Quando a gente vira dogma, por Marcelo Teixeira

Tempo de leitura: 7 minutos

Marcelo Teixeira

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Por que alguns expoentes do Espiritismo são tratados como inquestionáveis? Influência da tradição católica que ajudou a formar nosso caráter? Seria a falta de estudar a doutrina espírita de forma mais profunda? Ou a aversão a opiniões divergentes, visto que ser fraterno seria concordar sempre com tudo e quem contesta algo é encrenqueiro ou está sofrendo obsessão espiritual? Tudo isso junto, em minha modesta opinião.

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Corria o ano de 2020, época em que o mundo se via às voltas com a epidemia de Covid-19. No Brasil, além dos cuidados necessários ao tipo de situação, tivemos de lidar com um governo tosco, que espalhou fake news sobre a eficácia das vacinas, divulgou um medicamento inócuo no combate ao vírus e retardou o início da imunização vacinal da população, o que resultou em milhares de mortes além do tolerável. Manaus, que viu centenas de seus habitantes perecerem, que o diga. A capital do Amazonas, como todos devem se recordar, foi a que mais teve vítimas fatais da Covid-19.

À mesma época, o médium e expositor baiano Divaldo Pereira Franco, então com 93 anos, precisou passar por uma intervenção cirúrgica. Uma semana depois, já estava recuperado. Foi quando um conhecido repórter fotográfico do movimento espírita do RJ postou, em uma rede social, a foto do referido médium sentado à mesa de trabalho e com a seguinte legenda: “A foto do ano. INACREDITÁVEL, Divaldo trabalhando uma semana após a cirurgia. Agradecendo a Deus por ele estar se recuperando bem. Di, nós te AMAMOS!”

Incomodado com o que havia lido, enviei para o fotógrafo uma mensagem particular. Nela, argumentei que inacreditáveis, a meu ver, eram os então mais de 100 mil mortos pela pandemia, a injustiça social, o racismo, a homofobia e o fato de Divaldo e o movimento espírita dito oficial fazerem vista grossa para essas questões. Disse, ainda, que achava repugnante esse tipo de bajulação.

Meu interlocutor, como era de se esperar, não gostou do meu descontentamento. Recomendou-me calma, ressaltou a folha corrida de mais de 70 anos do médium baiano e pediu para eu ter cuidado com as influências espirituais que eu estava recebendo. Sacou, então, das questões 459 e 525, de “O livro dos Espíritos”, de Allan Kardec (falarei sobre ambas a seguir).

Como eu respondi dizendo para que ele também tomasse cuidado, mas com a idolatria, ele disse: “Tem gente fazendo muito pouco e falando dos que fazem muito. Isto é obsessão de amigos espirituais que querem tumultuar ao invés de ajudar”. Como não estava interessado em seguir com o embate, arrematei com a célebre frase do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “O inferno são os outros”.

Na questão 459, Kardec pergunta se os Espíritos influem em nossos pensamentos e atos. A resposta é positiva. Influem muito mais do que imaginamos, a ponto de, comumente, nos dirigirem. A 525 vai mais fundo. Kardec questiona se os espíritos influenciam nos acontecimentos da vida. A explicação é ótima, pois esclarece que são os Espíritos que nos aconselham e também têm ação direta sobre o cumprimento de vários fatos que conosco acontecem. Muitas vezes, diz a resposta, julgamos que os Espíritos só se manifestam por meio de fenômenos extraordinários, portando varinhas mágicas e similares. Na grande maioria dos casos, no entanto, lá estão eles provocando, entre duas pessoas, um encontro que pensaremos ter ocorrido por acaso; inspirando-nos a passar (ou não) por determinado lugar, etc. Tudo sempre de modo bem sutil, a ponto de crermos que estamos apenas seguindo o próprio instinto.

Foi a essas questões que o fotógrafo das celebridades espíritas recorreu para me advertir. Pelo visto, ele achou que entidades malévolas estavam me inspirando para atacar Divaldo e desmerecer o trabalho por ele realizado.

Em momento algum – faço questão de frisar – ataquei o trabalho de Divaldo. Não me referi à Mansão do Caminho (instituição beneficente por ele criada, há décadas) ou às centenas de livros por ele psicografados. Apenas demonstrei minha estupefação pelo fato de um colega de profissão classificar como “a foto do ano” uma prosaica cena do referido médium e tribuno à mesa de trabalho. Isso num ano de imagens chocantes, com centenas de corpos sendo enterrados em valas coletivas; pessoas esperando por atendimento em hospitais e postos de saúde; gente chorando pelos parentes com dificuldade para respirar; famílias traspassadas pela dor de não poder se despedir direito de um ente querido, pois os velórios eram feitos às pressas etc.

Já que, conforme cita Kardec, os Espíritos nos inspiram em vários pensamentos e atos, por que não ser eu o inspirado a alertar meu colega de profissão quanto ao exagero de suas palavras? E por que ele julgou ser eu o equivocado a ponto de achar que eu estava atacando o trabalho de Divaldo e do movimento espírita federativo? Sei que aproveitei para expressar minha indignação ante o silêncio ensurdecedor que figuras ilustres do citado movimento e entidades federativas fazem diante de temas pungentes, mas trata-se – acreditem – de uma indignação de alguém que quer um mundo justo e fraterno para todos e que se inquieta ante a inércia de quem poderia levantar a voz, mas não o faz.

O problema reside, a meu ver, no fato de que boa parte dos cidadãos espíritas resolveu sacralizar determinados autores, médiuns e espíritos. Transformá-los em dogmas, melhor dizendo. E quando a gente vira dogma, é um caso sério.

Dogma é uma palavra interessante. Significa ponto fundamental ou indiscutível de uma crença. Na Igreja Católica, um dogma é uma verdade absoluta, inquestionável, definitiva em torno da qual não pode haver dúvidas. Segundo a enciclopédia virtual Wikipedia, “uma vez proclamado solenemente, nenhum dogma pode ser revogado ou negado, nem mesmo pelo Papa ou por decisão conciliar. Por isso, os dogmas constituem a base inalterável de toda a doutrina católica, e qualquer católico é obrigado a aderir, aceitar e acreditar nos dogmas de uma maneira irrevogável”.

O catolicismo possui vários dogmas. Entre eles, o da virgindade de Maria. O católico tem de acreditar que a mãe de Jesus o concebeu sendo virgem e ponto final. Não se discute.

A doutrina espírita não contém dogmas, mas princípios básicos. Por que não são dogmas? Porque ninguém é obrigado a aceitar isso ou aquilo sem discutir. Quem estuda o Espiritismo é levado a entender tudo à luz da razão, da lógica. Tudo é explicável, tudo tem um porquê. Tais princípios básicos são a existência de Deus, a existência e sobrevivência do Espírito após a morte, a pluralidade dos mundos habitados, a pluralidade das existências – mais conhecida como reencarnação – e a comunicabilidade entre os Espíritos. Ninguém aceita esses princípios porque devem ser aceitos e está acabado. Tudo é estudado e debatido de forma racional.

Se é assim, por que alguns expoentes do Espiritismo são tratados como inquestionáveis? Influência da tradição católica que ajudou a formar nosso caráter? Seria a falta de estudar a doutrina espírita de forma mais profunda? Ou a aversão a opiniões divergentes, visto que ser fraterno seria concordar sempre com tudo e quem contesta algo é encrenqueiro ou está sofrendo obsessão espiritual? Tudo isso junto, em minha modesta opinião.

Tenhamos em mente que ninguém no movimento espírita – a começar pelas figuras mais proeminentes – é dogma, isto é, incontestável ou infalível. Como dizia o professor e escritor espírita Herculano Pires, não existe professor de Espiritismo, pois todos, absolutamente todos, são aprendizes. Isso inclui médiuns como Divaldo, Chico Xavier, Yvonne Pereira e José Raul Teixeira; escritores como Richard Simonetti, Suely Caldas Schubert, Jorge Andrea e o próprio Herculano; Espíritos como Emmanuel, Joanna de Ângelis, André Luiz, Amélia Rodrigues e Manoel Philomeno de Miranda… Eu também estou nesta lista, bem como escritores espíritas contemporâneos meus, presidentes de centros espíritas, palestrantes e por aí vai. Todos, sem exceção, são Espíritos em evolução e em constante aprendizado e aperfeiçoamento.

Em recente postagem nas redes sociais, o escritor e palestrante espírita Elias Moraes comenta as tiradas machistas que há, por exemplo, no livro “O consolador” (questão 67), do Espírito Emmanuel. Datado de 1941 e psicografado por Chico Xavier, “O consolador” é de um tempo em que as discussões sobre feminismo no Brasil mal começavam. Nele, Emmanuel diz: “A ideologia feminista dos tempos modernos pode ser um veneno para a mulher desavisada dos seus grandes deveres espirituais na face da Terra. Se existe um feminismo legítimo, este deve ser o da reeducação da mulher para o lar e nunca para uma ação contraproducente fora dele”. Considerações, portanto, restritas à mentalidade machista e conservadora da época e que não podem ser lidas sem levar em conta o contexto social e histórico em que foram produzidas. Afinal, como bem ressalta Elias, “não é por ser de Kardec ou de Chico Xavier que ela [a obra literária] está isenta dos preconceitos de seu tempo ou traga uma verdade absoluta. Ao contrário, toda literatura, mesmo a mediúnica, exige de nós espírito crítico e adequada contextualização”.

Allan Kardec, por incrível que pareça e para espanto de alguns leitores, também deve ser contextualizado conforme o século em que viveu. Pego como exemplo as diversas declarações racistas que há em suas obras. A despeito do grande trabalho que fez ao fundamentar e divulgar a doutrina espírita, ele não escapou de ser um europeu limitado à ciência racista e eurocentrista de seu tempo. No entanto, o próprio Kardec deixou claro, no primeiro capítulo do livro “A gênese”, que o espiritismo não deveria ser tratado como uma ideia pronta e imutável, mas sim como uma doutrina em constante diálogo com as descobertas das ciências, transformando-se e modernizando-se conforme estas avançassem.

Ao saber das considerações do Elias sobre o livro “O consolador”, um conhecido espírita conservador aqui do RJ questionou se ele já fez um por cento do que o Chico fez. Aí, sou obrigado a novamente enfatizar que não se trata de desmerecer o trabalho deste ou daquele médium, mas de contextualizar e entender de uma vez por todas que nenhum de nós é inquestionável. Todos nós estamos aprendendo, todos nós estamos sujeitos às limitações do tempo em que vivemos e somos passíveis de críticas que visam ao aprimoramento da nossa forma de pensar, agir e produzir.

Se alguém duvida, basta prestar atenção na vida cotidiana. Pais e mães também têm muito que aprender com os filhos; patrões precisam aprender com os empregados; professores aprendem muito com as vivências dos alunos; ninguém é sacrossanto ou intocável só porque tem autoridade ou anos de experiência; críticas construtivas e contextualizações necessárias não significam falta de respeito e folha corrida não é desculpa.

Enfim, nenhum de nós é dogma! E exemplo a ser seguido só um: Jesus.

 

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FONTES:

KARDEC, A. “A Gênese”. Trad. Carlos de Brito Imbassahy. São Paulo: FEAL, 2018.

KARDEC, A. “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.

WIKIPEDIA. Dogma. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Dogma>. Acesso em 10. dez. 2024.

XAVIER, F. C. O consolador. 18. Ed. Brasília: FEB, 1997.

 

Imagem de Mohamed Hassan por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “Quando a gente vira dogma, por Marcelo Teixeira

  1. Concordando em gênero e número com o texto., O que me atraiu na proposta do espiritismo foi justamente o livre pensar. A ideia de uma espiritualidade não dogmática, mas progressista, que propõe a evolução de homens e mulheres expandindo a consciência para o universo .Por isso me afastei da igreja católica com seu catecismo e dogmas inquestionáveis e de casas espiritas à sua semelhança. Essa quase idolatria por figuras humanas ,com seus discursos e interpretações rebuscadas inacessíveis a compreensão da maioria., Afastei-me definitivamente quando em 2022 a defesa das ideias fascistas começaram a ressoar nos discursos dentro do centro , Que bom que existem , como você, espiritas que usam a racionalidade proposta pelo próprio Kardec.

  2. Não deveria ser assim, mas no ‘espiritismo dogmático’, a voz que questiona é frequentemente abafada. Fui super criticado — quase excomungado — por questionar o mentor da casa. Ele afirmava que deveríamos ser indulgentes com as falhas alheias em nome da caridade. Apenas questionei: ‘Ser conivente não é indulgência. Não estaríamos distorcendo os fatos?'” Fui encaminhado para o tratamento espiritual.

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