Milton Medran Moreira
Já pensou que maravilha viver em um mundo onde todos fossem verdadeiros?
Todos os anos, quando chega o tempo de acerto com o leão é também o de buscar documentos. Nesta época, vou atrás da informação de rendimentos de minha esposa, professora aposentada. Por muito tempo, bastava dar o número da matrícula dela e o documento me era entregue, na hora. Ano passado, pediram-me uma autorização assinada por ela, o que me obrigou a voltar à repartição. Previdente, desta vez já levei comigo a tal autorização, para não ter de retornar. Mas as regras tinham mudado de novo, pelo que me foi dizendo a funcionária: Agora, é preciso uma procuração com firma reconhecida.
Ainda bem que não necessitei voltar. Mandaram-me falar com uma servidora mais graduada. A moça tomou da autorização e da carteira da identidade de minha mulher e, gentilmente, abriu-me uma exceção, alcançando-me o documento. Acreditou em mim. Talvez fundada naquele axioma exposto em famosa frase de Lincoln de que depois dos 40 anos, cada homem é responsável pela cara que tem. Como há algum tempo fiz 40, já consigo, imagino, transmitir alguma credibilidade.
Nada contra essas regrinhas que vão tornando a vida da gente cada vez mais difícil. De tanto a boa-fé de uns ser embaída por outros, todos começam a se precaver contra todos. E como nem todo mundo passa dos 40 com cara de honesto, as leis e os regulamentos têm de ser cada vez mais acauteladores. Mas que é uma pena, lá isso é. Você já pensou que maravilha viver em um mundo onde todos fossem verdadeiros? Tom Jobim transpôs para a música e a poesia esse sonho: “Existiria a verdade, verdade que ninguém vê, se todos fossem, no mundo, iguais a você”.
Mesmo contra a ideia dos saudosistas que evocam os tempos em que se dava valor à palavra e ao fio de bigode, acho que somos, no geral, melhores hoje que ontem. Nossa ânsia pelo justo se expressa coletivamente, através de leis que perseguem a isonomia, a equidade, a igualdade de direitos, enfim. Valores como a democracia moderna, os direitos fundamentais e todo o arcabouço legal que lhes serve de garantia, inspirados e construídos coletivamente por uma sociedade, são expressões de progresso ético e moral que nos qualificam enquanto partícipes de um gênero, o humano.
Não é pouco o que, até agora, conquistamos. Mas as pequenas e grandes corrupções estão aí, fazendo cada vez mais difícil nossa vida. É que, apesar de tudo, ainda não enfrentamos o desafio maior. Este se constituirá no ápice da evolução humana. Trata-se, entretanto, de tarefa a ser cumprida no mais íntimo e sagrado reduto de nossa condição humana: a consciência individual. Quando ela, e não mais a lei, se tornar guia e árbitro do que pensamos, planejamos e agimos, então nosso processo de humanização estará completo.
Verbo e verdade serão, então, sinônimos. Muito além das aparências.