanto a União Espírita Francesa e o Movimento Espírita Francófono, adotam as primeiras edições (primeira à quarta, de mesmo teor) até que novos documentos legítimos e devidamente cumpridores das formalidades legais em terras francesas possam desconstituir esta premissa apoiada em fatos e no direito.

O ECK – Espiritismo Com Kardec –, enquanto coletivo espírita, pontua e reitera a permanência e a acuidade da tese de adulteração da obra “A Gênese” e grande parte de nossos estudos está devidamente publicado em artigos, por todo o ano de 2023, nas sete edições da Revista Espírita Eletrônica Harmonia, em que figuram as exponenciais e fundamentadas abordagens acerca dos aspectos documental, histórico, registral, jurídico e de conteúdo filosófico-doutrinário, não obstante que muitos possam alegar o contrário.

Continuamos, assim, com a posição que Kardec não efetuou grande parte das alterações em “A Gênese” e, portanto, a edição póstuma deve ser desconsiderada, para, assim podermos escrever o epílogo dessa interminável odisseia.

Figura 1

 

CASO QUEIRA, ACESSE TAMBEM VERSÃO PDF:
HaveraUmEpilogoMHNelsonECK

Referências:

[1] KARDEC, Allan. O livro dos Médiuns: guia dos médiuns e doutrinadores. Trad. J. Herculano Pires. São Paulo: Lake, 2013.

[2] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. São Paulo: Lake, 2014.

[3] FRANÇA. Bibliographie de la France ou Journal général de l’imprimerie et de la librairie. Paris: Au Circle de L’Imprimerie de La Librairie et la Papeterie, 1869. Disponível em <https://books.google.com.br/books?id=mhdEAQAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q=kardec&f=false>. Acesso em 16 de maio de 2024.

Imagem de Richard Reid por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “Haverá um epílogo para “A Gênese”?, por Marcelo Henrique e Nelson Santos

  1. A trajetória de Leymarie, bem como a de seus asseclas, por si só, cai em descrédito. Essa parte do rico artigo me faz lembrar a seguinte parábola:

    “Conta uma parábola de origem judaica que a Mentira e a Verdade, em um dia de sol, saíram a caminhar no campo. E resolveram banhar-se nas águas de um rio que se apresentava muito convidativo. Cada uma tirou a sua roupa e caíram na água. Mas, a um dado momento a Mentira aproveitou-se da distração da Verdade, saiu da água e vestiu as roupas da Verdade. Quando esta saiu da água, negou-se a usar as vestes da Mentira. Saiu nua a perseguir a Mentira. As pessoas que as viam passar acolhiam a Mentira com as vestes da Verdade, mas proferiam impropérios e condenações contra a atitude despudorada da Verdade. Moral: as pessoas estão mais dispostas a aprovar a Mentira com vestes de Verdade do que enfrentar a Verdade nua e crua.”

    Obs.: A parábola mencionada é uma alegoria popular, mas não há um autor específico conhecido. Essa história é amplamente atribuída a tradições judaicas, embora também seja contada em diversos contextos culturais e literários.

  2. Lendo esse texto, considero-me presenteado, e em fortalecer a postura de que estudar o Espiritismo requer amor à verdade.

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