Ódios Aplacados? Temores Abrandados?, por Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto

Tempo de leitura: 8 minutos

Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto
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“Amanhã,
Ódios aplacados, temores abrandados
Será pleno!”
(“Amanhã”, Guilherme Arantes).
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Fotos: Ricardo Stuckert

Há décadas, o talentoso Guilherme Arantes, em seu piano de cauda, lançava “Amanhã”, canção que ele mesmo entoou com inegável beleza e emotividade e que, depois, muitos outros valorosos intérpretes da MPB regravaram. Nas várias estrofes, um duplo sentimento: o de tristeza diante do cenário atual e o da esperança em relação ao futuro.

Nos últimos quatro anos, a par de dificuldades sanitárias e de saúde, internacionais, e, igualmente, as variações da economia global, o povo brasileiro presenciou uma pauta que extrapolou as questões de planos e plataformas de governo e de matiz político ideológico para alcançar temas e discussões de foro íntimo, vinculadas à religião e à moral individual.

Considerado a população eleitoral (mais de 156 milhões de cidadãos-eleitores), mais de 124 milhões de brasileiros votaram (79,41%), com uma abstenção de pouco mais de 32 milhões (20,59%). Já era madrugada de segunda (31.10), quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) encerrou a apuração, consolidando 60.345.999 votos para o candidato vencedor, Luís Inácio Lula da Silva (50,90%) e 58.206.354 para o oponente derrotado, Jair Messias Bolsonaro (49,10%). A diferença, de 2.139.645 eleitores corresponde à menor margem de diferença entre os partícipes do segundo turno de uma eleição presidencial, alcançando 1,8%.

Algumas questões preliminares sobre eleição e ética precisam ser consignadas. A primeira deriva da suspeição, pelo presidente-candidato, sobre a lisura, eficácia e veracidade do sistema eleitoral e das urnas eletrônicas. Mais propriamente durante os anos de 2021 e 2022, ambos foram criticados e desprezados, e uma retórica sobre a necessidade de o voto ser impresso e as urnas serem “auditáveis” tomo conta do cenário social, com Fake News e informações distantes da natureza técnica e jurídica do sufrágio brasileiro. Inclusive uma “auditoria privada” (contratada pelo partido do presidente), realizada por empresa sem especialização para tal mister e a imposição da presença de militares (?) para a aferição das urnas, do sistema e da futura votação fizeram parte do cenário.

Depois, todo um discurso contestando a sistemática e a própria existência de institutos de pesquisa (atuantes no Brasil, desde 1942), questionando os números, ainda no primeiro turno e, depois, no segundo, com ameaças de judicialização e criminalização de seus responsáveis. A retórica se viu esvaziada, nos dois turnos, tendo em vista que, na média, a imensa maioria dos órgãos de consulta de opinião popular apontou para o resultado consignado na apuração final.
Na semana da eleição, em segundo turno, uma denúncia sobre não-veiculação da propaganda eleitoral obrigatória em rádios, sem qualquer comprovação e, depois, desqualificada pela medição das informações dos órgãos de mídia radiofônica, acrescida da natureza da responsabilidade partidária em encaminhar o material e fiscalização das inserções, tumultuou propositadamente o cenário político-eleitoral.

De outra sorte, como é comum nas eleições, acusações, produção de material apócrifo e desclassificatório da candidatura contrária, reprodução de Fake News em mídias e redes sociais, é outro ponto lamentável – mas ainda presente – numa democracia em maturação como a nossa. Felizmente, no entanto, hoje, ao contrário de passado recente, há mídias e organismos especializados e gabaritados para a aferição das “mentiras” ditas em horário eleitoral, em debates ou divulgadas nas tais plataformas sociais.

Por fim, no próprio dia da votação, a imposição de barreiras rodoviárias, com inspeções de órgãos ligados ao Governo Federal, nos veículos que conduziam – por autorização do TSE – eleitores, com gratuidade, às seções eleitorais, atrasando os mesmos, com risco de comprometimento do voto – o que, felizmente, não ocorreu – poderia ter representado uma mancha e um prejuízo incalculável para o exercício constitucional e democrático do voto.

A primeira conclusão que podemos tirar – inclusive amparados na Doutrina dos Espíritos – é a de que a Democracia venceu! Os indivíduos, livres (livre-arbítrio, lei de liberdade), cônscios de seus direitos e deveres sociais (lei de sociedade), puderam escolher, pelo ato de votar (lei do trabalho), entre as (duas) opções possíveis, aquela que consideravam a mais apta (lei do progresso), para a construção de um país melhor para todos, sem esquecer as minorias, as camadas socialmente carentes e os partidários de ideologias distintas da vencedora na eleição (lei de justiça, amor e caridade).

Festa da vitória, na Avenida Paulista, São Paulo.

Reconciliação e compromisso

O resultado, pois, é incontestável! E será respeitado, interna e externamente, como fruto da maturidade democrática internacional e em razão da esteira da redemocratização brasileira (pós-1985). Deve, o atual mandatário, em primeiro de janeiro vindouro, entregar a faixa presidencial ao sucessor e, se não o fizer, que autoridade pública que lhe substitua cumpra o protocolo, permitindo a continuidade da governança, tanto em respeito à Chefia de Governo, quanto à Chefia de Estado.
Voltando à poesia de Arantes, contudo, devemos estar cônscios de que o “amanhã” ainda não será um “lindo dia”, porque a dualidade vivenciada (mais clara e fortemente) neste mês de outubro que hoje se encerra, caracterizadora de um antagonismo inconciliável, ainda deverá permanecer nestes derradeiros dois meses de 2022, e nos albores do novo mandato (2023-2026). A animosidade presente em discursos e comportamentos, alguns na “vida real” do cenário de pequenas, médias e grandes cidades brasileiras, deve ainda ocupar espaço, sobretudo em face de fanatismos e idolatrias.

É fato que um considerável contingente de pessoas se identifica com o candidato-derrotado, nutrindo, intimamente, os mesmos posicionamentos e a leitura (transversa) da realidade e dos fatos, reproduzindo discursos e posturas totalmente contrárias à harmonia, respeito e convivência pacífica. O racismo, a homofobia, a misoginia, a xenofobia (nacional e internacional) a depreciação da cultura nacional, o desprezo à saúde pública e à prevenção e imunidade pelas vacinas, o desrespeito ao meio ambiente, a tentativa de imposição de dado matiz ideológico-religioso como superior aos demais e o preconceito de crença dele derivado, encontraram ressonância em milhões de brasileiros, infelizmente.

Pela identificação do cidadão-eleitor com tais pautas, ou pela miserável tentativa de justificar dadas condutas ou discursos, tem-se um quociente civil que precisa ser melhor esclarecido, pela educação e pelo cultivo de valores éticos, incentivado pelos Poderes Públicos, de modo a minimizar até afastar completamente sua proliferação e manifestação, porquanto não sejam, tais, exercícios da liberdade de expressão (constitucionalmente garantida), mas apologia a toda a sorte de iniquidades e preconceitos, retomando conceitos que já deveriam estar sepultados em nossa sociedade contemporânea.

Mas, dentro do quantitativo de eleitores que se viu derrotado, nas urnas, neste 30 de outubro, acreditamos que haja um número significativo de pessoas que tenha agido sem a clarividência necessária para a comparação, não só de planos e propostas do (futuro) governo, mas em termos de realizações, considerados os mandatos de 2003-2006, 2007-2010 e 2019-2022. Indiscutivelmente, em termos de construção e aplicação, os dois projetos políticos são, verdadeira e claramente, antagônicos e inconciliáveis. Em todas as áreas e pastas. São como afirmou o presidente eleito, pós-resultado, “dois projetos opostos de país”.

Se, então, o motivador foi outro – e, neste sentido – o ódio em relação a pessoas e a partidos políticos seja o principal combustível, bem como a repetição de bordões calcados em análises parciais, considerando que há muito o que auditar em relação ao atual mandato, quando ele se encerrar, e com a liberdade de atuação dos órgãos especializados em corrupção, gastos públicos, sigilos (e suas derrubadas) e auditoria governamental, poder-se-á contatar, adiante, que a “imagem” de ética e lisura talvez não corresponda, na prática. Sem vinditas, nem caça às bruxas, evidentemente.

No cenário espírita – que é, representativamente, espelho do campo maior, da sociedade – também tivemos muitas rupturas e antagonismos. Alguns injustificáveis. Não há como separar o cidadão “social” do cidadão “espírita” e nem o indevido discurso de que política não se discute por parte dos espíritas pode ser invocado para qualquer justificação de “conduta espírita). A responsabilidade, no contexto da vida de encarnado, de participação, discussão e envolvimento com as causas sociais e com a gestão pública e social, está presente nos principais textos da Doutrina Espírita, em que ressalta a terceira parte de “O livro dos Espíritos”, principalmente.

É hora, pois, de reconciliação – entre os que estiverem aptos e compromissados para tal – em nome do espírito cristão e espírita, traduzido na fala atribuída a Jesus, “antes de depositar a tua oferenda no Altar, vai e ter reconcilia com o teu desafeto”. Relembremos, também, o conceito espírita de caridade (item 886, de “O livro dos Espíritos”): “Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições alheias, perdão das ofensas”. O núcleo central da caridade espírita, então, alcança o ser benevolente, indulgente e que perdoa.

Esta reconciliação é necessária e figura no discurso de Lula, ontem: “Um Brasil com paz, democracia e oportunidades”, porque “Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”, não sendo interessante para ninguém, “viver numa família onde reina a discórdia”. Assim, “É hora de reunir de novo as famílias, refazer os laços de amizade rompidos pela propagação criminosa do ódio”.

É preciso que os brasileiros estejam unidos para a reconstrução de nosso Brasil. União, inclusive, já demonstrada pelo candidato-vencedor, agora presidente eleito, Luís Inácio Lula da Silva, ao construir uma aliança para o segundo turno, de composição multipartidária, com expoentes – alguns adversários, inclusive, desta e de eleições anteriores – assim como pelas afirmações de seu discurso de vencedor, na noite de ontem, após a proclamação do vencedor do pleito: “É a vitória de um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias, para que a democracia saísse vencedora”.

A Coligação “Brasil da Esperança” que foi eleita sobre a “Pelo Bem do Brasil”, expressa, como disse Lula, ontem, “o direito sagrado de escolher quem vai governar a sua vida” para “participar ativamente das decisões do governo”.

Por fim, resta-nos, agora, um resgate introdutório e necessário: o do legítimo amor à pátria, sem demérito de qualquer outra nação ou povo. Não cremos em falácias de “corações do mundo ou pátrias do evangelho”, porque elas também são, a exemplo dos bordões do presidente que foi derrotado nas urnas, ontem, um exclusivismo desnecessário, uma indevida “superioridade” (moral e geográfica) sobre os demais. Por isso, repetimos Lula: “Trazer de volta a alegria de sermos brasileiros, e o orgulho que sempre tivemos do verde-amarelo e da bandeira de nosso país […] que não pertencem a ninguém, a não ser ao povo brasileiro”.

Então, meu caro Guilherme Arantes, redobrada a nossa força, com a louca alegria que possamos imaginar, sem mistérios e para muito além do ilusório, festejamos a nossa esperança, enxergando a estrada (nova) que surge. Sim, o dia raiou, hoje, 31 de outubro, com toda a sua luminosidade de imperar, mesmo que (ainda) muitos não o quisessem. O amanhã é e será pleno.

E, assim, “O Brasil precisa se reencontrar consigo mesmo […] um Brasil do tamanho dos nossos sonhos – com oportunidades para transformá-los em realidade” (Luís Inácio Lula da Silva). Para, então, podermos viver num país em que os ódios tenham sido aplacados e os temores, abrandados. Para ser pleno!
Notas:

(1) Os dados sobre a eleição brasileira, em segundo turno e sobre o contingente populacional de eleitores pode ser visualizado no site da Justiça Eleitoral brasileira (www.tse.jus.br).

(2) O discurso do presidente eleito pode ser acessado, entre outros veículos de mídia, no site do “Correio Braziliense” (www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/10/5048181-confira-a-integra-do-primeiro-discurso-de-lula-apos-ser-eleito-presidente.html).

Apêndice:

Amanhã (Guilherme Arantes)
Amanhã será um lindo dia
Da mais louca alegria
Que se possa imaginar
Amanhã, redobrada a força
Pra cima que não cessa
Há de vingar
Amanhã, mais nenhum mistério
Acima do ilusório
O astro rei vai brilhar
Amanhã a luminosidade
Alheia a qualquer vontade
Há de imperar, há de imperar
Amanhã está toda a esperança
Por menor que pareça
O que existe é pra festejar
Amanhã, apesar de hoje
Ser a estrada que surge
Pra se trilhar
Amanhã, mesmo que uns não queiram
Será de outros que esperam
Ver o dia raiar
Amanhã ódios aplacados
Temores abrandados
Será pleno, será pleno

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