Espírito: consciência em busca de liberdade, por Milton Medran Moreira

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Milton Medran Moreira

Qual seria a condição na qual o homem poderia gozar de uma liberdade absoluta?
A do eremita do deserto. Desde que haja dois homens juntos, eles têm direitos a respeitar e não têm mais, por consequência, liberdade absoluta.
(Questão 826, de “O livro dos Espíritos”.)

Espiritismo: filho da liberdade
Sistematizado na França do Século XIX, tempo em que se estruturavam no mundo as ideias liberais, o Espiritismo é um típico e genuíno filho da liberdade. No capítulo a que dá o título de Lei da Liberdade, “O livro dos Espíritos” empresta apoio integral às grandes propostas que, desde o Iluminismo, pugnavam contra a escravidão, ainda reinante naqueles meados do 19º século da Era Cristã em muitos países do Ocidente (1) e a favor da liberdade de pensamento, de consciência e de crença.

A respeito, aliás, da escravidão, “O livro dos Espíritos” posiciona-se, corajosamente, contra aquele instituto. Allan Kardec deixa ali consignada a sua opinião pessoal, corroborando a dos Espíritos, através desta observação: “A lei humana que consagra a escravidão é uma lei antinatural, visto que assemelha o homem ao animal e o degrada moral e fisicamente” (2).

Coincidentemente, no mesmo ano de 1857, quando era editado em Paris “O livro dos Espíritos”, nos Estados Unidos da América do Norte, nação cuja Constituição, anos antes, pioneiramente, houvera arrolado uma Declaração de Direitos Fundamentais do Homem, a Suprema Corte, no famoso caso Dred Scott, defendia a escravidão e o direito de matar o escravo negro, sob estes argumentos: “1) o negro não é uma pessoa humana e pertence a seu dono; 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade perante a lei ao nascer, não havendo qualquer preocupação com sua vida; 4) quem julgar a escravidão um mal, que não tenha escravos, mas não deve impor essa maneira de pensar aos outros, pois a escravidão é legal; 5) o homem tem o direito de fazer o que quiser com o que lhe pertence, inclusive com seu escravo; 6) a escravidão é melhor do que deixar o negro enfrentar o mundo” (3).

Veja-se, pois, que, quando isso implicava em preservar privilégios firmemente estabelecidos, não era nada fácil, em meados do Século XIX, defender a liberdade ou a igualdade de todas as pessoas, como o fez firmemente a nascente filosofia espírita.

Ao mesmo tempo, entretanto, a filosofia kardecista advertia que a liberdade, tão apregoada, por exemplo, pelo anarquismo (4), que, à época, pregava contra todas as formas de poder institucionalizado, não podia prescindir da ordem e da autoridade da lei. Somente a lei, que sempre deveria estar inspirada e sustentada racionalmente pelo direito natural, regularia as relações do indivíduo com o Estado e com seu semelhante. A liberdade individual, assim, e como sugere a citação que abre este capítulo, vai esbarrar, sempre, nestes dois limites intransponíveis: o da ordem pública e o dos direitos do outro. A liberdade absoluta, como consignado ali, só seria teoricamente possível ao indivíduo que não tivesse ninguém em seu entorno.

Tal como o positivismo (5), doutrina tão em voga em sua época e em seu país, Kardec sustentava que a ordem era essencial ao progresso da humanidade, e que essa ordem devia emanar de autoridades legitimamente constituídas. Mas, diferentemente do positivismo, a filosofia sistematizada por Kardec, a partir de seus diálogos com os Espíritos, rejeitou toda a forma de autoritarismo, sustentando que, debelando o orgulho e o egoísmo, o homem haveria de depurar seus mecanismos políticos, a tal ponto de que chegaria o tempo em que as nações seriam governadas por homens de elevada intelectualidade e de apurada moralidade, formadores de espécies de aristocracias intelecto-morais (6).

É em razão mesmo dessas posições que a questão da liberdade para a filosofia espírita está diretamente vinculada a dois aspectos que vão ampliando a sua conquista: o conhecimento e a moral. Ou seja: na medida em que melhor conhece as leis naturais que regem o universo, o homem vai, por consequência, domando as inclinações que o prendiam à barbárie, à animalidade e à brutalidade e, por isso mesmo, aprendendo a gerir seu destino, com menor dependência às coações e sanções exteriores. A máxima de Jesus de Nazaré, “conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres” tem inteira pertinência dentro dos parâmetros kardecistas que versam sobre a questão da liberdade.

Esse mesmo raciocínio conduz à própria interpretação espírita sobre a chamada interferência dos Espíritos no mundo material, base teórica e prática de toda a construção da doutrina espírita. Quando Allan Kardec formulou aos seus interlocutores espirituais a indagação de se os espíritos influem sobre nossos pensamentos e as nossas ações, obteve deles esta resposta: “A esse respeito sua influência é maior do que credes porque, frequentemente, são eles que vos dirigem” (7).

A resposta que, à primeira vista, pode dar a entender que os homens encarnados sejamos teleguiados pelos Espíritos, precisa ser conjugada com o tratamento dado pela filosofia espírita a estes dois elementos: o livre-arbítrio e o determinismo. Na verdade, somos, todos, seres em permanente processo de evolução. A vida, na sua essencialidade, é espiritual. A encarnação é fenômeno episódico na vida do Espírito, necessária a seu processo de crescimento.

Na medida em que melhor apreendemos esse sentido grandioso da vida, interferimos diretamente em nossas programações reencarnatórias, buscando que elas aconteçam em circunstâncias que facilitem a obtenção de resultados que já somos capazes de planejar. Essa capacidade de compreender alarga nosso livre-arbítrio e se faz presente em nossa mente encarnada por meio da firme vontade de atingirmos conquistas previamente traçadas. Poderíamos dizer que, na medida em que queremos o que, efetivamente, nos é útil, nossa liberdade se torna absoluta. Entretanto, quando nosso parco conhecimento se torna incompatível com nossas verdadeiras necessidades, abrimos brechas maiores a intervenções corretivas ou pedagógicas que, poderíamos dizer, são a expressão do determinismo das leis naturais para cuja consecução interferem, a seu modo, espíritos desejosos de nosso progresso.

Nas seguintes pergunta e resposta, extraída de um rico diálogo sobre o tema entre Kardec e seus interlocutores espirituais, temos uma excelente mostra de como se dão e como não se dão as interferências espirituais em nossa vida, e de como nossa vontade pessoal é soberana, inclusive para a prática do mal: – As predisposições instintivas que o homem traz ao nascer não são um obstáculo ao exercício do livre-arbítrio? Resposta: – As predisposições instintivas são as do Espírito antes de sua encarnação. Conforme for ele mais ou menos avançado, elas podem solicitá-lo para atos repreensíveis, e ele será secundado nisso pelos Espíritos que simpatizam com essas disposições, mas não há arrebatamento irresistível, quando se tem a vontade de resistir. Lembrai-vos de que querer é poder” (8).

Livres para pensar, livres para crer
Soberana que é a vontade humana e livre que é o homem, há uma consonância perfeita entre o Espiritismo e a visão moderna de liberdade humana que levou à declaração de princípios presentes nas constituições democráticas do mundo reconhecendo a plena liberdade do homem de agir nos limites da lei, como resultantes da liberdade de pensamento e da liberdade de consciência.

Ocupa-se “O livro dos Espíritos” com interessantes observações a respeito dessas duas expressões da liberdade humana: a de pensamento e a de consciência, que conduzem, ambas, às liberdades políticas e de crença.

Não custa recordar o momento histórico em que o Espiritismo surgiu. Mesmo que o mundo e, especialmente, a França, seu berço, estivessem impregnados do pensamento liberal e democrático pós-Revolução Francesa, aquele país vivia momentos de dura opressão, governado que era por um ditador, Napoleão III.

Por outro lado, são precisamente dessa época as mais duras reações da Igreja às ideias de separação entre Estado e Igreja. Vivia-se o estertor da ideia que vingou por séculos de que os países cristãos deviam repartir com os chefes eclesiásticos a responsabilidade pela condução dos povos. Não se reconhecendo essa capacidade ao Estado laico, exigia-se que se preservasse a “religião de Estado”, como garantia da moralidade dos costumes. Tanto os países católicos da Europa meridional, como os protestantes da parte mais setentrional do Continente deveriam, segundo as reivindicações das igrejas, preservar a fé oficial. Até hoje há resquícios disso, como é o caso da Igreja Anglicana, chefiada pela Monarquia inglesa. Até poucos anos atrás, e por toda sua história, a Argentina, aqui na América, mantinha em sua Constituição dispositivo que reservava o cargo de Presidente da República exclusivamente para profitentes da fé católica. Subsistem resquícios disso mesmo em países que adotaram o pluralismo religioso há mais tempo, como Estados Unidos e Brasil, onde, no entanto, decretam-se feriados civis tendo-se por critérios os dias santificados pela Igreja ou se mantém símbolos religiosos, por lei, em repartições ou solenidades públicas.

Imagine-se, pois, o quanto essas influências ainda perduravam na França em 1857, ano do surgimento do Espiritismo. A ideia da religião única, do partido único, da única ideologia, aliás, foram entraves permanentes aos ideais de liberdade do Ocidente dos séculos XIX e XX. Foram muitas, na Europa e na América, as cruéis ditaduras políticas que asfixiaram a liberdade de pensamento e sua expressão por essa quadra da História ou vetaram totalmente o cultivo e a expressão da crença, ou, ainda, impuseram apenas uma fé, estabelecendo conluios com o poder religioso. Essa combinação, arbítrio político e arbítrio religioso respondeu por longos períodos de opressão dos quais países da Europa, como Portugal e Espanha, e da América Latina, como Argentina e Brasil, buscam, hoje, se recuperar. Diga-se, a propósito disso, que, nos dois países da Península Ibérica, o movimento espírita, que era vibrante e forte, foi inteiramente proscrito e duramente perseguido, durante as ditaduras franquista e salazarista. Por que teria sido, senão pelo claro e explícito compromisso de sua filosofia com as liberdades política e de crença?

Com efeito, o Espiritismo rejeita todos os regimes ditatoriais, especialmente por violarem a liberdade de pensamento e de consciência do cidadão. Sejam essas ditaduras de direita ou de esquerda. Aqueles regimes autoritários que fazem alianças com alguma crença, erigindo-a à condição de única ou de oficial do Estado, sempre terminam por dar curso à hipocrisia, sob cujo manto cria-se uma falsa moral totalmente divorciada da espiritualidade livre, natural e honesta. Aqueles outros que, simplesmente, tornam proscritas todas as crenças agem contra uma natural disposição da alma humana, sempre agente ou testemunha de percepções que não cabem nos acanhados limites da matéria. Onde esse tipo de ditadura, fundada no materialismo, é implantado, terminam, sempre, por emergir, em grande intensidade, fenômenos psíquicos desafiadores de qualquer interpretação materialista. Foi o que aconteceu na extinta União Soviética que, em pleno regime marxista, acabou sendo sede de fascinantes episódios ditos metapsíquicos ou parapsicológicos, muitos dos quais absolutamente inexplicáveis, a menos que seu exame seja feito a partir de alguns conceitos que estão além da matéria, radicando-se no rico campo da fenomenologia espiritual.

Arbítrio e violência são, igualmente, os maiores inimigos do direito. O Espiritismo, por vocação nata, é uma vigorosa expressão do direito natural, como tantas vezes tenho buscado demonstrar nessas reflexões. Daí a ênfase que Allan Kardec, na formulação das questões propostas aos Espíritos, deu a essas questões, desafiando, inclusive, o próprio arbítrio que, na época, reinava politicamente em seu país.

Reproduzo, a seguir os diálogos mais expressivos entre Kardec e os espíritos sobre os temas liberdade de pensar e liberdade de consciência, presentes em sua obra fundamental:
– Há no homem alguma coisa que escapa a todo constrangimento e pela qual ele desfruta de uma liberdade absoluta? Resposta: – É no pensamento que o homem goza de uma liberdade sem limites, porque não conhece entraves. Pode-se deter-lhe o voo, mas não aniquilá-lo.

– A liberdade de consciência é uma consequência da liberdade de pensamento? Resposta: – A consciência é um pensamento íntimo que pertence ao homem, como todos os outros pensamentos.

– O homem tem direito de entravar a liberdade de consciência? Resposta: – Não mais que à liberdade de pensar, porque só a Deus pertence o direito de julgar a consciência. Se o homem regula, por suas leis, as relações de homem para homem, Deus, por suas leis da Natureza regula as relações do homem com Deus.

– Qual é o resultado dos entraves postos à liberdade de consciência? Resposta: – Constranger os homens a agirem de modo contrário ao que pensam é torná-los hipócritas. A liberdade de consciência é um dos caracteres da verdadeira civilização e do progresso (9).

Com esses posicionamentos, o Espiritismo manteve-se distante das ideias ainda vigentes no século de seu aparecimento, que ainda concediam à religião uma certa autoridade condutora do pensamento, em nome da verdade transcendente. Ao mesmo tempo, por outro lado, as ideias espíritas combateram algumas tendências filosóficas que se inclinavam ao pensamento único, sugeridas por doutrinas então nascentes, como o comunismo e o positivismo. Kardec e os Espíritos, ao contrário, não vislumbravam outro caminho à civilização e ao progresso que não o da inteira liberdade de pensamento, estimulando-se o pluralismo político e religioso.

Convicções ideológicas, políticas, filosóficas ou religiosas são, essencialmente, elaborações pessoais, ditadas pelas experiências de cada um, muitas das quais elaboradas no mais íntimo de sua consciência. Tampouco os valores morais são propriedades exclusivas das religiões. Há pessoas que desenvolvem uma ética pessoal e social qualificadíssimas, sem, no entanto, estarem vinculadas a qualquer crença formal. Por isso, o Espiritismo, mesmo sendo uma filosofia deísta e que vê na existência de Deus, como inteligência suprema, a causa primeira de todas as coisas, defende o pleno direito de consciência e de expressão, por exemplo, dos ateus. É oportuno, inclusive, lembrar o número expressivo de pessoas não crentes em Deus que desenvolvem uma ética elevada e foram ou são capazes de prestar grandes serviços à Humanidade. Diferentemente da tradição religiosa do Ocidente, o Espiritismo não vislumbra na fé uma condição essencial para a felicidade futura do espírito. Simplesmente porque não é uma doutrina salvacionista. Defende, isto sim, que a prática do bem, em qualquer circunstância, promove a criatura, elevando-a a níveis de consciência confortantes e gratificantes, em qualquer dimensão da vida, na caminhada do Espírito rumo à plenitude.

A melhor condição para a busca da verdade, que liberta, é a da garantia da plena liberdade de pensar e de expressar, livremente, esse pensamento no meio social em que vivamos. Essa ideia é básica para a filosofia espírita.

Notas:
1 – No Brasil, por exemplo, a escravatura só seria abolida legalmente mais de 40 anos depois da codificação espírita, ou seja, em 13 de maio de 1888.
2 – Nota de Allan Kardec, à questão 829 de O Livro dos Espíritos, no capítulo “Lei de Liberdade”, subtítulo “Escravidão”.
3 – Segundo Ives Gandra da Silva Martins, em artigo publicado no Jornal do Brasil, edição de 15.7.04.
4 – Movimento de ideias de forte expressão na Europa do Séc. XIX que pregava a extinção do Estado, substituindo-se o mesmo por sociedades sem classes e sem qualquer forma de violência.
5 – Doutrina fundada por Augusto Comte (1798/1857) que teve larga influência na Europa do Séc. XIX. Pregava uma ética que tivesse como “o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”.
6 – A ideia é defendida em artigo escrito por Allan Kardec, publicado em suas “Obras Póstumas”, com o título de “As Aristocracias”. Ali, à semelhança de Platão que propunha fossem os homens governados por “filósofos”, Kardec prevê o advento de um tempo em que inteligência e moralidade serão as qualidades essenciais dos governantes.
7 – Questão 459 de “O livro dos Espíritos”, capítulo que trata da “intervenção dos espíritos no mundo corporal”.
8 – Questão 845 de “O livro dos Espíritos”, no capítulo que trata de “Lei de Liberdade”, subtítulo “livre arbítrio”.
9 – Questões 833 a 837 de “O livro dos Espíritos”, capítulo “Lei de Liberdade”, subtítulos “Liberdade de Pensar” e “Liberdade de Consciência”.

Nota do ECK: O presente artigo integra a obra “Direito e Justiça: um olhar espírita”, do autor, publicado pela Editora Imprensa Livre, em 2004. O texto original é parcialmente publicado nesta edição.

Imagem Joshua Woroniecki por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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