Imaterialidade e Artificialidade: Porque a Inteligência Artificial deve ser adequadamente utilizada a serviço do Espiritismo

Tempo de leitura: 9 minutos

Por Manoel Fernandes Neto, Marcelo Henrique e Nelson Santos

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“Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”. 

Kardec, “A Gênese”, Cap. I, item 55.

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Os espíritas novidadeiros, termo de Herculano Pires, estão em polvorosa. A Inteligência Artificial Generativa tornou-se a panaceia do momento no meio espírita. Tudo parece estar resolvido, agora a doutrina será compreendida. Algo similar ao bordão das Organizações Tabajara, inesquecível e criativo quadro do Casseta & Planeta: “Seus problemas acabaram!”.

Oi? Como é? Pera lá! Não é bem assim, veja bem…

Diante dos novidadeiros da Inteligência Artificial no Espiritismo

Vemos um punhado (bem grande) de gente espírita de influência usando (e abusando!) do sistema inovador – seria um chat? Uma voz artificial? –, “conversando” (interagindo) todos os dias acerca de diversos temas doutrinários (nem todos, companheiro, nem todos!, porque sempre tem alguém que deseja saber a “visão espírita” disso ou daquilo, quando o Espiritismo, em sua concepção originária, kardeciana, não se dispõe a explicar ou dizer o certo ou o errado sobre qualquer temática). 

Mas a turma ali está, se acotovelando, com os olhos esbugalhados e a boca escancarada cheia de dentes (É, Raulzito, eles estão por aqui!) e, dizem eles, clamando informações sobre as melhores “ideias” para desenvolvimento da Doutrina codificada por Allan Kardec. 

A ironia é inevitável para nos manter alertas.

O que é a IA?

A Inteligência Artificial Generativa (IA) é um sistema capaz de reproduzir competências semelhantes às humanas, como simulação de raciocínio, aprendizagem, planejamento, tarefas, etc. Hoje a IA está inserida nas áreas de educação, saúde, transportes, produção, alimentação e agricultura, direito, administração pública e serviços na área de segurança, em sistemas embarcados, equipamentos eletrônicos, entre tantas outras utilizações. 

A IA permite a resolução de problemas, agindo no sentido de alcançar um objetivo específico. Os sistemas de IA são capazes de adaptar o seu comportamento, até certo ponto, através de uma análise dos efeitos das ações anteriores e de um trabalho autônomo.

Em sua popularização,  a IA é utilizada para produzir conteúdos (textos, artigos, notas, comentários e até trabalhos acadêmicos!). Além de imagens, filmes, materiais impressos, traduções, dublagens, reprodução de vozes, compilando as informações sobre temas disponíveis. Trabalhando em sistemas especificamente preparados ou utilizando a rede mundial de computadores para aprendizado, a IA cria novos conteúdos e processa respostas quanto mais é usada.

Resta aquilatar, agora, o que é que se faz com isso…

Vejamos…

Foto de Jesus feita por IA, Imagem de Chil Vera por Pixabay

Além dos novidadeiros, os espertalhões  

É o palestrante monetizado que, recolhendo insights da IA e os organizando sequencialmente, apresenta novos sofismas para a plateia delirante. Ou a mensagem alegadamente atribuída a dado Espírito (com pedigree espírita, claro!), mas que é “montado” a partir de outras mensagens do próprio autor espiritual (constante de obras psicografadas) ou de livros/artigos que ele escreveu, quando encarnado, mas, agora, com validação cibernética. Também a voz “enrugada” como um ancião de 150 anos, de alguém que gravou sua própria voz mas ela foi “transfigurada” (e não é milagre, nem mediunidade, viu?), como sendo a de Bezerra de Menezes recitando mensagens sugestivas e cooptativas. E, como o “must” do processo criativo – e prestidigitador, ilusório e de ética discutível – produz-se uma imagem “enevoada”, semimaterial ou um holograma de Jesus, de Kardec, ou de algum vulto que possua relevância para o meio espírita…

 

No “script”, teremos a estupefação, os rostos boquiabertos, as lágrimas nos olhos, as mãos em posição de concha, como se fossem aplicar o passe, dizendo: – É tão real! – Que maravilha! – Graças a Deus! – Assim seja! – Que bênção! Ou, – O Espiritismo é divino!

Mas não é só

Vamos falar um pouco daquilo que nos é mais caro e familiar, por profissão e atuação, como jornalistas, articulistas e editores: os textos escritos. 

Temos visto algumas composições “matreiras”, que são capazes de enganar nove entre dez espíritas – inclusive muitos com uma quantidade considerável de léguas… Um, nove e dez, onde é mesmo que você já leu/ouviu isso? Pois é! Lembre-se da advertência fraterna de Erasto… Observando-os, à primeira vista, são “a cara” de Kardec. Ou, dizem alguns mais, trata-se do mesmo Espírito que esteve orientando Kardec ou ditou psicografias naquele segundo quadrante do século XIX. Ora, pois… Isto nos faz lembrar uma velha propaganda televisiva, de um shampoo que fazia relativo sucesso (lá pelos 1980!), cujo bordão era “parece remédio, mas não é”. Não iremos falar o nome, mas muitos saberão do que se trata e outros poderão pesquisar em sites de busca, tipo o G, para buscar esse dado.

Os artigos “cativantes”, com uma aparência de “fidedignidade”, com alguma “profundidade”, capazes de serem associados à própria Codificação (as trinta e duas obras escritas e publicadas por Kardec), são realmente sedutores. Podem enganar muita gente, durante algum tempo, e alguns durante muito tempo, mas não serão viáveis no sentido de enganar a todos por todo o tempo.

Sabe como foram compostos tais artigos? A partir da IA, no próprio ChatGPT, porque foram  manipulados pela própria programação, escritos a partir de palavras-chave que combinam trechos da codificação com pitadas de emoção barata e de autoajuda. Ninguém vai perceber, não é mesmo? 

Livros, então, são algo imbatível, seja nas versões impressas (sempre mais atraentes e com aquela pitada de “é meu”, “está na minha mão”, “figura em minha cabeceira ou prateleira”), como os eletrônicos, estes alcançando público cada vez maior e diversificado. Nas estantes de livrarias ou nas páginas de blogs e sites, elas exaltam a grande verdade espiritual dos bits em uma implacável máquina de moer dados e informações para enganar os incautos ou, no dizer do saudoso Professor Herculano, os “adeptos muito entusiasmados”. 

Sem falar, ainda, de divulgações contendo “novas respostas” da lavra do próprio Allan Kardec (como se de questionador e inquiridor das Inteligências Invisíveis, em sua maiêutica produtora do acervo que ele nos deixou – 1857-1869), ele agora trocasse de papel e fosse o entrevistado (dizem, eles, para “complementar” o seu trabalho, com “altos conhecimentos”). Hummmmm… O que se tem visto é uma overdose generativa vindo de fontes diversas – e com que interesses?–, sem análise, reflexão e certeza da origem. O Espiritismo das massas artificiais, então, vai caminhando para o abismo. 

47,4% de todo o tráfego na rede é gerado por robôs. Imagem gerada em IA, de Susan Cipriano por Pixabay

A Internet morreu

Ronaldo Lemos, estudioso sobre tecnologia, proclamou que a Internet morreu (1). E ele traz dados assustadores. Hoje, 47,4% de todo o tráfego na rede é gerado por robôs. Acrescenta, ainda, o especialista, que 30% deles são robôs maliciosos, que copiam informações ou fazem ataques.

“Um estudo do Instituto de Estudos do Futuro de Copenhague prevê que 99% do conteúdo que será postado na internet em 5 anos será gerado por inteligência artificial. Ou seja, só 1% será feito por humanos”, diz Lemos.

Para o estudioso, grosso modo, somos uma geração que deverá ser preservada em mosteiros, porque com certeza deve ser a última, ou única, a viver o tempo em que a internet era feita por pessoas. 

“Para as gerações futuras, mais acostumadas com robôs do que a gente, essa ideia poderá parecer antiquada ou até grotesca: uma internet humana como um cobertor feito de retalhos, esquecido em algum canto mofado do passado”, explica Lemos. 

Os intelectuais do planeta se movimentam, espantados com a forma como vem sendo usada pelo grande público, essa invenção artificial. O linguista Noam Chomsky e mais dois pesquisadores escreveram um artigo na NYT, reproduzido na Folha de São Paulo (2), e propuseram compreender esses tempos. 

O citado texto diz que a ciência da linguística e a filosofia demonstram que o conhecimento de sistemas como a IA diferem de forma definitiva de como os humanos raciocinam e utilizam a linguagem: “Essas diferenças impõem limitações importantes ao que esses programas podem fazer, codificando-os com defeitos indeléveis”, diz Chomsky.

Ele demarca a diferença: “A mente humana não é como o Chat GPT e seus semelhantes, uma pesada máquina estatística para encontrar padrões semelhantes, devorando centenas de terabytes de dados e extrapolando a resposta mais provável numa conversa ou a resposta mais plausível para uma pergunta científica. Pelo contrário, a mente humana é um sistema surpreendentemente eficiente e até elegante que opera com pequenas quantidades de informação; procura não inferir correlações brutas entre pontos de dados, mas criar explicações”.

Diversidade progressiva

Com uma elegância única, Kardec organizou as 32 publicações da chamada Filosofia Espírita. Leu, analisou, comparou sistematicamente, refletiu, conversou com médiuns de todos os lugares e capacidades, unindo ideias em comum, descartando outras, absurdas. O objetivo do mestre de Lyon  foi aproveitar ao máximo a diversidade humana – essa desconhecida (!) – para alcançar conclusões filosóficas, científicas, humanas e sociais.

Kardec era um pensador. Suas conclusões vão muito além da rasteira ideia de que ele deveria possuir todas as informações em relação ao tema. Do contrário, eram sinapses originais que ele próprio efetuava a cada manifestação dos Espíritos. Sistematizou uma doutrina dotada de “uma dinâmica, aberta e progressiva, jamais […] encerrada em um molde sistemático e nem nas tendências exclusivas de dadas correntes de pensamento ou expoentes de determinada ideia ou doutrina”. Kardec, portanto, “jamais escreveu sob a influência de ideias preconcebidas ou qualquer espírito de sistema, preferindo afastar hipóteses a acatar qualquer delas”. Por consequência, o Professor “só adotava uma hipótese quando ela era capaz de resolver todas as dificuldades da questão, para, só assim, formular a lei que regia o fenômeno (3).” 

Como tudo isso pode caber dentro de uma sistema IA que utiliza textos e ideias pré-concebidas, garimpada por toda a internet, na maioria das vezes sem autorização, em prática de plágio (que é considerado crime intelectual) já no radar de governos e organizações?

Os novidadeiros do Espiritismo sugerem, precipitadamente, que a IA possa trazer ares de vanguarda para o próprio umbigo. Vaidosos, querem elogios por se mostrarem modernos, mas são incapazes de criar soluções sensatas para aquilo que mais enfrentamos dentro da doutrina, elevando a sua compreensão acima do igrejismo e do salvacionismo.  

O presente e o futuro (que nós estamos construindo)

Atualmente, com raras exceções, as casas espíritas têm abandonado o estudo aprofundando e isento, para abraçar formas carcomidas de compreensão do Espiritismo, recheadas de misticismo, catolicismo e achismo, três insumos que, unidos com o “extraordinário”, alimenta um horda de seguidores que se satisfazem sempre com respostas fáceis e “enlatadas”.

Não somos ludistas (4). Apreciamos (e nos valemos diariamente, no trabalho do ECK) a tecnologia, sabedores de tudo o que ela pode oferecer para levar um espírito aberto, esclarecedor e consolador para cada vez mais pessoas. Temos a consciência de que a IA pode ser usada em diversas frentes, tais como medicina, produção de remédio, prevenção de catástrofes e eventos climáticos, para falar um pouco sobre seu valor. Usar a IA sem critério dentro de ambientes espíritas, pode ter várias facetas: oportunismo, preguiça, ou mau caratismo.

Todas essas facetas, de ética inferior, foram combatidas a seu tempo por Kardec e, notadamente, no nosso cenário brasileiro, por Herculano Pires. Com eles seguimos, no mesmo viés de combate, resgatando o legítimo espírito do Espiritismo.

Herculano Pires: atenção com os novidadeiros

SLOP

Critério. Talvez seja esse o termo que devemos utilizar quando se fala de IA em qualquer ambiência que envolva saberes. São muitos os motivos que levam diversos países a estar “de olho” na regulação dessa ferramenta que ameaça deteriorar ainda mais o tecido humanista que permeia as relações.

Curioso, também, quando se fala em IA no Espiritismo, o surgimento de um novo termo, nesses tempos estranhos: SLOP (5), a versão em inglês do termo desleixo. Na essência, é um conteúdo gerado por IA que é ruim, indesejado, apressado e não checado. Está sendo comparado com o nosso conhecido spam, mas é pior, muito pior, porque passa despercebido. Sabe aquele resultado do buscador que você sempre confiou? Tornou-se uma fria. Ou aquele livro gratuito que você jurava que trazia conhecimento relevante, mas estava tomado por erros. Ou, então, postagens imprevisíveis que ocupam e preenchem nossas redes sociais, de gosto duvidoso e indesejadas, seja em imagens quanto texto.

De forma sintomática, tem-se um livro repleto de imagens geradas por Inteligência artificial, que é lançado com muito estardalhaço no movimento espírita. Na “obra” – aqui as aspas são necessárias – diversas criações fictícias que apresentam imagens de supostas idades espirituais, criadas por descrições de médiuns, na melhor receita “impressionar para reinar”. Mais grave, em um tema que ainda é pouco compreendido por espíritas perversos ou ingênuos. 

Ficar atento aos desdobramentos da utilização da IA será um tema premente no grupo “Espiritismo com Kardec – ECK”. Parafraseando Erasto, continuamos a rejeitar tantos aspectos quanto forem necessários: ferramentas, posturas, posicionamentos, indagações e em um última análise, verdades, do que admitir uma única que seja mentira, enganação, invenção, sofisma, ilusionismo, ou mero blá blá blá.

Contamos com você e seu bom senso e lógica racional!

Notas:

(1) LEMOS, R. A internet morreu e esquecemos de enterrar? Folha de S. Paulo. Edição de 21. Abr. 2024.

(2) CHOMSKY, N.; ROBERTS, I.; WATUMULL, J. A falsa promessa do ChatGPT. Folha de S. Paulo. Edição de 10. Mar. 2023.

(3) HENRIQUE, M. Sobre o espírito de sistema. Nova Era. Publicado em 29. Set. 2022.

(4) WIKIPEDIA. Ludismo. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ludismo>. Acesso em 30. Jul. 2024.

(5) HOFFMAN, B. Depois do spam, conheça o slot, conteúdo de má qualidade gerado por IA. Folha de S. Paulo. Edição de 18. Jun. 2024.

 

Capa: Imagem de Moshe Harosh por Pixabay

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

5 thoughts on “Imaterialidade e Artificialidade: Porque a Inteligência Artificial deve ser adequadamente utilizada a serviço do Espiritismo

  1. Eis a questão: verdadeiro ou falso.
    A utilização da IA continuará a levar uma falsa hipótese chegar a uma falsa tese, como já ê comum com a inteligência humana, o engodo permanece, assim, o conhecimento e o discernimento continuam imprescindível, o senso critico, a razão, merecem mais do que nunca estar aguçada.

  2. A I.A. é um resumo da sabedoria e conhecimento dos humanos, nunca será criativa nem inovadora. Já é uma ajuda preciosa para disseminar conhecimentos e instruções mas nunca será criadora de Pensamento filosófico.

  3. Parece redundante afirmar que a Inteligência Artificial é fruto da inteligência humana, mas qual é o óbvio na inteligência que a controla? Como diz a velha máxima, o rio sempre retorna ao seu curso natural. Ao longo do progresso científico e tecnológico da humanidade, criador e criatura se fundem em uma simbiose perfeita. Parece que a essência do Homo sapiens sapiens está se perdendo ao longo do tempo. Então, o que seremos amanhã? Vale então lembrar: O Espírito é o princípio inteligente do Universo. A inteligência é um atributo essencial do Espírito. (LE 23 e 24).
    Diante o progresso aqueles que não o compreenderem será sempre massa de manobra seja em que campo social, político, científico ou religioso a que faça parte. Eis novamente a questão: Que tipo de espírita a IAE – Inteligência Artificial Espírita está criando? Infelizmente vemos os novidadeiros em conluio com os desatentos em desacordo com Allan Kardec como sempre estiveram no período histórico das pranchetas:
    Cito: […] para se distinguir o que há de verdadeiro ou de falso nas comunicações que se recebem, para repelir a intromissão dos Espíritos enganadores ou maus, como também para não deixar de lado a própria razão, único critério seguro do homem para a apreciação de tudo aquilo que não é de sua exclusiva competência, é preciso uma crítica severa e minuciosa. (Introdução do Livro dos Espíritos)
    Excelente artigo meus amigos! Extremamente reflexivo a ponto de me estender nos comentários, perdão.

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