Deidades, um ensaio, por Nelson Santos

Tempo de leitura: 8 minutos

Nelson Santos

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Chegaremos um dia ao desejado progresso, para a compreensão mais acurada desse universo que desafia a imaginação humana, e, também, de Deus.

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Nas primitivas civilizações, havia o sentimento de temor e incompreensão diante dos fenômenos da natureza, entendidos como forças sobrenaturais. Aqueles indivíduos, na infância intelectual e moral, sempre procuravam respostas para as manifestações sob a luz dos céus. Saindo da fase inicial tribal, na formação das primeiras e ainda rudimentares sociedades, num contexto ainda embrionário, passam a entender os fenômenos naturais associando-os às intervenções de entidades poderosas, pari passu, dando início a diversos panteões de deidades.

Deidades eram, assim, as primeiras conformações de seres divinos ou sagrados, ou a fonte de tudo o que seria divino.

A ideia politeísta de deidades antropomórficas (e demasiadamente humanas), que interagiam entre si, em mitologias de enredo, passa a regular a vida e a moral da sociedade, expandindo-se nas sociedades emergentes (inclusive as que possuíam uma complexidade de organização social mais acurada). Assim, surgem as primeiras  indagações sobre a relação do mito das deidades, enquadrando os enigmas do universo, a causa e o sentido da realidade e o ser no mundo, que desenvolve-se com mais primor na Grécia, por meio de destacados pensadores e filósofos.

A Filosofia, no entanto, avança para a procura e o entendimento (cada vez mais) racional na compreensão e elucidação do assombro do homem em relação às situações e coisas do mundo. Busca-se, com ela, explicações de caráter natural para o que ocorria ao derredor das pessoas, como, também, para além dele, o suprassensível, algo além do visível e, quando não, do pensável. Nisto estava o mistério da criação e, por conseguinte, uma Força Superior, um Deus, provocando uma reflexão inerente e contextualizada dos mistérios – que Aristóteles denominou de Metafísica.

As primeiras teorias filosóficas remontam aos pensadores pré-socráticos cujo contexto principal era a tentativa de descoberta do que compõe e origina o Universo, tal qual a mecanicidade ou inteligência que o rege, com base nos seguintes pressupostos:

1) Anaximandro conceitua o que seria um elemento infinito, indefinível e imortal, que ele chamou de Ápeiron;

2) Anaxímenes concorda com Anaximandro quanto à infinitude do elemento, porém discorda quanto a indefinição do mesmo;

3) Pitágoras concebe uma relação intrínseca entre música, matemática, organização cosmológica e composição das almas das pessoas, acreditando na Palingenesia;

4) Heráclito despreza a noção de essência e defende que existe uma mutabilidade, surgida de vários processos contínuos, que resultaria no que é o mundo;

5) Parmênides é o primeiro a quebrar o paradigma do pensamento politeísta, defendendo que o princípio de tudo estaria na unidade lógica promovida pela existência de um ser, único e soberano, a que chamou Deus;

6) Demócrito, por sua vez, adotando pressupostos materialistas, defendia uma explicação totalmente material e mecanicista do mundo;

7) Anaxágoras propôs que o universo teria sido gerado a partir de um momento preciso, tendo como elemento agregador o que chamou de Noüs –  razão universal que ordenou o mundo a partir do caos original, iniciando o desenvolvimento do cosmo – e as sementes que o formavam (e seus objetos) seriam infinitas;

8) Sócrates acreditava na imortalidade da alma e que havia recebido uma missão: defender o “Conhece-te a ti mesmo”, inscrito no pórtico de entrada do templo do deus Apolo, na cidade de Delfos. Deste modo, ele submeteu o ser humano e todas as suas questões a uma constante análise, ensinando que a essência humana seria a alma e esta representaria a razão e a consciência do ser em busca da sabedoria;

9) Platão é quem estabelece o marco da transição do mundo sensível para o metafísico. Embora acreditando em deuses e reforçar os aspectos das várias deidades gregas, em caráter politeísta e mítico, procurou contextualizar o primeiro movimento direcionado à criação do universo. Assim, introduziu a figura de um demiurgo, artífice do mundo, com o papel de ordenação cósmica, propondo que  a vida cósmica seria o resultado da intervenção inteligente deste sobre um movimento caótico original;

10) Aristóteles, seguindo o mesmo princípio, em sua peculiar metafísica, formula as questões acerca de Deus e do movimento cósmico observando, no ciclo da natureza, os princípios primeiros e as causas, a substância que está presente em todos os entes, como a unidade indivisível de matéria e forma, do particular e universal, de potência e ato;

11) Plotino defende que Deus, transcendendo o ser, a substância e a morte, vai além de todas as coisas: é infinito e imaterial. Mas é o Deus-Uno, que gera e conserva todas as coisas ilimitadamente, criando as coisas como se fossem emanações que dele sairiam, como a luz que sai de um astro luminoso e se espalha para tudo à sua volta. Questiona-se, com isso o porquê da existência de Deus e o porquê d’Ele ser da forma que é. A resposta plotina é que Deus se autoproduziu e, portanto, transcendeu a si próprio.

12) Agostinho de Hipona, tido como o mais famoso teólogo da patrística, tece seu conceito de Deus que comtempla a auto existência, a absoluta imutabilidade, a singeleza, sendo trino em uma única essência; é onipresente, onipotente, imaterial, eterno; não está dentro do tempo, mas é o criador do tempo. Constitui o contexto trinitário a onipresença de seu pensamento. Então, tudo o que se afirmar a respeito de Deus é proclamado igualmente com relação a cada uma das três pessoas, lembrando os antigos conceitos e mitos religiosos oriundos do mediterrâneo e do oriente.

Voltando um pouco à teoria aristotélica, a matéria seria o que resguarda em si a potência e esta seria o poder que a matéria tem de tornar-se algo, ou seja, assumir uma forma. É exatamente a forma (o que de fundamental possui a matéria), que irá defini-la ou delimitá-la. De outra sorte, a essência seria aquilo que é e não pode ser de outro modo. Temos, então, duas espécies de substâncias sensíveis: a primeira, sujeita à corrupção, ao devir e à geração; e a outra, incorruptível e eterna, que incluiria, por exemplo, os astros. Existe, para Aristóteles, ainda, a substância não sensível igualmente eterna e imóvel, a causa de todo o movimento e, portanto, um destacado objeto de estudo.

Para ele, o Primeiro Motor é responsável pelo princípio do movimento presente na causa eficiente ou final. Tudo o que ocorre, parte de algo e é mister que todo o movido se mova a partir de algo. Destarte, ele afirma que não há movimento sem causa (ou o que ocorre, deriva de algo); que esse motor é imóvel, pois move todas as coisas, mas não move a si mesmo, como não está submetido às leis do movimento, ele é eterno, imutável e imaterial.

Mais modernamente, o filósofo holandês Baruch Espinosa (Espinoza ou Spinoza) parte do imanentismo e do princípio da unidade substancial para chegar a uma concepção própria de Deus. Este seria, então, também imanente e detentor do título de única substância existente, a partir da qual todo o mundo existe e por ela é determinado a existir.

Hegel, filósofo alemão, apresenta Deus como a determinação fundamental no conceito e também toda a representação do mesmo. Ele teoriza que as provas da existência de Deus pertencem à Lógica, enquanto o seu conteúdo pertence à Filosofia da Religião, o que revela, assim, a relação da Filosofia com a Teologia. Para Hegel, Deus não é substância, pois isto implicaria em incoerência.

Descartes, filósofo e matemático francês, pavimenta o caminho para a prova racional acerca da existência de Deus, pois essa ideia não poderia ter surgido do nada, pois este nada cria e nenhum ser, muito menos um ser perfeito, pode ter surgido do nada. Logo, um ser imperfeito não poderia ser a causa da criação de um ser perfeito, pois o menos não pode ser a causa do mais. Ao conceber o conceito de Deus, Descartes usa o crivo da razão, que é para ele uma deusa determinante.

Kant, filósofo iluminista alemão, refuta as tentativas anteriores apresentadas para definir a existência de Deus, pois, por meio da razão, há uma impossibilidade em provar racionalmente a sua existência. Isto porque o conhecimento humano acha-se limitado ao âmbito fenomênico (o eixo espaço-temporal). Com isso, ele postula a imortalidade da alma e a existência de Deus como condições inafastáveis de possibilidade do sumo bem.

Nietzsche, filósofo prussiano, rejeita Deus incisivamente, negando todo o conceito e o valor ligado a Ele. O avanço da ciência e a crença na razão passam a progressivamente substituir o papel original de Deus, decretando assim a sua morte conceitual.

Para Rivail-Kardec, filósofo espírita francês, em associação com as Inteligências Invisíveis, Deus é a inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas, que não tem começo e nem fim. O (des)conhecimento de Deus é, assim, infinito, no que figura como concomitante com o conceito aristotélico. Deste modo, os Espíritos complementam que o Universo existe e ele tem uma motivação – todo efeito tem uma causa – no que duvidar disso seria duvidar do próprio Deus. Informam, tais Entidades não ser permitido/possível ao homem sondar a origem ou a natureza intima de Deus, por faltar-nos capacidade e conhecimento para tanto. De 1857 para cá, continuamos incompetentes para tal, e com eles concordamos, em face do atual estágio progressivo da humanidade.

Com todo o cabedal exposto pelos vários filósofos e o objeto filosófico espírita debruçado sobre a Inteligência Superior que organiza e cria os sistemas estrelares e humanos, não se faz oportuno e necessário questionar alguns pontos em relação a tais conceitos e contextualizar essa Inteligência, no curso do século XXI?

Entendemos que sim, porque, apesar de toda a lucidez de Rivail – expressa, particularmente, no Capítulo I, de “O livro dos Espíritos” (OLE), o conceito sofreu interpolações a partir das sucessivas mensagens obtidas pela mediunidade, expressas, principalmente, em três obras kardecianas sucessivas (“O evangelho segundo o Espiritismo”, “O Céu e o Inferno” e “A Gênese”, permanecendo com um marcante viés antropomórfico e, ainda, com uma visão masculinizada de gênero (masculino). Ora se o próprio Espírito é assexuado (vide o item 200, de OLE), como não pode o ser a Inteligência Suprema?

Se tal Inteligência, superior, é um mero e imperfeito conceito em face das nossas limitações de inteligência e entendimento, um símbolo – e não um Ser ou Entidade, Substância ou Forma –, seu gênero não é decisivo para constar nem como um homem nem afirmá-lo como mulher. Então, melhor seria não representá-Lo  como um ser masculino. Afinal, frise-se, perante a humanidade sempre ocorreu o domínio do patriarcado, que relegou a figura feminina a uma condição de subserviência e inferioridade. Privadas, no curso dos séculos, pelas leis e pelas religiões de qualquer poder espiritual e pessoal, dependia a mulher da autoridade religiosa do homem para poder ter sua ligação com a Inteligência Suprema e, ainda assim, como uma concessão, nunca um direito.

Convenhamos, então, que também nesse quesito, a laicidade é muito mais eficiente, porque se distancia das amarras dogmáticas e litúrgicas dependentes de uma sexualidade tóxica religiosa.

Alguns poderiam até tentar afirmar que não existe a possibilidade de tal tratativa, principalmente em religiões e conceitos herdados do ramo judaico, o que não corresponde inteiramente à verdade. Originalmente, o judaísmo possuía dois deuses, El e Asherah, com seus filhos Baal, adotivo, e Jeová. Com o passar do tempo, os deuses – pai e mãe –, foram suprimidos, passando Jeová a assumir também a identidade de Baal, tornando-se, então, um Deus único.

O Espiritismo nos ensina que há Espíritos que nos auxiliam em nossa jornada, sem a necessidade nem realidade de estar, aí, Deus. Tal qual, a Inteligência Suprema estaria neles, não como uma construção una e sim múltipla, sem qualquer inferência ao panteísmo, claro, porque, para a Filosofia Espírita, os Espíritos jamais se reuniriam em Deus nem estaria, Ele, presente em nosso universo interior, pré e pós-existente (considerando a vida físico-material).

O princípio da criação é, portanto, consensual entre a filosofia espírita, as filosofias humanas e o exposto pela teologia, mas a forma possui distinções marcantes. Como é dever do Espiritismo acompanhar a ciência, por orientação fundamental de Kardec, nos encontramos concordes com as teses científicas do “Big Bang”, um evento singular criativo ou gerador. Mas, se há a Inteligência Suprema, não se pode afirmar que não Ela existia antes do tal evento singular, ou, ainda, nos quesitos de planos paralelos ou indiferentes às teorias dos vários universos existentes, antes do caos ou do nada.

Devemos ponderar que, inclusive, o nada é apenas uma abstração humana, o nada físico não é o nada real, pois diferentes cientistas, físicos, veem diferentes coisas nesse nada. No chamado vácuo há partículas, há gravidade gerada pela deformação do espaço-tempo, flutuações no vácuo quântico e, ainda, a chamada matéria escura da qual pouco sabemos.

Também, pela teoria da relatividade, o tempo só existe depois da singularidade: não as leis da física podem não ser as mesmas que observamos em nosso universo atual, podendo até haver um espaço-tempo similar ao nosso.

Assim sendo, existe uma Inteligência Suprema ou várias Inteligências Supremas? Cada uma delas pode estar em um plano paralelo, como teorizado no plano das supercordas, com cada um vibrando em três dimensões. Neste contexto, abrem-se os portais  para dimensões paralelas que vibram em conjunto na chamada quarta dimensão e, eventualmente, sem mensurar o tempo, as mesmas se chocam criando uma nova singularidade.

Kardec e a Espiritualidade nos apontam que chegaremos um dia ao desejado progresso, para a compreensão mais acurada desse universo que desafia a imaginação humana, e, também, de Deus. Talvez possamos estar mais próximos, assim da Inteligência Suprema. Quem sabe, lá, estaremos acessando todas as memórias adquiridas nas várias reencarnações, numa grande biblioteca de aprendizados e vivencias ímpares a ilustrar outras tantas histórias pelo universo que se aponta como múltiplo e infinito.

Referências:

COLEÇÃO OS PENSADORES. 1973 e 1974. São Paulo: Abril Cultural.

ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012.

CHAUÍ, M. Introdução à História da Filosofia: Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1998.

GARCIA YEBRA, V. Metafísica de Aristóteles. Edição Trilíngue. Madri: Editorial Gredos, 1998.

KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Trad. José Herculano Pires. LAKE. São Paulo, 1985.

KARDEC. A. A Gênese: os Milagres a as Predições Segundo o Espiritismo. Trad. Carlos de Brito Imbassahy. FEAL. São Paulo, 2018.

PIRES, J. H. Introdução à Filosofia Espírita. São Paulo: FEESP, 1993.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Deidades, um ensaio, por Nelson Santos

  1. Muito interessante todo o texto, destaco em especial,.”.abrem-se os portais para várias dimensões paralelas que vibram em conjunto na chamada quarta dimensão,e, eventualmente chocam-se, criando uma nova singularidade..” esta ideia está muito à frente do que até agora pensava da ideia da Criação e de Criador. Será que estamos em presença de uma nova compreensão que ,embora não negando a anterior é uma nova hipótese da existência de uma Inteligência Suprema,baseada na ciência??? Um texto excelente.

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