O Direito de Existir ante os Tribunais de Internet e as Doenças Humanas: o caso “reborn”, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 8 minutos

Marcelo Henrique

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Delírios não são realidades. Cancelamentos não são liberdade de opinião. Prepotência não coexiste com equidade. Violências devem ser necessariamente combatidas e há que se cultuar o respeito pelo outro enquanto pessoa humana. 

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O cenário da instantaneidade virtual – em que tudo se consome em poucos segundos (ou minutos), mas pode se estender, como temática, por tempos indefinidos – tem o seu novo mote: os bebês (?) “reborn”.

A interrogação acima tem a ver com o contexto do irreal, imaginário ou fictício, que pode se sobrepor à realidade existencial, a partir do uso de que fazemos de objetos e/ou circunstâncias.

Meses atrás, conversava com um colega de trabalho que me relatava uma situação vivida com parentes. Especialmente, uma tia dele. O casal tinha uma filha, que estava com 23 anos. Sofreu um acidente e faleceu. Ela já madura, não poderia vivenciar – e talvez nem quisesse – a maternidade, novamente, nem por adoção. Resolveu, então, deixar o quarto da filha – já que ela ainda residia no lar familiar – intacto, com todos os pertences.

Diariamente, a senhora ia até o cômodo e o “cuidava”. Mesmo que as roupas estivessem limpas, ela tratava de relavar. E a cama, seguidamente, ela desarrumava e voltava a alinhar. Era assim a sua convivência com o luto. Vivia, a mulher, como se a filha estivesse por voltar a qualquer momento…

Carências de sempre, revisitadas

Hodiernamente, há um contexto peculiar que precisa ser analisado. E, se possível, não para realizar o julgamento sumário de quem quer que seja, principalmente por ele/a se afastar dos “nossos” padrões de “normalidade”.

“Louco é quem me diz que não é feliz”, há muitas décadas, é o bordão que deriva de conhecida canção da MPB (“Balada do Louco”, Os Mutantes, 1972). As “loucuras”, assim, têm vários matizes e enquadramentos, ainda que não representem anomalias ou disfunções mentais. Configuram rompimentos ou anarquias, também. E é preciso dizer, outrossim, que à luz de Glauber Rocha (1965), não nos compete dizer que toda loucura “será castigada”.

Não mesmo! Pois a quem seria reservado tal direito?

Necessário, pois, revisitar as carências da atualidade. E elas são muitas. E nem sempre estão associadas, como visto acima, às perdas de pessoas queridas. Há muito o que enquadrar, ainda que as nossas percepções e, também, as análises – neste caso, de especialistas em mente humana – possam ser incompletas e, como tal, distantes de qualquer generalização.

Entendendo as bonecas “reborn”

As bonecas “reborn” (do inglês, renascido), existem desde os anos 2000, mas estão cada vez mais ultrarrealistas, na forma de bebês que imitam recém nascidos. Foram muito “populares” durante a pandemia e no isolamento social dela decorrente e, em 2021, o tema foi destaque no “Fantástico”, programa dominical da Rede Globo.

Elas, inicialmente, remetem ao primeiro brinquedo de muitas meninas, que fantasiam a maternidade. Todavia, têm sido comuns situações em que os brinquedos são tratados como filhos por adultos que as alimentam, vestem, ninam, e até simulam consultas médicas, registrando tais “fatos” em redes sociais.

Na realidade, tratam-se de artigos de luxo, não acessíveis, financeiramente, à maioria das pessoas, com custos que variam de R$ 750 e R$ 9,5 mil, dependendo do material utilizado e da complexidade empregada em sua produção. As de valor mais alto têm o silicone sólido, como matéria prima, similar à pele de recém-nascidos, podendo ser escolhido o tom da pele e a cor dos olhos, com a simulação das “dobras” da pele e das unhas. Algumas permitem que o “bebê” ingira líquidos (por mamadeira) e os excrete, como se fosse uma “urina”, assim como possuem outros possuem dispositivos internos simulando batimentos cardíacos. Há, também, exemplares que se assemelham às crianças com síndrome de Down. Nestes casos, em essência, as situações não podem ser minimizadas como se fossem excentricidades.

Algumas vendedoras fornecem “enxovais” com roupas e acessórios, assim como certidão de “nascimento” e cartão de vacinas, complementando o “pacote” de para-realidade.

Realidade paralela ou brincadeira de adulto?

Especialistas, como psicólogos e terapeutas, têm salientado diversificadas situações em torno desta questão. A priori, não existem evidências de que todo os “usuários” dos brinquedos estejam vivendo uma realidade paralela ou padecendo de alguma patologia. É preciso investigar a fundo, caso a caso, para verificar o “limite” entre o simples “hobby” (como ocorre com indivíduos que colecionam miniaturas, bonecos e carrinhos) e um problema de saúde.

Os “hobbies” são atitudes saudáveis, via de regra, porque importam o enriquecimento psíquico, proporcionando aprendizado e alegria, quando em equilíbrio, para não desembocar em situações negativas,.

Há quem considere, ainda, essa infantilização como uma espécie de terapia. Atuando em uma instituição de acolhimento para idosos, durante quase trinta anos, eu mesmo me recordo de uma idosa que tinha uma boneca e a tratava como filha. Descobriu-se, por parentes, que ela tinha perdido uma filha, quando mais jovem, razão pela qual ela demonstrava esse comportamento. Na ocasião, o geriatra que atendia à instituição chegou a mencionar a finalidade terapêutica da boneca.

E enfermidades como ansiedade, depressão, demência ou Alzheimer podem ter, diante dos quadros clínicos e do atendimento clínico, recomendações ou aprovações em relação a itens como as bonecas.

Alguns psicólogos têm salientado, em casos que acompanham, os benefícios do relaxamento e do impulso criativo em alguns pacientes, sobretudo no caso de pessoas que não possuem parentes próximos e apresentam dificuldades de convivência, favorecendo a interação social e o senso de pertencimento. Nestas situações, o “brincar” é composto de três processos: a subjetivação (onde o indivíduo se reconhece como sujeito); a articulação temporal (que está relacionada à organização do tempo); e, a simbolização (quando se representa ou transforma algum objeto).

É o que acontece, também, em relação a membros de determinadas comunidades virtuais em redes sociais, que evoluem para encontros presenciais, como os que têm sido relatados pela mídia. Parques costumam receber pessoas e seus “filhos”, bebês “reborn”, em atividades de interação e sociabilidade, o que é salutar.

Todavia, quando a questão transcende para a consideração, de fato, de que seria um ser humano, enfermidades mentais costumam ser diagnosticadas.

Por fim, não há evidência de que uma infinidade de pessoas esteja concebendo uma realidade paralela, ao tratar bonecas como crianças reais, a ponto disso se tornar um problema social que mereça reflexão.

Os excessos dos debates públicos e políticos

Em tempos de polarização e maniqueísmo, como os atuais, a divulgação de notícias – reais ou fictícias, inclusive sensacionalistas – deve ser encarada com equilíbrio e bom senso. Temos visto pessoas discutindo as notícias e tomando partido, inclusive com “julgamentos” e cancelamentos – outras práticas bem comuns na modernidade, frequentemente com efeitos ainda mais negativos, como agressões físicas e psicológicas, na “defesa” do “sim” ou do “não”, invariavelmente.

Neste cenário, o equilíbrio e a espiritualidade nos direcionam a ter cautela diante de opiniões e sentimentos extremados, assim como nas reações nas redes sociais em tom exagerado em relação a eventuais críticas dirigidas aos indivíduos “adeptos” da prática.

Alguns “produtores” das bonecas, quando entrevistados, relataram que o público consumidor usual são crianças, e não adultos. Há registros de pessoas que, nos últimos meses, não venderam um exemplar sequer para estes últimos. Mas, também há os que, sobretudo por contas no Instagram, em postagens com fotos, indicando um relevante público de adultos entre os adquirentes.

A questão, inclusive, já foi parar nos parlamentos, municipais e federal, com a apresentação de “projetos de lei”, seja para proibir ou punir as pessoas que estejam exigindo demandas públicas de “atendimento de saúde” aos bebês ou querendo se valer de benefícios legais para atendimento preferencial ou permanência em assentos especiais, em repartições, estabelecimentos comerciais ou meios de transporte. E, também, aqueles relativos à atenção psicossocial e clínica aos “dependentes” do brinquedo.

Furar a bolha

Segundo os dados do “Google Trends”, o primeiro lugar no ranking global de interesse por bebê “reborn” nos últimos cinco anos está com o Brasil, o que mostra a relevância que o tema possui em nosso país e nas arenas virtuais.

A repercussão midiática deve nos acautelar, também, em relação ao “modus operandi” de muitos indivíduos, que monetizam suas práticas, canais e redes, atraindo um público sempre “carente” de novidades, inclusive disseminando inverdades e falácias.

Muitos vídeos que circulam com destacado engajamento acabam sendo, na realidade, narrativas fictícias e intencionais direcionadas a um público bem específico. Ao “viralizarem”, acabam “furando a bolha” e se tornando assunto nacional e de “utilidade pública”, artificialmente.

A interpretação literal e a tomada de posição em tempos em que a internet, por vezes, banaliza comportamentos e fabrica estereótipos – assim como promove o linchamento daqueles que pensem diversamente (mesmo que estejam mais próximos da “verdade” do que os demais) – merece atenção. Novamente é preciso recomendar prudência tanto para eventuais “combates” ou “rechaços”, como em relação à “simplificação” de comportamentos como se fossem doentios, inclusive pela ausência de autoridade profissional para emitir “diagnósticos” ou proferir “julgamentos”.

Então, nós que somos do meio jornalístico, alertamos para a existência e repetitividade (forçada, provocada e rentável) de “fatos diversos” ou “faits divers”, porquanto desconectados da historicidade realística e da fundamentação lógico-racional. Mas que vendem, engajam e, no ritmo veloz do consumo midiático da atualidade, provocam outros atos, estes reais, compondo “torcidas organizadas” em favor da opinião própria e no demérito dos que pensam diferentemente.

A ira, as mobilizações, a verborragia, os ringues e os “sparings” tomam a cena pública da modernidade, situando esses “fatos” no mesmo patamar das “fake news”, sobretudo quando a ideia motriz é a divisão social baseada no “nós contra eles”. E é aí que vêm os danos sociais.

Repercussões necessárias ou não

A questão maior nos parece ser o “patrulhamento” que a contemporaneidade contempla, com a facilidade de difusão de informações (muitas delas distantes da realidade, ainda que, aqui ou ali, se tenham comportamentos que não implicam em generalizações). Há toda uma propensão para o julgar e o condenar – quase sempre sem oportunidade do contraditório e da (ampla) defesa.

Em consequência, as redes sociais e a possibilidade – ao menos, a priori, com perfis abertos – de comentar “sem filtro”, têm desembocado em violências psicológicas e podem evoluir para situações presenciais de conflito físico, quando, por exemplo, o mote da discussão, inicialmente nas plataformas digitais for, também, tema nas relações interpessoais.

Invariavelmente, as pessoas tendem a possuir/manter/amplificar seus vínculos morais com certas temáticas, o que amplia o maniqueísmo inicialmente citado e estabelece trincheiras escolhidas por uns e outros, sem falar na imposição da cultura do medo em relação ao se posicionar, afetando a liberdade de expressão, em níveis aceitáveis de civilidade e bom senso.

Por fim, é preciso também enfocar a questão-motriz que caracteriza a existência de um bebê real ou de um brinquedo que imita a realidade: a maternidade e a condição da mulher que, também, neste contexto, pode importar em culpabilidade, nos “tribunais virtuais” do nosso tempo, quando não em misoginia.

Portanto, diante de um público que, via de regra, não possui a capacidade de discernimento entre o verdadeiro e o falso, o real e o irreal, o fato jornalístico e o boato, a conjuntura e as fake news, torna-se necessário a delimitação regulatória da internet e a responsabilização daqueles que tanto criam quanto os que disseminam a mentira.

Delírios não são realidades. Cancelamentos não são liberdade de opinião. Prepotência não coexiste com equidade. Violências devem ser necessariamente combatidas e há que se cultuar o respeito pelo outro enquanto pessoa humana.

Esta é a polêmica da vez. Adiante, outra advirá. Mas, enquanto ela está entre nós, torna-se necessário que não sejam os maus, audaciosos e intrigantes, aqueles que detenham o protagonismo. Oportuno se faz que deixem a timidez aqueles que são bons, como está em “O livro dos Espíritos”, item 932. 

Referências:

Agência Estado. “A moda do bebê reborn: hobby ou problema de saúde?”. Estadão. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/05/15/a-moda-do-bebe-reborn-hobby-ou-problema-de-saude-como-diferenciar.htm>. Acesso em 15. mai. 2025.

Castro, G. “O que é um bebê reborn? Entenda polêmica que tem crescido nas redes sociais”. Estadão. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/brasil/o-que-e-um-bebe-reborn-entenda-polemica-que-tem-crescido-nas-redes-sociais-nprm/>. Acesso em 16. mai. 2025.

Cavalcante, G. “Febre de bebês reborn é patológica? Como passado e tecnologias explicam”. MidiaMax. Disponível em: <https://midiamax.uol.com.br/artigo/2025/bebe-reborn-a-polemica-que-nao-existe-e-a-vulnerabilidade-em-uma-internet-sem-regras/>. Acesso em 15. mai. 2025.

Dunker, C. “Febre de bebês reborn é patológica? Como passado e tecnologias explicam”. Tilt. UOL. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2025/05/11/o-renascimento-dos-bebes-reborns.htm>. Acesso em 15. mai. 2025.

Fava, B. “Brasil lidera interesse por bebê reborn no mundo – e perguntas inusitadas bombam no Google”. Band. Disponível em: <https://www.band.com.br/noticias/brasil-lidera-interesse-por-bebe-reborn-202505061128>. Acesso em 15. mai. 2025.

Lemos, N. “Mania dos bebês reborn: vale tudo para viralizar”. DW. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/coluna-mania-dos-beb%C3%AAs-reborn-vale-tudo-para-viralizar/a-72526519>. Acesso em 15. mai. 2025. 

Macedo, V. “Por que mulheres são criticadas por ter bebês reborn, e o que isso diz sobre a maternidade”. Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2025/05/por-que-as-mulheres-estao-sendo-tao-criticadas-por-ter-bebe-reborn-e-o-que-isso-pode-diz-sobre-maternidade.shtml>. Acesso em 16. mai. 2025.

Redação. “Padre diz que não batizará bebês reborn e viraliza”. Agência Estado. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/05/17/padre-diz-que-nao-batizara-bebes-reborn-e-viraliza.htm>. Acesso em 15. mai. 2025.

Souza, A. “Após viralizarem, mulheres defendem ter bebês reborn como hobby: ‘Não somos doidas’”. Folha de S. Paulo. Disponível em: <https://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2025/05/apos-viralizarem-mulheres-defendem-ter-bebes-reborn-como-hobby-nao-somos-doidas.shtml> . Acesso em 15. mai. 2025. 

Imagem de Aristal Branson por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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One thought on “O Direito de Existir ante os Tribunais de Internet e as Doenças Humanas: o caso “reborn”, por Marcelo Henrique

  1. Este fenómeno está para além da minha compreensão. Só posso compreender pelo motivo de que a sociedade está a perder o sentido do amor pela vida. Se não podem gerar crianças, então adoptem. A sociedade está doente, a ausência de valores morais deprime o ser humano.