A palavra é plural!, por Marcelo Henrique

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Sobre a Pluralidade das Existências e a dos Mundos Habitados

Naquela tarde, junto ao Lago de Genesaré, João e Tiago permaneciam ainda sobre as pedras, olhando ao largo, com o pensamento longe… Já não havia mais ninguém da numerosa multidão que, além de ser saciada com pães e peixes, também havia bebido da fonte caudalosa da mensagem de Yeshua (Jesus). João, o mais jovem, e Thiago, seu irmão, haviam se tornado mais íntimos do Mestre, tanto pela fé que demonstravam, quanto por desejarem, um dia, fazer parte ativa no ministério de Jesus, tanto quanto Pedro, Judas e Mateus.

Na conversação vespertina, mais do que o costume, o Mestre havia sido incisivo. Falava com tanta profundidade no “Reino”, a Casa do Pai, que aquelas palavras ecoavam em seus cérebros com a mesma força e desenvoltura como haviam saído da boca do Raboni, minutos antes:
“Não se turbe o vosso coração. Crede em Deus, crede também em mim. Há, pois, muitas moradas na casa do Pai e, se assim não fosse, eu já vo-lo teria dito. Porquanto eu me vou para preparar o lugar para vós e depois que eu tiver ido, e preparado o lugar, voltarei e vos retirareis para mim, a fim de que, lá onde estou, vós estejais também.”

Thiago, o Menor, resolvera, então quebrar o silêncio, e indagar o companheiro de andanças:
“Que moradas seriam essas, a que o rabi mencionara, João? Creio estar confuso. Que há a noção de que o Mestre nos vá preparar o lugar no Reino, como ele vem dizendo, não há a menor dúvida. E quanto à sua volta, todos nós assim esperamos… Mas, se todos nós temos uma só morada, a nossa casa, a casa de nossos pais e família, como entender que possam existir as tais muitas moradas?”

João nada respondeu. Apenas fez um sinal com a cabeça, como que aquiescendo à dúvida do leal companheiro. Silenciaram. E como a tarde caísse, e fosse preciso preparar-se para o repouso, pois a caminhada recomeçaria na nova manhã, bem cedo, puseram-se de pé em direção à casa de Barjonas, o amigo hospedeiro da noite.

Séculos se passaram, e a inquietude da mensagem de Jesus permanece a ecoar nos cérebros e nos corações dos homens de boa vontade. Qual o sentido das “muitas moradas”. Onde é a “Casa do Pai”? Por que e como Jesus haveria de “nos preparar o lugar” e retornar, para nos retirar para ele, na direção do lugar preparado?

Dezenove séculos, praticamente se passaram… Na toada das revelações espirituais à Humanidade, com a aragem do solo procedida por Moisés (Os Dez Mandamentos) e a semeadura de Jesus (Não vim destruir a Lei, nem os Profetas, mas dar-lhe cumprimento), chegou a hora da poda, da colheita e do consequente proveito. A revelação espírita, não como fruto do trabalho de um único medianeiro missionário – como costumam buscar e se encantar, muitos – mas, do contrário, envolvendo um destacado número de médiuns sem estrelato, encontrou em Kardec a base lógica e o devotamento necessário para a reunião das sábias informações que eclodiam em diversos pontos do orbe, ao mesmo tempo e sequencialmente.

Kardec foi, assim, quem realizou o prodigioso trabalho de sistematização e encadeamento das informações espirituais superiores, para legar à Humanidade o rastro da interpretação segura das passagens evangélicas. Ao falar das “Muitas Moradas”, em “O evangelho segundo o Espiritismo”, Kardec não se limitou a transcrever o que os Espíritos ditaram aos variados médiuns de toda a parte. Fez mais. Interpretou-os, numa belíssima introdução (itens 2 a 7, do Capítulo III, da obra em tela), para, antes de apresentar a ciência espiritual, empreender a correlação da linguagem parabólica de Jesus com a realidade da Vida.

Moradas são, assim, os numerosos planos existenciais, os planetas, todos habitados e com função específica: a de albergar as criaturas em peregrinação evolutiva, representando, amiúde, o somatório dos nivelamentos individuais para a noção de conjunto, em termos de gradação do plano.

A Casa do Pai, uma feliz simbologia de Jesus, representa o Universo infinito, a verdadeira casa de todos nós, sob a supervisão do Criador, o Pai – porque não há quem não deseje, uma vez distante, voltar ao seio familiar, à casa paterna, tal qual, o próprio Rabi, em outra inesquecível mensagem, nos fala do retorno ao lar do rebento perdulário, o filho pródigo, para quem o pai oferece um banquete, comemorando a “ressurreição” de quem havia sido dado como morto.

Longe de serem enquadrados como apenas os lugares “físicos” de nossas andanças, as moradas também abrangem os estados de consciência do Espírito – enquanto encarnado ou desprovido da matéria – representando, em larga escala, os estados felizes ou infelizes de cada um de nós na Erraticidade, ou no Mundo Espiritual. Para lá vamos, em nossas meditações e projeções de consciência; nele nos encontramos, todos os dias, mesmo que não nos recordemos como e quando, nas horas do repouso do corpo físico, a que convencionamos definir como sonho; para lá retornamos, finda a experiência reencarnatória, como a esperar o balanço de nossos atos e o cumprimento de nossos propósitos, tal qual um viajor confere seus pertences ao chegar “em casa”, preparando-se, doravante, para uma nova viagem, numa nova vida na matéria.

Ao recordarmos da dicção nazarena de que ele, carinhosamente, “nos haveria de preparar o lugar, e retornaria para nos buscar”, Jesus deixa claro sua condição de coordenador das etapas transitivas entre os mundos, apregoando-nos que sua cátedra revolucionária e transformadora, seria o requisito primordial para o ingresso nos cenários melhores, mais adiantados, por ele organizados para nós. Como não recordar do “perdão incondicional”, do “fazer o bem aos que vos perseguem e caluniam”, do “óbulo da viúva”, da “fé que remove montanhas”, do “nascer de novo”, do “levedo que fermenta a massa”, do “sal da terra”, do “quem são meus irmãos e minha mãe”, do “perdão à pecadora de Magdala”. Todas histórias simples (na execução), mas ruidosas e avassaladoras, na transição dos costumes, na organização sócio-jurídica de seu tempo e dos que lhe seguiram, e no auto-descobrimento de cada um.

Falar dos mundos habitados é falar da absoluta Justiça de Deus. Como admitir, na revisão do pensamento do Cristo, de que seria absolutamente imprescindível “nascer da água e do espírito”, sem admitir que, na constelação dos astros, outros planetas também nos serviriam de cenário e nos dariam guarida? Um Universo imenso, infinito, apenas de caráter decorativo? Nossa razão, por certo, repeliu tanto a idéia da Terra como centro do Universo, quanto a prioridade de um planeta pequeno e conturbado como sendo a morada escolhida para florescer os exemplares vivos da Criação Divina.

Também nos fora demonstrado, pelo estudo da História, olhando para trás e buscando os preciosos registros arqueológicos, e, num exercício criativo, reproduzir em museus, desenhos, maquetes e películas cinematográficas a remontar os cenários das priscas eras, mostrando o quão brutal e animalesco tinha sido o homem, num passado não tão distante – é verdade – situação superada pela busca de si mesmo, pela concepção do aparato social, no convívio com o semelhante, e secundada pela conquista das vitórias contra as dificuldades materiais, espelhadas em invenções e descobertas de variado jaez.

O que a Ciência Espírita fez, em verdade, foi apresentar as provas da imortalidade da alma, e, com fulcro em diversificadas manifestações físicas, demonstrar a diversidade espiritual, que a Filosofia Espírita concebeu na forma de uma Escala Espírita, composta por espíritos de numerosas classes (em quantidade diversificada e em número de dez), dispostos em três ordens, conforme nos afiança “O livro dos espíritos” (OLE), quesitos 100 a 113. Ao manifestarem-se para nós e entre nós, como indivíduos grotescos, zombeteiros, levianos ou pseudo-sábios, que não eram capazes de convencer homens sérios, de mediana clarividência, e, em paralelo, na forma de seres benévolos, sábios, e superiores, com valores e informes acima dos nossos, comprovaram a necessidade de existência de planos inferiores e superiores aos nossos.

É obra, igualmente, da filosofia, já que não há, ainda, provas consistentes da ciência espírita para noticiar-nos a consistência de formação dos planos mais adiantados, a disposição dos mundos em cinco escalas de gradação, assim dispostos: 5) Mundos Primitivos – destinados às primeiras encarnações da alma humana; 4) Mundos de Prova e Expiação – onde o mal domina; 3) Mundos Regeneradores – onde as almas que ainda têm o que expiar obtêm novas forças; 2) Mundos Felizes ou Ditosos – onde o bem supera o mal; e, 1) Mundos Celestes ou Divinos – a morada dos espíritos puros, onde o bem reina inteiramente.

A lição superior nos destaca ser a classificação muito mais relativa do que absoluta, de vez que as ocasiões de transição (como a que experimentamos) façam a observação atenta detectar que seres de diferentes graus permaneçam coexistindo num mesmo plano, como se observa, em nossa atualidade planetária, a circunstância de que hajam homens inteligentes, letrados e construtores de notáveis projetos, ao lado de homens bastantes primitivos, situados em algumas tribos selvagens no interior de alguns continentes, praticamente fora da civilização. Em paralelo, tem-se criminosos hediondos e bárbaros, criaturas violentas e que se comprazem nos vícios mais graves, ao lado de pessoas abnegadas, executoras de práticas assistenciais, cientistas dedicados ao combate das moléstias humanas, defensores do meio-ambiente, enfim, homens de boa vontade.

Aprimoram-se as formas, embelezam-se, aperfeiçoam-se e purificam-se corpos e espíritos, bem como os cenários, onde a harmonia das cores, dos sons e das intenções e práticas, revela a presença de Deus por toda a parte.

A pluralidade dos mundos é, assim, a informação espírita atual e oportuna, para que olhemos o mundo com outros olhos. Primeiro, para antever que o Universo possui tantos planos quanto necessários para o progresso dos Espíritos e todos, invariavelmente, acham-se ocupados, apesar de nossa vista física não consiga, por enquanto, a prova material desta evidência. Segundo, para perceber que há uma vinculação (embora provisória) entre habitantes e mundo, de modo que seja necessário todo o cuidado para a conservação da vida física, como os esforços de preservação do meio ambiente. Mas, se mesmo assim, cessarem as mínimas condições de habitabilidade neste mundo Terra, tenhamos a certeza de que seremos transmudados para outro plano que nos ofereça tal desiderato, de vez que, embora responsáveis direta ou indiretamente, pela degradação e destruição desta Morada, haverão outras para nos propiciar o necessário adiantamento.

Referida pluralidade só é viável e possível, na orquestra do Universo, por força de outra lei espiritual a ela atrelada: a palingênese, a reencarnação ou a pluralidade das existências. É correto afirmar que, na ancestralidade dos povos do passado figuram os primeiros sinais da ideia do “nascer de novo”, surgida das indagações presentes no seio de alguns povos que habitaram este Planeta.

Mas é no célebre colóquio de Yeshua com Nicodemo, com o primeiro fazendo este último recordar que seria imprescindível “nascer de novo” para conhecer mais a fundo as sábias Leis Universais. Da água e do espírito, renovando-se contínua e sucessivamente. E o chamamento do Mestre veio por meio do questionamento que se aloja no mais íntimo daquele ancião (e em todos nós, atualmente): – És Mestre em Israel e não conheces estas cousas?

Thiago e João, no dia seguinte, se recordaram dos comentários daquela conversa do Rabi com o Profeta famoso. O renascer da água e do Espírito, objetos da curiosa conversação, também lhe pareceram incompreensíveis. O que seria a água, que permitiria nova vida? E como se daria o retorno de um homem formado ao ventre de sua genitora?

Olhando para o que somos, hoje, percebendo as diferenças que existem entre os que convivem em distintos ambientes, percebemos as distâncias que existem em relação a aprendizados, conhecimentos, conteúdos, interpretações, visões de mundo, modos de relacionamento, um conjunto de fatores que não pode ser fruto, apenas e tão-somente, da atual existência, das culturas e ensinos e das orientações recebidas no seio familiar. Somam-se, cada uma das vivências pregressas, ao arcabouço que é o homem de hoje, Espírito encarnado, com suas virtudes e defeitos, erros e acertos, despertamentos e atavismos.
Impossível, igualmente, angariar toda a ciência e todo o sentimento em uma única peregrinação, por mais longa seja, no contorno da materialidade. Eis a razão pela qual, remontando a conhecimentos que se repetem, de tempos em tempos, entre civilizações e sociedades, a Falange Espiritual Superior, respondeu às sucessivas indagações de Kardec (perguntas 166 a 171, de OLE) que o progresso só se materializaria, nas individualidades, com as provas de novas existências, para a devida depuração. Daí, testificarem, sobre a finalidade da reencarnação: “Expiação, melhoramento progressivo da Humanidade. Sem isso, onde estaria a Justiça?”.

E, complementarmente, amarra o conteúdo das vidas sucessivas aos sucessivos globos dispostos universalmente, cada qual disponível para recepcionar Espíritos com moralidade e intelectualidade compatível ao cenário onde passam a experimentar novas vivências. Leia-se e repise-se, para tal relação intrínseca, o contido nos itens 172 a 199-a, da obra primeira (OLE), em que vivemos e revivemos tantas vezes quanto necessárias em dada “morada”, e depois seguimos nosso percurso, seja ascendendo a outros, superiores ao primeiro, em função de nossa “aprovação” nos testes a que nos submetemos, ou a mundos inferiores, seja em função de missões de orientação aos que se encontram atrasados, seja por não termos acompanhado a senda evolutiva da coletividade que nos era conterrânea. Sem benesses nem fraudes. Sem libertações nem condenações. Sem graças nem punições. Sem favores nem desprestígios.

Voltando aos jovens discípulos, tão interessados nas Coisas Divinas, eles também se submeteram à reencarnação e às transmigrações sucessivas. E, por isso, por terem recebido, antes, o pão da vida, na forma dos ensinamentos daquele sublime carpinteiro, já ficaram, também antes, cientes disso. Ao encarnarem outras vezes, aqui na Terra, em complemento ao trabalho que iniciaram junto à messe de Jesus, foram tomando, pouco a pouco, ciência das verdades espirituais. Adiantaram-se, preocupando-se em levar adiante a “revelação”. Eles e outros, se por aqui ainda estagiam, devem estar incumbidos, como nós, de espargir a luz do Espiritismo para todos quantos nos seja possível comunicar.

Thiago e João, como agora, nós outros, certa feita, após tantos aprendizados nas vidas sucessivas, devem ter dito: – É, o Mestre estava certo. Somos habitantes do Universo!

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