Beatriz Aquino
A democracia vem resistindo, mas está frágil, não se engane. E o culpado dessa fragilidade somos nós mesmos. Nós e nossa raiva, nossa fixação no debate apenas pelo debate. Nós e nossa mania de entricheiramento, de escolher lados, não importa qual. Nós que para defendê-lo fazemos tudo, aceitamos tudo. Chamamos demônios de santos, assassinos de salvadores.
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Como já disseram, durante a pandemia o Brasil viveu ao mesmo tempo o horror e a metáfora do horror. Como se não bastasse o vírus dizimando pessoas pelo mundo, levando familiares, entes queridos, amigos, o Brasil nesse período contava com um governante que não apenas negligenciava o cuidado com a população, dever maior inerente à sua posição, como ria dos mortos. Imitava em rede nacional pessoas sufocando, dizia não ser coveiro ao ser perguntado sobre o aumento do número de vítimas fatais. Como se não bastasse a tragédia mundial, o Brasil sofreu também com o atraso nas vacinas, as teorias absurdas sobre elas, a indicação irresponsável de Ivermectina, o deboche, o riso. Repito. O deboche. O riso. O riso sobre a morte.
Pode-se dizer sem engano que o Brasil sofreu, e vem sofrendo, duas pandemias. A do Covid que afetou o mundo inteiro. E a pandemia do fascismo, com o crescimento absurdo da ignorância, da violência, dos maus tratos, da criação de uma gigantesca massa educada, doutrinada para rir, para apontar arma, para ferir qualquer coisa que fosse contrária ao estabelecido. O nome disso é ditadura. Não há outro modo de colocar. As fake news, a falta de escrúpulos para disseminar inverdades que poderiam custar vidas, de difundir conceitos vis, de deseducar uma população pobre e sofrida. Sempre carente de atenção e fenômenos que lhes acalentem a já frágil auto estima, que lhes embotem a visão já prejudicada.
Anos depois de grande agonia, onde vencemos uma pandemia, vencemos uma eleição, e quando digo vencemos não quer dizer que sou petista, mas sim que acredito que qualquer pessoa que veja que seu país não elegeu mais uma vez um homem violento, irresponsável e perigoso para governa-lo, se sente sim um vencedor. Ou pelo menos deveria.
E depois veio aquele janeiro, veio o quase golpe, a invasão, a quebradeira, a violência, o ataque quase fatal à nossa democracia. Em seguida, as provas contudentes da articulação do golpe com requintes de crueldade, estratégias de assassinato, envenenamento. E finalmente o julgamento. O tal ex governante vira réu. E eu acho muito natural. O que não é natural é a surpresa de muitos. A resistência quase infantil, a insistência em não querer acreditar no óbvio. Aliás, esse senhor nunca precisou de provas para mostrar que é perigoso. Muito perigoso.
A democracia vem resistindo, mas está frágil, não se engane. E o culpado dessa fragilidade somos nós mesmos. Nós e nossa raiva, nossa fixação no debate apenas pelo debate. Nós e nossa mania de entricheiramento, de escolher lados, não importa qual. Nós que para defendê-lo fazemos tudo, aceitamos tudo. Chamamos demônios de santos, assassinos de salvadores.
Os políticos passam. Os ditadores vão e vem, como a história mostra. Mas quem fica e quem paga o preço é o povo. Quem fica mais fraco, mais burro, mais violento, jogando cada vez mais contra a sua própria liberdade e sanidade é o povo.
Os governantes gostam de brincar com fantoches. Sempre gostaram. Cortemos as cordas. Acordemos. O que é óbvio é óbvio. O que é certo é certo. Certas coisas, principalmente as que dizem respeito à verdade e valores não mudam. Não se modificam. Não percamos o rumo. O circo sempre esteve armado. A banda sempre tocou alto exatamente para nos atordoar. Que estejamos atentos, lúcidos. Chega de tanta baboseira. De tanta polarização. De tanto ataque. Isso não é uma gincana da quinta contra a sexta série. É o nosso país, o nosso lar.
Eu estava morando fora na época da pandemia. E de onde eu estava também experimentei o medo da morte pelo vírus, a tristeza da perda de amigos. Mas acredito que apenas no Brasil sofreu-se também pela vilania e crueldade de um homem que por ter o poder nas mãos, tripudiava sobre a vida das pessoas. Que brincava com suas vidas.
Sim é muito natural que ele seja réu. Mas não comemoremos. Isso não é motivo de orgulho para nenhum lado. Sim é natural que ele seja preso. Mas não nos revoltemos. Ele será preso não por ser de extrema direita, mas antes de tudo por ser um homem que participou de uma operação contra a democracia. Operação que previa a morte violenta de outras pessoas. Então é natural que a verdade vença, que a justiça prevaleça, que a democracia, mesmo agonizante, se faça valer.
No mais, que se acalmem os entusiastas pela prisão. Que se acalmem os revoltados pela prisão. É hora de se recolher, de refletir. O que esse senhor e toda sua gente tem deixado como legado é uma cultura de ódio, um veneno quase mortal. Não é bom e nem inteligente que mesmo depois que ele passe – e ele há de passar – nós continuemos destilando o mesmo veneno. Não podemos tomar o hábito e os trejeitos dos nossos algozes.
Pois como costumo dizer na peça teatral que apresento; “É preciso tomar cuidado ao ser atingido pela coisa, não se tornar a própria coisa.”
Imagem de Enrique Meseguer por Pixabay