Milton Medran Moreira
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No estágio em que estamos, nem sempre avaliamos corretamente o que nos serve e o que nos prejudica.
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O poeta gaúcho Mário Quintana que, como está acontecendo comigo, viveu mais de 80 anos, escreveu: “Nascer é uma possibilidade, viver é um risco e envelhecer é um privilégio”.
Sobre as estreitas possibilidades de nascimento, sabemos que, em cada relação sexual, o homem expele centenas de milhares de espermatozoides para, em alguns casos restritos, apenas um alcançar o óvulo feminino e fecundá-lo. Isso sem levar em conta o que nós, espíritas, consideramos as nem sempre fáceis oportunidades de reencarnação dos espíritos. Segundo alguns relatos, há sempre filas deles buscando a oportunidade de voltar à matéria.
Quanto ao risco de viver, este é altíssimo, pela própria natureza da vida material e as contingências peculiares de cada existência. A luta pela sobrevivência, do homem das cavernas ao guerreiro de todos os tempos; as epidemias; a violência; a fome, os desastres climáticos, tudo sempre esteve a conspirar contra a fragilidade humana.
Privilégio?
Já, o envelhecer será mesmo um privilégio? Ao completar 84 anos, guardo lá minhas dúvidas. Não consigo ver exatamente assim em casos invariavelmente próximos a cada um de nós. Deparamo-nos a cada momento com velhos acometidos de dolorosas limitações físicas e mentais, totalmente dependentes, muitas vezes, de pessoas nem sempre dispostas a lhes prestar a devia ajuda. Sim, sei que a complexidade do viver, as injustiças sociais e, também, as escolhas de cada um moldam diferentes sortes que podem se inscrever no complexo rol dos desafios necessários, das consequências naturais ou das compulsórias provações suscetíveis de gerar avanços.
Seja isso privilégio, seja um quadro de consequências pedagógicas, ou o que for, o que bem sei, no entanto, é que, nesta fase da vida, tornamo-nos, mais aptos a melhor interpretar episódios de nossa existência, incompreendidos ou lamentados, quando de sua ocorrência.
Ontem e Hoje
Vai daí que, passando a limpo a vida da gente, o que ontem nos pareceu mero acaso, podemos ver hoje como absolutamente decisivo ao atingimento de certas metas reencarnatórias.
Decisões tomadas repentinamente, sem uma clara razoabilidade, ou derrotas profissionais e até episódios duramente sentidos, porque aparentemente injustos, lá adiante podem se revelar imprescindíveis a posteriores êxitos ou estágios familiares, sociais ou emocionais, carregados de felicidade. Eles não ocorreriam, sem os pressupostos fáticos anteriores.
Ditado popular afirma que “Deus escreve direito por linhas tortas”. O raciocínio espírita nos permite conferir uma certa complexidade a isso. O Universo, pensamos, é regido por múltiplos mecanismos inteligentes, teleologicamente conectados, entre si, sujeitos a uma lei natural, emanada de uma “Inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”. É no estágio final da vida que nos tornamos aptos a melhor compreender isso.
Influências espirituais
É com raciocínios e experiências dessa natureza que podemos ajuizar melhor a afirmação contida na questão 459, de “O livro dos Espíritos”. Indagados sobre se influem os Espíritos sobre nossos pensamentos e atos, os interlocutores espirituais de Kardec responderam: “Nesse sentido a sua influência é maior do que supondes, porque muito frequentemente são eles que vos dirigem”.
À primeira vista, a afirmativa pode se revelar totalmente atentatória à nossa autonomia. Mas, autonomia é conquista paulatina e progressiva do Espírito. No estágio em que estamos, nem sempre avaliamos corretamente o que nos serve e o que nos prejudica. O deficiente conhecimento acerca de nossas reais necessidades, no contexto de uma experiência encarnatória, exige, muitas vezes, que sobre nossas decisões, planejamentos ou aparentes interesses, se contraponham interferências espirituais, só mais tarde compreensíveis.
Será a compreensão dessa realidade o grande privilégio do envelhecimento, reconhecido pelo poeta gaúcho, que eu tive a ventura de conhecer pessoalmente, e que desencarnou em 1996, aos 88 anos de idade?
Nota do ECK:
Artigo originalmente publicado no jornal Abertura, órgão do Instituto Cultural Kardecista de Santos – ICKS, edição n. 416, de março de 2025.
Imagem de Eddie K por Pixabay
Perfeito, meus caros! O artigo me lembrou a frase de um velho amigo: ‘Viver é bom. E como é bom! Mas extremamente perigoso.’ De fato, a vida se revela com o tempo, e muitas vezes só mais tarde compreendemos a lógica de certas experiências. Grato ao Sr. Milton Medran por este belíssimo artigo.