Inconsistências doutrinárias no Capítulo XVIII de “A Gênese”, por Marco Milani

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Marco Milani

Muitas das alterações promovidas no texto da 5ª edição, publicada após a desencarnação de Allan Kardec, mostram-se incompatíveis com a coerência doutrinária, reforçando a suspeita sobre a autoria das mesmas.

O capítulo 18, de “A Gênese”, intitulado “Os tempos são chegados”, pode ser considerado emblemático, não somente por ser aquele que encerra o conjunto das obras fundamentais do Espiritismo, mas também por apontar com clareza a natureza das transformações que a humanidade passa.

Destaca-se, entretanto, alterações no texto e os reflexos no conteúdo ocorridos na 5ª edição francesa deste livro, cuja autoria das modificações foi questionada por Henri Sausse em 1884 e, graças à pesquisa recente de Simoni Privato Goidanich, apresentada na obra “O legado de Allan Kardec”, apenas até a 4ª edição pode ser atribuída com segurança a Kardec.

Justamente por ser a obra que, segundo Kardec, necessitava ser lançada somente após o devido desenvolvimento dos princípios apresentados nas obras anteriores, em momento de maturidade dos próprios espíritas, não se poderia admitir contradição com esses princípios. No capítulo 18, até a 4ª edição francesa, não há qualquer contradição nesse sentido, mas na 5ª edição verifica-se esse problema.

O ensinamento dos Espíritos é claro ao apontar que existem dois tipos de transformações em curso no planeta: aquelas de origem material e aquelas de caráter moral. Apesar de ocorrerem simultaneamente, possuem ritmos específicos e não se confundem nem são interdependentes.

O planeta progride moralmente pela depuração dos Espíritos encarnados e desencarnados que o povoam, resultado direto do desenvolvimento da inteligência, do senso moral e do abrandamento dos costumes. Conhecendo os objetivos a serem atingidos, os Espíritos superiores conseguem apontar os caminhos pelos quais a humanidade tende a seguir e por isso sinalizam que a fase atual reflete esse período de mudanças mais intensas.

Ao contrário do que esperam místicos e supersticiosos, entretanto, essas transformações não são precedidas de acontecimentos físicos ou fenômenos maravilhosos.

Estranhamente, algumas alterações no texto da 5ª edição francesa são incoerentes sob o aspecto doutrinário, estabelecendo uma forte relação entre acontecimentos físicos e morais, além do fatalismo, levando o leitor consciente a questionar a origem dessas informações. Dentre os vários trechos inseridos neste capítulo na 5ª edição, o item 10 permite exemplificar essa incoerência. Especificamente, lê-se:

“Se, pelo encadeamento e a solidariedade das causas e dos efeitos, os períodos de renovações morais da humanidade coincidem, como tudo leva a crer, com as revoluções físicas do globo, elas podem ser acompanhadas ou precedidas de fenômenos naturais, insólitos para aqueles que não estejam habituados, de meteoros que lhes parecem estranhos, da recrudescência e intensificação desacostumadas, de flagelos destruidores. Tais flagelos não são causa, nem presságios sobrenaturais, mas sim uma consequência do movimento geral que se opera no mundo físico e no mundo moral” (A Gênese, 5ª ed. [adulterada], Cap. XVIII, item 10).

Posteriormente, no mesmo item 10, do referido capítulo, da 5ª edição francesa, afirma-se que Jesus podia predizer a era de renovação moral que a humanidade passaria associando-a a fenômenos extraordinários, terremotos, flagelos diversos e sinais dos céus. Em nota de rodapé, menciona-se que a epidemia mortal ocorrida entre 1866 e 1869 na Ilha Maurícia foi precedida por uma extraordinária chuva de estrelas cadentes e que, “sem dúvida”, teria sido um sinal no céu. Tais afirmações satisfazem os supersticiosos, porém afastam-se da fé raciocinada.

A inserção dos itens 8, 9 e 10 (5ª edição francesa), com trechos baseados em cartas de adeptos ou em comunicações que não receberam a sanção universal na Revista Espírita de jul/1867, out/1868 e nov/1868, não caracteriza ou valida um novo ensinamento doutrinário.

Nesta obra, ressalta-se a relevância da concordância universal para que qualquer ensinamento possa ser considerado parte integrante da Doutrina Espírita e, certamente, a crendice supersticiosa de que as transformações morais da humanidade estejam vinculadas às transformações físicas do globo ou a fenômenos naturais como estrelas cadentes não faz parte dos ensinamentos dos Espíritos.

Assim, mais uma vez constata-se que muitas das alterações promovidas no texto da 5ª edição, publicada em 1872 (três anos após a desencarnação de Allan Kardec), mostram-se incompatíveis com a coerência doutrinária, reforçando a suspeita sobre a autoria das mesmas.

Nota do ECK: Artigo originalmente publicado no jornal “Dirigente Espírita”, número 168, edição de novembro/dezembro de 2018, sob o título “Crendices, superstições e estrelas cadentes”.

Imagem-de-Andy, do Pixabay

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