O aborto e o paradoxo das religiões, por Jacira Jacinto da Silva

Tempo de leitura: 4 minutos

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A filosofia Kardecista não é condenatória, mas antes libertadora, donde se conclui que a nossa postura deve voltar-se sempre à abertura de canais para o aprimoramento do ser.
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O direito à vida é, sem nenhuma dúvida, o principal fundamento utilizado por todos os religiosos, dentre eles os espíritas, naturalmente, para condenar o aborto.
De fato, a pergunta n. 880 de O Livro dos Espíritos está assim redigida: Qual o primeiro de todos os direitos naturais do homem? R: “O de viver. Por isso é que ninguém tem o direito de atentar contra a vida de seu semelhante, nem o de fazer o quer que possa comprometer-lhe a existência corporal”.
Especialmente a partir do conhecimento da filosofia kardecista, passei a valorizar muito mais a oportunidade da vida humana neste mundo terreno. É impressionante como o passar dos anos nos permite perceber melhor o que representa a experiência; o significado do trato com o outro, dos embates diários nas experiências que nos obrigam a rever conceitos, a recuar diante de posições já consolidadas, a buscar caminhos novos para situações que pensávamos bem resolvidas. A vida ensina! E como ensina! Portanto, é maravilhoso viver! Diria mais, a vida é a grande oportunidade de aprendizado e crescimento. Bendita a vida!

Mas será que isso nos dá o direito de impor a todas as mulheres o dever de gerar um filho ainda que indesejado; ainda que rejeitado; ainda que em condições adversas, com possibilidades ínfimas de sobrevida; ainda que sem condições de sobrevivência?

A questão não pode ser tão simples como pretendem fazer crer aqueles que agem movidos pela paixão cega por suas crenças. Bem dizem que religião não se discute, pois quando se trata de crença não se fala em razão, e estando fora a racionalidade não há possibilidade de dialogar, ou buscar um entendimento lastreado no conhecimento e nos fatos.

Para contestar a legalização do aborto, invoca-se costumeiramente O Livro dos Espíritos, razão pela qual reputo de fundamental importância analisar a questão 344 desse livro, que segue transcrita: P: Em que momento a alma se une ao corpo? R: “A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do nascimento. Desde o instante da concepção, o Espírito designado para habitar certo corpo a este se liga por um laço fluídico, que cada vez mais se vai apertando até o momento que a criança vê a luz”.

Kardec foi muito claro ao resumir o pensamento dos espíritos nessa resposta e também nas seguintes. Não está escrito em nenhum lugar das obras kardequianas que a união do espírito com o corpo se completa no momento da fecundação. Dizer que se inicia é bem diferente de dizer que se completa; entre a primeira situação e a segunda existe um período de nove meses de gestação, segundo deixam claro os espíritos na seqüência do texto.

Não sou favorável ao aborto, e faço questão de ressaltar isso, mas me sinto muito à vontade para dizer que não posso impor a minha convicção a ninguém, não apenas nesta questão, como em nenhuma outra. As pessoas são livres e devem receber educação, instrução, formação, suficiente para tomarem suas decisões ao longo da vida.

Os crentes de todas as religiões condenam todo tipo de aborto e condenam até mesmo a pílula do dia seguinte, sob o pretexto de que já teria havido a fecundação e, portanto, já existiria vida. Defendem a criminalização de condutas que a própria lei não pune, como os diversos anticonceptivos e o aborto se a gravidez resultou de estupro.

Penso que a filosofia Kardecista não é condenatória, mas antes libertadora, donde se conclui que a nossa postura deve voltar-se sempre à abertura de canais para o aprimoramento do ser. Ao invés de intimidar e condenar, exigindo que se incrimine o aborto, devemos orientar as mulheres sobre o papel da maternidade e a importância da vida; ajudar na educação; auxiliar a formar uma geração de jovens responsáveis; amparar as jovens mães desprotegidas.

Antes de afirmarmos categoricamente que somos contrários à legalização de todo e qualquer tipo de aborto, deveríamos analisar as conseqüências que disso resultariam. Conquanto os abortos clandestinos estejam diminuindo no país, de acordo com matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, no ano de 2005 o número estimado superou um milhão, o que permite afirmar que esta imensidão de mulheres colocou suas vidas em risco (1). Sequer imaginando quais são as conseqüências da manutenção obrigatória de uma gravidez indesejada, como aquela que deriva do estupro, por exemplo, penso que não estamos autorizados a condenar indistintamente toda e qualquer decisão de abortar.

Melhor seria se os representantes dos mais diversos segmentos religiosos saíssem em campanhas públicas, usando a mídia nacional como fazem para condenar o aborto, apresentando propostas concretas de apoio, amparo, proteção e encaminhamento de todas as grávidas de filhos indesejados.

Muito melhor seria se esses representantes religiosos tivessem o mesmo olhar implacável contra o abandono e a miséria que ceifam a vida real de crianças que estão marginalizadas e condenadas a “não viver”, embora biologicamente estejam vivas.

É estranhamente paradoxal que as religiões defendam tanto um feto recém concebido e até mesmo se posicionem contrariamente à pílula do dia seguinte sob o argumento de que poderia ter ocorrido a fecundação e, por conseqüência, existiria uma célula ovo com algumas horas em formação, mas não se incomodem por ver tantas pessoas, incluindo uma imensidão de crianças, semi-vivas,
=perambulando pelo mundo à mercê da própria sorte, sem que surja um olhar religioso em socorro das suas vidas; estas sim, reais, e bem reais.

Sejamos a favor da vida, literalmente!

Nota do Editor:
Dados da Organização Mundial de Saúde (2010-2014) apontaram para 55 milhões de abortos em todo o mundo, sendo quarenta e cinco por cento destes, realizados de modo inseguro. Durante audiência pública realizada em 2018, no Supremo Tribunal Federal, foram apresentados dados de que ocorrem, no Brasil, cerca de 1 milhão de abortos/ano, levando cerca de 250mil mulheres à hospitalização em decorrência de complicações da interrupção da gravidez. Em 2020, considerando os meses de janeiro a junho, foram realizados 81 mil procedimentos clínicos e hospitalares, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil por causa de abortos malsucedidos, enquanto foram realizados 1.044 abortos legais no país.

Editorial: A Revista Espírita Harmonia está de volta!

 

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