Pesquisas indicam alterações nos originais de Allan Kardec, por Paulo Henrique de Figueiredo

Tempo de leitura: 3 minutos

Paulo Henrique de Figueiredo

Acima, imagem do Exemplar de “A Gênese”, depositado legalmente na Biblioteca Nacional da França, quando Kardec ainda era vivo (Correio Fraterno).

Trágicas circunstâncias históricas criaram uma nuvem de fumaça, de modo que as alterações não foram percebidas.

Em dezembro de 1884, o biógrafo de Kardec, Henri Sausse, apoiado pelo editor Gabriel Delanne, Léon Denis e Berthe Froppo, denunciou no jornal Le Spiritisme, no artigo “A infâmia”, que a quinta edição do livro “A gênese” havia sido adulterada em mais de 260 itens.

Dita “revisada, corrigida e aumentada”, a edição fora publicada quando Pierre-Gaetan Leymarie acumulava as funções de secretário-gerente da Revue Spirite e administrador da Sociedade Anônima da Caixa Geral e Central do Espiritismo.

Sausse, Froppo, Delanne, Denis e Amelie Boudet, entre outros, vinham denunciando os desvios de Leymarie e seus partidários com relação aos interesses originais propostos por Kardec. Através de palestras e artigos, afrontavam conceitos da doutrina espírita, misturando teosofia, mistificações e temas contrários ao Espiritismo.

Em março de 1885, Leymarie publicou na Revue uma carta-resposta de seu amigo A. Desliens, antigo administrador da Sociedade em 1870 e 1871, informando que, antes mesmo de ter se esgotado a primeira tiragem de A gênese, Allan Kardec havia autorizado uma nova publicação em 1868. “São as 4ª, 5ª e 6ª edições (…) e esta matriz serviu para as edições publicadas de 1869 a 1871 e em diante”. Segundo Desliens, Kardec teria feito modificações em letras soltas da placa provisória, diretamente na tipografia.
Durante alguns anos a polêmica se sustentou, mas esfriou e acabou esquecida, sendo as traduções autorizadas por Leymarie pelo mundo afora feitas com base na versão alterada da quinta edição. Somente na Espanha, excepcionalmente, José Maria Fernandez Colavida (1819-1888) ofereceu a tradução da segunda edição original de Kardec, escapando assim das alterações depois efetuadas.

No Brasil, em 1998, o escritor Carlos de Brito Imbassahy participava de um grupo de debate de Filosofia Espírita, num programa de bate-papo da internet (TiVejo). Estudando “A gênese”, tinha à mão uma rara edição, a terceira, em francês, herdada de seu pai, o escritor Carlos Imbassahy (1883-1969). Percebendo que o texto não coincidia com as traduções dos demais participantes, ‘redescobriu’ as alterações, imaginando equivocadamente que o tradutor brasileiro seria o responsável. Sua indignação não teve repercussão e ele resolveu traduzir para o português a terceira edição original. Dezoito anos depois, em 2016, o presidente da Confederação Espírita Argentina, tradutor das obras de Kardec, Gustavo Martínez, recebeu um e-mail questionando-o sobre as controvérsias históricas em torno de “A gênese”. Consultou a pesquisadora brasileira Simoni Privato, espírita e diplomata, residente em Montevidéu e que estava em viagem pela divulgação espírita em Buenos Aires.

Direto na fonte
Em abril de 2017, Simoni Privato foi a Paris para continuar sua pesquisa:
“Tive em minhas mãos, por exemplo, o testamento original de Allan Kardec, escrito de seu próprio punho. Ao mesmo tempo que me emocionava, compreendia que tinha o dever de compartilhar o resultado dessa investigação”.

Depois de obter autorizações de acesso aos documentos judiciais inéditos, Simoni publicou no final do ano passado o resultado de sua minuciosa investigação no livro “El legado de Allan Kardec” (CAE).

Na obra, conclui que “os novos documentos encontrados provam, de maneira categórica, que a quinta edição de “La Génesis”, foi publicada em 1872, mais de três anos depois da morte física de Allan Kardec, sendo portanto falsa qualquer alegação a favor de que Allan Kardec seria o autor das modificações nela existentes”.

Atualmente, podemos ponderar que trágicas circunstâncias históricas criaram uma nuvem de fumaça, de tal forma que as alterações não foram prontamente percebidas. Depois de 1868, o movimento espírita e o povo francês viveram momentos difíceis. Em março de 1869, a morte de Allan Kardec desfaz a grande rede de comunicação que chegou a mil centros de pesquisa em todo o mundo. Entre 1870 e 1871, a guerra entre Prússia e França. Em um mês e meio, a derrota do exército francês. Cai o imperador, rebelião em Paris, república. Paris é bombardeada, invadida. Na Sociedade de Paris, Desliens renuncia, alegando problemas de saúde, e Leymarie assume. O movimento espírita estava disperso justamente entre a quarta e a quinta edição.

A necessária restauração do texto original
Quando do lançamento de “El legado de Allan Kardec”, a Confederação Argentina anunciou a publicação da tradução para o espanhol do conteúdo definitivo da obra, isto é, de 1868, disponível também para download gratuito [1].

Em 4 de março de 2018, convidada pela União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE), a própria pesquisadora, Simoni Privato, fez um seminário em São Paulo, quando lançou a versão em português de seu livro.

As editoras, os meios de comunicação espírita, palestrantes, escritores, todos são chamados a fazer parte da solução! Uma dedicação solidária em torno do texto original de Allan Kardec em suas traduções brasileiras. Pois a ele devemos essa adequada e grandiosa homenagem: o marco de um resgate histórico, aos 150 anos de “A gênese”.

Citações bibliográficas:
“Revue Spirite”. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos. Allan Kardec. FEB, 1858-1869.
“El legado de Allan Kardec”. Simoni Goidanich Privato. Confederación Espiritista Argentina, 2017.

Notas do ECK:
[1] Artigo originalmente publicado na edição n. 479, de janeiro e fevereiro de 2018, do jornal “Correio Fraterno”.
[2] A referida publicação pode ser baixada em: https://www.ceanet.com.ar/doc/la_genesis.pdf

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