Nem sempre é preciso usar capa!, por Marcelo Henrique

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Marcelo Henrique

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É preciso ser corajoso diante da insanidade do Big Boss americano ou de qualquer transeunte próximo de nós, que venha com discursos desbotados e apodrecidos de imposição de padrões “religiosos” ou “moralizantes”. Não precisamos dessa moral, enviesada e condenatória. Seguimos amando e mudando as coisas, como a letra que nos representou, na poesia musical de Belchior.

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Raça de heróis

Virá salvar a terra

Raça de heróis

Heróis, heróis, heróis

(Raça de Heróis, Guilherme Arantes, 1989)

Janeiro de 2025. Um grotesco personagem volta à baila, num outrora país hegemônico no planeta, mas que não goza mais do prestígio de antes. Está acuada a nação que se notabilizou por ser a mais poderosa, assim saída do pós-guerra (1945).

Seu rosto tem um rubor que poderia simbolizar leveza e simpatia, mas que, do contrário, representa empáfia e pseudo-superioridade, desembocando em antipatia e asco, não somente pela imagem física, mas por suas manifestações enquanto Chefe de Estado.

Sua posse foi seguida de medidas político-comerciais, administrativo-imigratórias e muitas bravatas. Estas últimas, aliás, são sua indelével marca, numa verborragia incompatível com o cargo de uma das nações mais importantes do planeta. E, nisto, parece que não aprendemos muito, porque seguimos na verve belicosa, diante de um cenário em que a paz depende dos gestos de homens que podem apertar botões, que tornariam o orbe um ambiente frágil, numa iminente destruição completa.

Obviamente que não há embate solitário. Para a hecatombe, será preciso que outros se somem à vilania, ora individualizada de Trump. Mas, candidatos não faltam, porque a virilidade masculina precisa de holofotes e oportunidades para se mostrar existente, ainda que, em discursos e “política governamental” tais arroubos já sejam, com frequência, observados.

O “Tio Sam” laranja tem muitos alvos. Seu pedantismo, sua inabilidade com os diferentes, sua ausência de empatia e seu conservadorismo tacanho se dirigem aos hipossuficientes, aos marginalizados, aos que se distanciam dos padrões ianques (de discutível beleza e galhardia).

Uma de suas truculências se dirigiu à comunidade LGBTQIAPN+, logo na posse, em 20 de janeiro:

“Esta semana, também porei fim à política governamental de tentar incorporar socialmente a raça e o gênero em todos os aspectos da vida pública e privada. Vamos forjar sociedade que não enxergará duas cores e será baseada no mérito. Será política oficial dos EUA que existam apenas dois gêneros, masculino e feminino”, declarou. 

Na contramão da história, faz retroceder décadas de inclusão da luta pela identidade de gênero, ao misturar, bisonhamente, conceitos de gênero e sexo biológico. E, por consequência, além de criar embaraços de toda a ordem, inclusive no âmbito dos direitos civis, reconhecidos pelas nações civilizadas em todo o planeta, ainda impacta na manutenção de programas de saúde, nos EUA e em várias partes do mundo, pelos anunciados cortes de verbas para programas relacionados a doenças sexualmente transmissíveis, sobretudo o HIV.

Todavia, também como expressão da estrutura tripartite de poderes e o sistema constitucional de freios e contrapesos presentes nas democracias que decorrem das ideias de Montesquieu (1689-1755) e sua teoria da separação entre os poderes republicanos, o Judiciário americano tem imposto o recuo do mandatário norte-americano, seja para impor a manutenção do financiamento a programas de apoio a pacientes com AIDS, seja para evitar que prisioneiras trans sejam transferidas para presídios masculinos.  

Há heróis, então, para contrapor os vilões da atualidade. Alguns usam capa, como os magistrados citados acima. Outros não.

É o caso de Lady Gaga, que esteve, ontem (03/05), num show gratuito nas areias da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, reunindo 2,1 milhões de pessoas, conforme a RioTur, superando a performance anterior de Madonna (1,6 milhões), em 4 de maio do ano passado.

A cantora, exuberante como de costume, com a magia que encanta fãs em todo o mundo, fez um discurso para o público brasileiro, do qual destacamos: “Talvez vocês estejam se perguntando por que demorei tanto para voltar. A verdade é que eu estava me curando, me fortalecendo. Mas, enquanto eu me curava, algo poderoso acontecia. Vocês continuavam lá, torcendo por mim, pedindo para eu voltar quando estivesse pronta. Brasil: eu estou pronta!”

A cura… A busca de todos os que sofrem e padecem. A vitória sobre a(s) doença(s), sejam elas de que tipologia forem.

E o mundo jaz doente, sabemos. E há doenças psíquicas que contagiam milhões, fazendo com que o que de mais negativo existe na espécie humana, derivações das piores chagas espirituais que são o orgulho e o egoísmo sejam inspiração para toscos discursos e abjetas ações – desde os humanos mais simples até os que ostentam grandes posições em hierarquias mundanas.

Gaga é a musa LGBTQIAPN+ do momento. E ela é a voz harmônica contra a dissonância daqueles que não praticam a equidade nas relações humano-sociais.

Primeiro, em fevereiro, no Grammy 2025 (a cerimônia anual de premiação da Academia de Gravação dos EUA, que reconhece a excelência na produção fonográfica, que chegou à 67ª Edição), ela e Bruno Mars receberam o prêmio de “Melhor performance de Duo ou Grupo”, com a música “Die With a Smile” (morra sorrindo, em livre tradução). Em seu discurso, ela afirmou: “Pessoas trans não são invisíveis”, ela disse. “Pessoas trans merecem amor. A comunidade queer merece ser elevada. Música é amor”.

Traduzindo: “queer” simboliza todas as pessoas que não se consideram identificadas com as normas de gênero e sexualidade vigentes na nossa sociedade, nem se consideram confortáveis ao assumir rótulos específicos. Enquadram, assim, todos aqueles que possuem uma identidade e orientação que foge do padrão heterossexual e cisgênero.

Depois, em março, na cerimônia de premiação do “iHeartRadio Music Awards 2025”, ela voltou a consignar sua vinculação à causa, agradecendo à comunidade LGBTQIAPN+ que, segundo ela “me ensinou coragem antes que o mundo estivesse pronto para ouvir”.

Não são, contudo, apenas discursos. É uma identidade, uma marca. Forte e definitiva. De quem resiste. Uma heroína que não usa capa – ainda que em seus figurinos, volta e meia, as capas esvoaçantes e multicoloridas ou brilhantes, possam aparecer. Mas, no dia a dia e na militância LGBTQIAPN+, as capas não aparecem, porque, de cara limpa (ou, mesmo, com maquiagem), no palco ou fora dele, nas ruas e em quaisquer ambientes, a LUTA é por respeito e dignidade.

Repisando a canção de Arantes, 

“Sente o rufar dos tambores

Ouve os metais que anunciam

Um cavalgar de coragem

Todo temor silencia”,

é preciso ser corajoso diante da insanidade do Big Boss americano ou de qualquer transeunte próximo de nós, que venha com discursos desbotados e apodrecidos de imposição de padrões “religiosos” ou “moralizantes”. Não precisamos dessa moral, enviesada e condenatória. Seguimos amando e mudando as coisas, como a letra que nos representou, na poesia musical de Belchior.

E não seremos silenciados! Porque nenhum de nós é invisível! E seguiremos resistindo, como uma “Raça de Heróis”.

Nós, como Gaga, não estamos portando capas. Ainda que seja imprescindível, nas relações sexuais, usar “capa” (preservativos e medidas protetivas)! 

 

Nota do Autor: A sigla LGBTQIAPN+ identifica a mais ampla diversidade (no momento) de identidades de gênero e orientações sexuais, traduzindo lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexo, assexuais, pansexuais e não-binárias, incorporando a forma mais inclusiva e abrangente possível.

Imagem: Rio de Janeiro (RJ), 03/05/2025 – Público enfrenta fila para acesso ao local do show da Lady Gaga na praia de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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