Das Leis Morais, por Jacira Jacinto da Silva

Tempo de leitura: 7 minutos

Jacira Jacinto da Silva

Todas essas leis permanecem bastante pertinentes e oportunas. O principal se revela no componente ético que todas elas contêm, com potencial para elevar o nosso padrão civilizatório, na medida em que colocam em evidência o respeito, a convivência salutar, o avanço das conquistas atravessadas pela destruição natural do que foi superado, a Justiça. São leis que se implicam, permeando a encarnação nas diversas expressões do humanismo, seja na vida familiar, profissional ou social. Um tratado de ética, extremamente necessário, especialmente em nossos dias atuais.

Escrevemos, Milton Medran e eu, o livro “Espiritismo, ética e moral”, publicado pelo Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), disponível na página da CEPA (1), sem qualquer custo. Nesse trabalho, frisamos o significado da parte terceira de “O livro dos Espíritos”, que trata das Leis Morais. Indubitavelmente, temos ali um tratado de ética, escrito na metade do Século XIX, plenamente vigorante nos seus princípios fundamentais, embora, por evidente, merecendo as devidas atualizações, impositivas para adaptar-se às novas descobertas de todos os campos do conhecimento.

1 – Da Lei Divina ou Natural: Considerada perene e refletida em todas as leis dispostas na parte terceira de “O livro dos Espíritos”, a lei natural não se submete à interferência humana. Nossos gostos, preferências e escolhas estão moldados pela nossa capacidade de compreender a vida, em regra, limitada, escassa e pouco abrangente. Incapazes de perceber a lei Divina regendo o Universo, colocamos vieses, restringimos direitos, impomos condições, sem observar que na Lei Natural vigora a liberdade com responsabilidade. Essa Lei nos bastaria se a compreendêssemos, pois confere a cada pessoa os direitos inerentes à condição de ser humano, como defendeu Hugo Grócio no Sec. XVII. A lei natural se manifesta como um presente da vida, servindo-nos de abundantes recursos para crescermos e contribuirmos para o desenvolvimento coletivo.

2 – Da Lei de Adoração: Não faria nenhum sentido mais sustentarmos a existência de uma lei de adoração, dado que já podemos compreender, minimamente, a existência de Deus, não como uma pessoa, um ser, o detentor de todo o poder, mas como uma força criadora, o amor, a energia vital que inunda o nosso planeta. Vendo Deus na natureza, como propôs Camille Flammarion, essa preocupação perde completamente o sentido. Não obstante, essa compreensão ainda não é suficiente para garantir uma relação de amor, independente e amadurecida entre ser humano e Deus, valendo recorrer ao texto do Cap. II da parte terceira de “O livro dos Espíritos”, suficiente para nos fazer compreender que a melhor forma de “adorar a Deus” é fazer o bem e evitar o mal. Talvez somente nesse texto essa mensagem tenha sido explicitada de forma tão clara. Seria o ápice a atingir neste estágio evolutivo em que nos encontramos.

3 – Da Lei de Trabalho: Super válida, pertinente e extremamente oportuna. Apesar de decorridos mais de um século e meio, a Lei do Trabalho proposta na Obra de Kardec ainda não foi assimilada pela humanidade. Absurdamente, o poder econômico ainda escraviza literalmente seres humanos trabalhadores. Na modernidade, além do modo tradicional, inventaram-se novas formas de escravizar, dificultando o avanço para um patamar civilizatório em que todas as pessoas possam receber a contraprestação necessária, adequada e digna, pela prestação de serviços. Uma infinidade de seres humanos está privada do básico e essencial para viver, numa demonstração cabal de que ainda não fomos tocados pela recomendação de que o forte deve trabalhar para sustentar o fraco. O egoísmo alimenta o sentimento de que se conseguimos sobreviver nesta selva humana, pouco nos importa a sorte do semelhante; entretanto, a nossa causa convida à aplicação da Lei do Trabalho, que propõe a possibilidade de trabalho digno para todos, reconhecendo nesse direito uma pilastra da cidadania.

4 – Da Lei de Reprodução: Muito esclarecedora, essa lei contém um avanço extraordinário, colocando nas mãos da humanidade o papel de regular a reprodução. De fato, é necessário zelar pela continuidade das espécies, porém, não há nisso uma ditadura, que obriga as pessoas a violentarem as suas convicções; ao contrário, os espíritos nos legaram a responsabilidade de conduzir os destinos do planeta, quando afirmaram: “… Pode, pois, regular a reprodução, de acordo com as necessidades. A ação inteligente do homem é um contrapeso que Deus dispôs para restabelecer o equilíbrio entre as forças da Natureza …”. Com muita sabedoria e leveza, os espíritos trataram de questões emblemáticas, como casamento e celibato, em tudo evidenciando que a bússola está na liberdade com responsabilidade.

5 – Da Lei de Conservação: Apesar de sermos brindados com tantos recursos naturais, perfeitos e suficientes para uma vida abundante a todos, ignoramos o valor da conservação, abusamos do desperdício e já sentimos os sinais que resultam dessa degradação. As árvores absorvem gás carbônico e devolvem oxigênio; mantêm a temperatura ideal para a formação de nuvens, que derramam água no ambiente, limpando a atmosfera, irrigando a terra e enchendo os rios. A presença dos rios garante vida aos animais que ajudam a preservar a cadeia alimentar, permitindo a sobrevivência de todos. Desregradamente, interferimos egoisticamente nesse sistema natural, comprometendo inúmeras espécies da fauna e da flora, de forma irracional e insana, já que sem a conservação este planeta não poderá seguir servindo de oportunidade para as nossas próximas encarnações. Tudo se encadeia no universo, segundo os espíritos nos ensinaram, mas o desrespeito à lei natural da vida prejudica a conservação, implicando na escassez de recursos para as próximas gerações.

6 – Da Lei de Destruição: Lembrando uma vez mais a lei natural que rege a vida, se fizéssemos a nossa parte, a destruição faria parte desse processo natural, contribuindo decisivamente para a vigência da Lei de Conservação. A título de exemplo, o corpo humano cumpre seu papel no desenrolar da existência humana. Passando pela infância e a juventude, atinge a maturidade para que o espírito expresse toda a sua força intelectual na busca de conquistas benéficas para todos. Vem a maioridade, preparando para o descanso da velhice e a missão se cumpre. A pessoa que ultrapassa demais a idade suportável e proveitosa da existência, passa a sofrer e causar sofrimento, aparecendo a destruição necessária para a libertação do espírito e o reinício de suas atividades em novas experiências. A fauna e a flora experimentam o mesmo processo, esgotando-se com o decurso do tempo, requisitando a substituição do status quo para novo vigor, novo florescer, nova produção. Há muitos olhares para a destruição, parecendo-nos pertinente refletir sobre o legado dos espíritos nesta questão, sem olvidar a célebre frase de Antoine-Laurent de Lavoisier “Na Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

7 – Da Lei de Sociedade: Aqui, uma grande dificuldade. Ainda que estejamos cientes e convencidos sobre a impossibilidade de viver sozinhos e isolados, não desenvolvemos competência suficiente para conviver, que significa viver com. Precisamos do outro. Como encararíamos um aniversário sozinho, um casamento sozinho, receber um prêmio sozinho, sepultar alguém sozinho? A vida pede companhia sempre, ainda que sejamos refratários, ainda que nos pareça incômodo, ainda que reclamemos quase diariamente. Mesmo vivendo sozinhos em nossas casas, vamos ao centro espírita, à igreja, ao curso de inglês, ao projeto social, ao trabalho, às compras, à balada, buscando o outro. Precisamos do médico, do professor, do construtor, do coletor … do outro. A vida é plural e vivemos coletivamente, sendo imperativo estudar e buscar melhorar a relação com a sociedade para a nossa própria felicidade. Somos seres interdependentes, o isolamento embrutece. Ninguém têm todo o saber e todas as faculdades, por isso os seres humanos foram feitos para viver em sociedade.

8 Da lei de Progresso: Inexorável é uma boa palavra para qualificar o progresso. Essa lei, oportunamente tratada por Kardec em “O livro dos Espíritos”, não poderia ser esquecida, considerando a necessidade de trabalharmos pelo progresso, nosso, dos outros e do planeta. Ainda que recalcitremos, ainda que uns se esforcem mais que outros, o progresso acontecerá, inevitavelmente, por se consubstanciar em uma lei natural, pertencente ao comando energético que vigora no universo e impulsiona às descobertas e consequentemente aos avanços. Melhor para nós que participemos dessa busca e das conquistas dela decorrentes. Não há sucesso sem organização, tampouco no isolamento, daí a necessidade de lutarmos por mais bem-estar social.

8 – Da lei de Igualdade: Nessa lei há uma luz – uma estrela, um farol – mais do que suficiente para iluminar a terra. Quando pudermos compreendê-la na sua inteireza, o mundo será abundante em solidariedade e viveremos muito melhor. Na resistência a aceitá-la, admiti-la e vivenciá-la, reside a causa maior das nossas dores e as trevas do mundo. Bastaria refletirmos sobre o nascer e o morrer para assimilar a importância de respeitar a lei da igualdade. Porém, inexplicavelmente e por mais óbvio que pareça, não percebemos a absoluta igualdade em que nos encontramos todos, brancos, pretos, amarelos, ricos, pobres, homens, mulheres, LGBTQIA+, religiosos, ateus etc. (não importando a nossa condição no mundo), ao nascermos nas mesmas condições. Ao deixarmos a indumentária física, experimentamos situação idêntica.

9 – Da lei de Liberdade: De acordo com a lei brasileira, depois do direito à própria vida, o segundo maior bem a ser protegido é a liberdade, donde se deduz a sua importância. Kardec, muito impactado pelas revoluções do seu tempo, valorizou o sagrado direito à liberdade, reconhecendo que nenhum ser humano pode ser feliz sob o jugo de outrem. Não nos faltam desejos e motivos para tentar impor a nossa vontade ao outro; porém, por mais que as escolhas alheias nos pareçam equivocadas, e muitas vezes gostaríamos de impedi-las em prol da própria pessoa, carece reconhecer que a cada um compete decidir o que, de fato, lhe faz bem. Todo ser dotado de discernimento deve ser livre para fazer as suas escolhas, lembrando que a liberdade está sempre atrelada à responsabilidade.

10 – Da Lei de Justiça, amor e caridade. O coroamento das leis morais com a Lei de Justiça, Amor e Caridade, revela, em si, a importância que se deve dar ao outro e de quanto vale a solidariedade, exaltando a fraternidade entre os humanos. Costumamos nos valer da Lei de Justiça para reclamar vingança, mas os espíritos resumiram essa lei em poucas palavras “A justiça consiste em cada um respeitar os direitos dos demais.” Em resposta ao questionamento sobre a base da Justiça segundo a lei natural, esclareceram os Espíritos: “Queira cada um para os outros o que quereria para si mesmo”. Sem amor, nada seríamos! Essa lei bem aplicada reverteria a condição de indigência ética em que nos encontramos, mas, ao revés, teimamos em cultivar o egoísmo. Não existe amor condicional, apenas se, ou apenas com; Jaci Regis asseverou que amor é amor, sem medida e sem restrições convencionais. Que ampliemos a nossa capacidade de amar, freando impulsos primitivos que podem impedir a ascensão do bem, do amor, da fraternidade e da solidariedade. Nesses termos, a Justiça se faz muito mais facilmente.

Em síntese, todas essas leis permanecem bastante pertinentes e oportunas. A religiosidade tem espaço no mundo moderno, bastando que haja a compreensão sobre a melhor maneira de adorar a Deus – na ação, no amor, na solidariedade. Mas o principal se revela no componente ético que todas elas contêm, com potencial para elevar o nosso padrão civilizatório, na medida em que colocam em evidência o respeito, a convivência salutar, o avanço das conquistas atravessadas pela destruição natural do que foi superado, a Justiça. São leis que se implicam, permeando a encarnação nas diversas expressões do humanismo, seja na vida familiar, profissional ou social. Conforme já mencionei, um tratado de ética, extremamente necessário, especialmente em nossos dias atuais. Não obstante, tudo progride e carece de atualização, de modo que nos cumpre o dever de adaptar a questão de fundo, ou o princípio orientador de cada uma dessas leis a um vocabulário moderno e adequado ao nosso tempo. Não é mais conveniente nos referirmos às diferentes etnias como raças. Depois do projeto Genoma, essa palavra está em desuso, embora o fenômeno social do racismo persista e deva ser combatido. Ao invés de “homem”, nas inúmeras vezes em que Kardec usou essa palavra para se referir às pessoas, melhor utilizar “ser humano”. Enfim, temos melhorias a fazer, tanto em questões de conteúdo como de forma, mas o valor extraordinário das Leis Morais persiste válido e atual. Ao trabalho que nos espera.

Nota:
(1) Disponível em https://cepainternacional.org.

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