Liberdade é (de)ver, por Célia Aldegalega

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Célia Aldegalega

Toda a orientação espírita fundamentada no legado escrito por Kardec, é Espiritismo. Não faz sentido edificar ambiente separatista, ou de cisma, basta que se clarifiquem as diferenças dentro e fora do movimento espírita, para que qualquer faça uma opção consciente por uma linha pró-religiosa, ou laica e livre-pensadora, que melhor lhe corresponda. Ainda que esta última esteja alinhada com os princípios fundacionais do Espiritismo, e que a via religiosa seja prejudicial à sua difusão em sociedades que cada vez mais se distanciam das religiões, precisamente pela ampliação da consciência e exercício democrático do livre-pensamento, que fomentam autonomia.

O cineasta Manoel de Oliveira (1908-2015) declarou que, mais do que um direito, a liberdade é um dever. Realizador de um épico sobre a história de Portugal intitulado “Non”, ou a Vã Glória de Mandar, premiado em Cannes, o mais aclamado dos cineastas portugueses considerava, por conseguinte, que ser livre é uma obrigação. A escrevente destas linhas toma a liberdade de ensaiar o neologismo (de)ver, assim associando a liberdade com visão, enquanto percepção, avaliação e compreensão. O desenvolvimento destes atributos é processo, a capacitação para usá-los com racionalidade encaixa no perfil de Espírito desenvolvido, ou, como mais vulgarmente designado em meio espírita, superior, e é próprio da filosofia espírita considerar que o livre-arbítrio do Espírito se amplia na proporção da sua evolução. Pensamento liberto é também proporcional à ampliação da consciência.

Pode igualmente referir-se à (segunda) visão, na classificação das aptidões medianímicas – a capacidade de ver o que está oculto, o invisível para a maioria, aqui como alegoria de ver além do óbvio e da aparência. Como todo o adepto do Espiritismo sabe, a visão medianímica não é produzida pelo aparelho orgânico, nomeadamente, os olhos, e por isso se lhe chama segunda visão, é ainda relacionada com a potencialidade de antever, e daí o termo visionário, atribuído a todos aqueles que antecipam o futuro, que veem para além do (seu) presente, os idealistas, os utopistas, embora tantas vezes rotulados de excêntricos.

Essas pessoas possuem a faculdade de se emanciparem de ideologias maioritárias, de fórmulas normativas, gerando ideias, criando paradigmas.

Allan Kardec foi um visionário, e fundou uma filosofia espiritualista projetada para o futuro, capaz de alterar a perceção do presente, implementando a avaliação e ampliando a compreensão das experiências corpóreas, naqueles que tomam conhecimento dela.
Na “Revista Espírita” – Jornal de Estudos Psicológicos, Ano X, Fevereiro de 1867, (trad. de Evandro Noleto Bezerra, ed. FEB), Allan Kardec fez publicar um texto intitulado “Livre-Pensamento e Livre-Consciência”, desde logo apresentando esta associação de pensamento com consciência, e de liberdade com ambos. O artigo é sequela de um outro publicado no número anterior da Revista, com o título “Olhar Retrospectivo sobre o Movimento Espírita”, título que se nos afigura irônico, desde aqui, 165 anos após. Ao tempo, escassa década decorrida, a primeira, da fundação do Espiritismo, o seu fundador já exercitava reflexão sobre o movimento espírita, e não se alheava do contexto histórico, social e político. Pelo contrário.

Ficamos cientes de que em França existiam, na época, duas publicações cujos nomes, afinal, compõem o título do artigo de Allan Kardec. E convém lembrar que, apesar do conceito de livre-pensamento remontar à Antiguidade grega, e perdurar até aos nossos dias, a expressão Libre-pensée, tinha sido cunhada por Victor Hugo num discurso de 1850, significando um modo de pensar e de conduta desembaraçados de postulados religiosos, filosóficos, ideológicos ou políticos, sendo que a Sociedade dos Livres-pensadores surgiu em diversas cidades francesas, incluindo Lyon, a partir de 1848. Eram energicamente anticlericais, ateus e materialistas, e acabariam por pressionar a separação do Estado da Igreja (Estado Laico), durante a Comuna de Paris (1870-71), não sem antes sofrerem perseguições durante o Segundo Império (1852-1870), regime monárquico bonapartista sob a liderança de Napoleão III, vigente à data do artigo de Allan Kardec que, entre a Primeira e a Segunda República (1871-1940) francesas, se caracterizou por desenvolvimento econômico e modernização.

Este foi o contexto histórico e político da fundação do Espiritismo. A publicação que Kardec comenta e interpela seria já uma segunda encarnação, após extinção duma primeira, em 1862, e era dirigida por Émile Eudes, dito general Eudes, que viria a ser membro do Comité Central da Comuna de Paris. Vem a propósito lembrar que, apesar da sua declarada isenção de todas as correntes filosóficas, ideológicas e políticas, os Livres-pensadores franceses viriam a acolher e a ombrear com os ideários anarquistas e socialistas.

Kardec classifica os livres-pensadores em dois grupos, os incrédulos, e os crentes. Com efeito, a publicação também comentada, “La Libre Conscience”, subtitulada Revista Filosófica, Científica e Literária, era o órgão de propaganda da Aliança Religiosa Universal, cujo primeiro número foi publicado em outubro de 1886 (Fonte: Gallica). Sucintamente, os incrédulos fundamentavam-se no pensamento, enfocando o racionalismo, os crentes na consciência, focada na moral. Ambos concordantes na liberdade.

Naturalmente, em relação aos livres-pensadores incrédulos, Kardec alonga-se na defesa do caráter científico da existência de Deus e da vida espiritual, mas não cabe agora adentrar essa análise. Na defesa da superlatividade do Espiritismo, Kardec afirma “Restringir o campo do pensamento, é restringir a liberdade (…)” (p.63). E, na página seguinte: “Toda opinião racional, que não é imposta nem subjugada cegamente à de outrem, mas que é voluntariamente adotada em virtude do exercício do raciocínio pessoal, é um pensamento livre, quer seja religioso, político ou filosófico. Em sua acepção mais vasta, o livre-pensamento significa: livre-exame, liberdade de consciência, fé raciocinada; simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; (…)”.

Perora menos acaloradamente sobre a revista “A Livre-Consciência”, mas é claro e veemente na rejeição da crença cega e das suas limitações. Em corolário, declara que o Espiritismo “(…) não procurando afastar nenhum dos concorrentes na liça aberta às ideias que devem prevalecer no mundo regenerado nas condições do verdadeiro livre-pensamento; não admitindo nenhuma teoria que não seja fundada na observação, está, ao mesmo tempo, nas do mais rigoroso positivismo; enfim, tem sobre seus adversários das duas extremadas opiniões contrárias, a vantagem da tolerância (p.66)”.

Na atualidade, assistimos a choques frontais de paradigmas sociais e ideológicos, a agitações sociais, conflitos que incendeiam os dias, inquietantes incidentes e alterações climáticas em consequência da má gestão dos recursos naturais, que nos causam sensação de caos, de desagregação. Curioso que, sendo reencarnacionistas, tantas vezes pareçamos estranhar estes contextos conturbados, como se os vivêssemos pela primeira vez! Fora de brincadeira, se é certo que, geralmente, não retemos memória consciente de experiências passadas, elas estão-nos incrustadas, e, de algum modo, seria expectável que nos adviessem reminiscências dessas memórias inconscientes, que nos inspirassem alguma serenidade e acolhimento das perturbações, relativizando, sem deixar de participar na mudança. No sentido de sermos agentes de mudança, talvez a liberdade seja um dever. E que dependa da nossa capacidade de ver.

No supramencionado artigo, Kardec faz afirmações ambivalentes, muito peculiares, quando, por um lado, remete as utopias (da sua época, presume-se) para o fracasso, mas admite que “agitam a sociedade e preparam a renovação”, rematando: “Ainda nisto está o sinal dos tempos.”

Sinal dos tempos poderá ser igualmente a agitação atual do movimento espírita no Brasil, onde emergem abertamente perspectivas diversas, destacando-se a tensão entre a orientação declarada livre-pensadora e laica, de onde se destaca a CEPA, e a orientação afeta à FEB, difundida globalmente pela diáspora brasileira, a cuja hegemonia também o movimento espírita português não se furta. Pese embora as divergências, na cultura portuguesa, mercê de silenciamento ancestral imposto primeiro por quase três séculos de Inquisição, depois, pela ditadura Salazarista de quase meio século, tenham a desventurada tendência de se “resolverem” pelo silêncio, por sub-reptício ignorar de pontos de vista diversos, pela surdez a vozes não concordantes com cânones, em nome de uma alegada necessidade imprescindível de manter a qualquer custo um ambiente extático-estático, que se entende dever ser o de Casa Espírita, abafando, descartando conhecimento que não esteja consonante com o que já conhecem, e confundindo discordância com discórdia.

Recorde-se que Allan Kardec destacou a tolerância como a vantagem do Espiritismo. Hoje, talvez desse preferência a uma palavra que não implicasse superioridade, como empatia, flexibilidade, aceitação… Mais que não fosse, pondo-se em ação a famosa caridade espírita. Mas, melhor ainda, se fazendo uso da declaração supracitada de Kardec, que começa: “Toda opinião racional, que não é imposta nem subjugada cegamente à de outrem, (…) é um pensamento livre (…)”, e que, neste ponto, convidamos a reler.

Afinal, toda a orientação espírita fundamentada no legado escrito por Kardec, é Espiritismo. Não faz sentido edificar ambiente separatista, ou de cisma, basta que se clarifiquem as diferenças dentro e fora do movimento espírita, para que qualquer faça uma opção consciente por uma linha pró-religiosa, ou laica e livre-pensadora, que melhor lhe corresponda. Ainda que esta última esteja alinhada com os princípios fundacionais do Espiritismo, e que a via religiosa seja prejudicial à sua difusão em sociedades que cada vez mais se distanciam das religiões, precisamente pela ampliação da consciência e exercício democrático do livre-pensamento, que fomentam autonomia.

É também de Kardec e do mesmo artigo a declaração dirigida aos livres-pensadores crentes, representados pela revista da Aliança Religiosa Universal: “Tu és o mais livre de todos os homens, desde que não vás mais longe do que a ponta da corda à qual te amarramos”.

Avanço à variante, “à qual te amarras”. Assim sempre nos assista a lucidez de ver para além da ponta da corda.

Nota: Para o Brasil, este é um momento crucial no exercício da liberdade de opção política, e exprimo o meu mais profundo voto de que a consciência liberta e o pensamento livre triunfem sobre a barbárie, o obscurantismo e o movimento retrógrado. Assim seja!

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