Ecos gaúcho-brasileiros do Sermão da Montanha, por Maria Cristina Rivé

Tempo de leitura: 4 minutos

Maria Cristina Rivé

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Quando teremos, de fato, todos,  fome e sede de justiça – para os outros, os que coabitam esse orbe? Quando a justiça deixará de ser cega às necessidades dos mais pobres, dos doentes, dos negros, dos LGBTs marginalizados?

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Aquele que é feliz: eis o provável significado da palavra bem-aventurado? Então, quem é feliz, em um mundo de provas e de expiações? Tantas palavras, poucos entendimentos e quase nenhuma certeza. “A felicidade não é deste mundo”, já nos foi falado e é repetido. Mas, por quê? A felicidade é uma CONQUISTA do Espírito! Para sermos realmente felizes, então, a desmaterialização deve ser total, não é?

Houve um tempo e, nesse tempo, um Homem (lembrando Ney Matogrosso, um “Homem com H”) que foi o maior dos que eu já ouvi falar… Pois, se as histórias ocorreram exatamente como chegaram até mim (e como chegaram, eu não sei precisar), elas me encantam. Como um “cara” – embora eu não use essa palavra, porque entendo que ela “não casa” com a minha idade – pode ser tão valente, tão perfeito (no sentido das perfeições humanas possíveis), tão solidário… Suas palavras foram (e ainda são!) levadas pelos ventos e não se perdem; ao contrário, avançam, fortalecidas pela suprema verdade que encerram.

Certa feita, teria dito outra grande alma, o Mahatma (apelido que lhe deram e que significa, na língua hindu, exatamente isso “a grande alma”): “se todas as obras se perdessem e somente nos restasse o “O Sermão da Montanha”, não se teria perdido nada”… Ora, ele foi de fato um Mestre! Um pedagogo a levar pela mão as crianças que somos. Bem-aventurados os que te ouviram, bem-aventurados os que te tem como Modelo, bem-aventurados os que te entenderam e, portanto, procuram viver o que tu ensinaste.

E a montanha? Significativo esse lugar, não é mesmo? Ele faz nos lembrar Kardec… Ele se nos afigura o local que devemos encontrar, ao nos despojarmos das paixões, quando a força do Espírito fizer mais sentido do que a força da carne. O “Sermão da Montanha” fala, pois, ao Espírito e é para ele que devemos nos voltar. Na busca incessante pelas virtudes, pelo desenvolvimento de nossa racionalidade, para podermos domar as paixões – o cavalo sem freios, quando a amazona ou o cavaleiro não o domam.

Yeshua, que teria nos legado o “Sermão da Montanha”, falou de pobres. Não são os muitos pobres, num mundo como o nosso onde o orgulho ainda impera, porque estes, os que não dispõem do mínimo necessário e estão abaixo da linha de pobreza, não faltam. Mas não são estes pobres. São os “de Espírito”. O sentido, distante da inanição e da hipossuficiência econômica, aponta para um significado virtuoso: os serenos, os tranquilos, aqueles que já compreendem a amplitude do Universo…

Portanto, devemos dizer que há muito a caminhar, muito a aprender e porque não dizer que muito a ensinar, pois os valores necessários são os do Espírito e estes só aprendemos em conjunto. Para o aprendizado, é preciso ser humilde, estar aberto ao novo e para poder colocar, na base da montanha espiritual, o húmus que se solidificará, ofertando ao ser a mansuetude do seu caminhar.

Também teria dito o “Filho do Homem”: os Mansos herdarão a Terra. Hummm? E agora? Quem são os mansos. Podemos inferir que a mansidão é a tranquilidade de se conhecer a “montaria”, de sabermos  que o “cavalo” não mais “corcoveia”. Tão lindo!

No entanto, eu olho para os lados, observo, penso e desconfio. Quando será esse tempo em que os mansos herdarão a Terra? Bahhh! Queee lonjura, penso… Mas as Sociedades Espíritas continuam repletas de bocas que rezam e repetem, com suas falas mansas, os “que assim seja” (porque “Amém” é coisa de católico e “Saravá”, deusulivre!).

Observando mais detidamente, não consigo ver aquele “húmus” necessário para a base da Montanha. Não percebo nenhuma abertura para se fazer calar o orgulho e o egoísmo, presente nas explicações muitas vezes disfarçadas de “Leis da Física” (porque são essas as que organizam, materialmente, o Planeta): é a bala perdida – na verdade a bala que está à procura da carne pobre e preta… É a Escola sem recursos para uma educação de qualidade. É a fila interminável nas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento em Saúde). É o transporte público que mais parece um carregamento de entulho. É a comida escassa, é a guerra vasta. É a morte precoce e a vida sem vida!

Ahhhh… Onde estás, mansuetude, que não te vejo? Ao olhar pela janela, a chuva segue caindo incessantemente. Então, a natureza também mata, mas de forma diferente. Não por sua escolha, mas pela minha! Eu que ainda não me domei e meu cavalo está a galope…

A chuva cai e atinge a todas e a todos. Sem dúvida! Mas de forma diferente… Ela é cruel, sempre, com os mais vulneráveis. Não comigo – repetem (mesmo em pensamento) muitos… E eu, com minhas escolhas egoístas, continuo fazendo (ou nada fazendo!) com que os que comigo partilham a vida sejam menos susceptíveis às intempéries.

E a catástrofe que atinge os pampas nos mostra a face cruel dos muitos egoísmos…

É a fome de uma vida morta! Todavia, é, sim, minha (ou sua) responsabilidade, quando se diz não gostar de política. Ou que se é contra as políticas públicas de distribuição de renda, de acessibilidade a melhores condições, repetindo (para si mesmo?) que o esforço seria suficiente para se “vencer” na vida. E, que somente não trabalha quem não quer, que as Escolas Públicas estão abertas e o transporte coletivo público está aí, disponível…

Quando teremos, de fato, todos, fome e sede de justiça – para os outros, os que coabitam esse orbe? Quando a justiça deixará de ser cega às necessidades dos mais pobres, dos doentes, dos negros, dos LGBTs marginalizados? Sim. A justiça se afigura cega em relação aos clamores dos que sofrem, inclusive os que, para alimentar um filho que chora de fome, furtam um alimento e são presos… Depois, são escrachados por juízes e promotores impolutos em suas roupas importadas…

Meu Deus! Nos ajude a ter fome e a ter sede – de justiça!, tal qual consta das bem-aventuranças – para que os que sofrem e choram sejam consolados. E que esse consolo seja real! Que seja baseado na Lei de Sociedade – pois não deveria ser mais possível a exploração do ser pelo ser. Entretanto, não estamos encarnados para usar a nossa voz e as nossas mãos para separar, mas para nos levantarmos na direção da inclusão de todas e todas. Porque, lembrando que do coração do Mestre saiu esse Código Divino – O Sermão da Montanha – também saiu o aforismo: “das ovelhas que o Pai me confiou, nenhuma se perderá”.

Os ecos do Sermão da Montanha estão em nós: o antônimo do amor é a indiferença; contudo, a mansuetude é o amor e quando o ser aprender a amar, será nesse dia que os mansos de fato herdarão a Terra.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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