De que perfeição me falas?, por Milton Medran Moreira

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Milton Medran Moreira

Transformação implica necessariamente em esforço próprio que, por sua vez, está ligado ao progressivo conhecimento de si próprio.

A enunciação em dez diferentes leis daquilo que os Espíritos e Allan Kardec convencionaram denominar “Leis Divinas ou Naturais” é seguida de um capítulo intitulado “Da Perfeição Moral”, que conclui a abordagem ético-moral de “O livro dos Espíritos”.

Pode parecer estranho que um livro escrito por seres humanos (encarnados e desencarnados, mas todos humanos) para seres humanos, acene com a possibilidade e, mais do que isso, com o explícito convite à perfeição moral. A imperfeição, justamente, é um dos traços marcantes do ser humano, assim como de seus núcleos sociais, desde a família às mais altas esferas de suas instituições políticas, sociais e religiosas. Não há, sabemos, pessoas ou instituições perfeitas. Aquelas que, à distância, muitas vezes, nos parecem sê-lo, quando vistas de perto logo escancaram suas fraquezas, frequentemente em intensidade que nunca havíamos sequer suposto.

Poder-se-á dizer que, à luz da transcendência do ser e do princípio da evolução, é possível cogitar-se da hipótese da perfeição. Mas, na visão judaico-cristã, essa condição de perfeição parece encontrar óbices intransponíveis à alma humana. Expulsos do Paraíso pelo cometimento do pecado que contaminaria toda sua descendência, homem e mulher trazem na alma, desde seu nascimento, a mancha original da culpa que os torna carentes da virtude, esta resgatável única e exclusivamente pela “graça”, condição nem por todos alcançável, vez que a muitos só a danação eterna estaria reservada. Mesmo salva, pela graça, a alma atingiria a bem-aventurança eterna, mas jamais algo que se possa denominar perfeição.

Não há, pois, num olhar teológico judaico-cristão, que se falar em perfeição, mas apenas em salvação para uns e condenação para outros, como prêmio ou como castigo que alcançam seres, todos eles, marcados pela imperfeição que lhes foi peremptoriamente imposta pelo pecado.

Se esta foi, no entanto, e viria a ser, ao curso de sua formação, uma das bases fundamentais da teologia cristã, não o foi, certamente, a do vigoroso pensamento de Jesus de Nazaré, que cristão não era e que judeu fora apenas circunstancialmente, por força de seu nascimento. Basta se atentar para o convite que, segundo Mateus, deixou ele consignado em seu legado ético-moral: “Sede perfeitos, como perfeito é vosso pai celestial”.

Reside precisamente aí, a propósito, uma das mais candentes expressões do reencarnacionismo adotado pelo Homem de Nazaré, a estruturar toda sua doutrina. Vivendo em tempos e em meios de tanta imperfeição humana, da soberba ao egoísmo, do apego às coisas materiais à tirania, do espírito vingativo à hipocrisia, não seria cabível seu apelo à perfeição, como regra de vida àqueles a quem falava ou a quem viria a falar, no legado que deixaria à humanidade.

Diante das visíveis imperfeições humanas, somente uma doutrina que concebe o ser humano como “criado simples e ignorante” e, assim, perfectível e não perfeito, pode compreender a viabilidade e o alcance do convite de Jesus. A perfeição se torna um objetivo, um “vir-a-ser”, intrínseco ao processo contínuo de crescimento da alma humana, atingível pelas experiências reencarnatórias, e somente por elas, eis que impossível seu atingimento numa existência única.

É verdade, sim, que todos almejamos a perfeição e todos sonhamos com um mundo perfeito, sediando a morada de indivíduos perfeitos. Platão, em “A República”, Thomas Morus, em “A Utopia” e muitos outros autores produziram obras descrevendo mundos assim

Por isso mesmo, pode-se inserir a perfeição no campo das utopias, ou seja, no domínio daquilo sentido como bom, como desejável e até necessário, mas objetivamente não concretizável, pelo menos no contexto em que nos encontramos. Entretanto, considerando-se que muitas das realidades de hoje são, justamente, as utopias de ontem, a perfeição humana passa a ser o objetivo essencial da alma humana, a vocação ínsita no ser “criado simples e ignorante”, mas partícipe de uma ordem divina e natural que tende para a plenitude.

A plenitude, nesse caso, seria a comunhão plena com a ordem divina, quando a alma, sem perder sua individualidade, já não mais necessitar reencarnar. Como aludido em “O evangelho segundo o Espiritismo”, em seu capítulo XVII, onde Kardec e os Espíritos comentam a assertiva de Jesus, a perfeição por ele recomendada é apenas a “perfeição relativa”, “aquela à qual a Humanidade é acessível e que mais a aproxima da Divindade”, pois a “perfeição absoluta” é atributo exclusivo de Deus.

É, pois, apenas nesse contexto que se poderá pensar em perfeição humana. E é justamente o contexto posto no capítulo conclusivo da abordagem feita por Kardec e seus interlocutores espirituais, na terceira parte de “O livro dos Espíritos”.

Outro ponto a considerar diz com o pressuposto filosófico da autonomia moral do ser humano na construção desse estado de perfeição relativa. Toda a abordagem espírita relativa à chamada “perfeição moral” funda-se na capacidade de o ser humano gerir, ele próprio, seu crescimento, independentemente de leis externas, de revelações sobrenaturais, de normatizações religiosas ou sociais a que deva, cogentemente, se submeter, mesmo sem as entender. A lei natural, gravada em sua consciência, segundo a questão 621 de “O livro dos Espíritos”, e assimilada pela razão humana, deve ser seu guia preferencial, mesmo não dispensando a ajuda que outras fontes externas possam lhe prestar nesse sentido. Ou seja: a chamada “perfeição moral”, diferentemente da “graça” concedida por Deus à alma arrependida ou submetida cegamente à fé, é uma construção da qual é artífice o próprio ser humano, na medida em que, pelo esforço próprio, progride no campo intelectual e moral.

A abordagem intensifica notadamente o esforço em debelar o egoísmo como o caminho para a conquista da perfeição moral. Centra no egoísmo a verdadeira “chaga da sociedade”, incompatível “com a justiça, o amor e a caridade” (questão 913).

Qual, então, o caminho para se chegar a essa perfeição ou, pelo menos, andar na rota que a ela conduz?

Para um dos mais importantes interlocutores espirituais de Allan Kardec, na elaboração de “O livro dos Espíritos”, é o conhecimento de si próprio, apregoado cerca de cinco séculos antes de Cristo, por Sócrates, e confirmado, na questão 919 da citada obra, por Santo Agostinho.

O teólogo da Antiguidade cristã, numa das mais belas lições acolhidas por Kardec para ilustrar o processo de autoconhecimento, compatível com qualquer tempo e estágio da humanidade, perguntado acerca de como procedermos para nos autoconhecer, trouxe este depoimento experiencial de sua vida, quando aqui encarnado:
“Fazei o que eu fazia quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foi assim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mim precisava de reforma. Aquele que, todas as noites, evocasse todas as ações que praticou durante o dia e inquirisse de si mesmo o bem ou o mal que fez, rogando a Deus e ao seu anjo guardião que o esclarecessem, grande força adquiriria para se aperfeiçoar, porque, crede-me, Deus o assistiria. Dirigi, pois, a vós mesmos perguntas, interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que objetivo procedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestes alguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis, sobre se obrastes alguma ação que não ousaríeis confessar. Perguntai ainda mais: “Se aprouvesse a Deus chamar-me neste momento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar de novo no mundo dos Espíritos, onde nada pode ser ocultado?” Examinai o que pudestes ter obrado contra Deus, depois contra o vosso próximo e, finalmente, contra vós mesmos. As respostas vos darão, ou o descanso para a vossa consciência, ou a indicação de um mal que precise ser curado.
“Formulai, pois, de vós para convosco, questões nítidas e precisas e não temais multiplicá-las. Justo é que se gastem alguns minutos para conquistar uma felicidade eterna. Não trabalhais todos os dias com o fito de juntar haveres que vos garantam repouso na velhice? Não constitui esse repouso o objeto de todos os vossos desejos, o fim que vos faz suportar fadigas e privações temporárias? Ora, que é esse descanso de alguns dias, turvado sempre pelas enfermidades do corpo, em comparação com o que espera o homem de bem? Não valerá este outro a pena de alguns esforços? Sei haver muitos que dizem ser positivo o presente e incerto o futuro. Ora, esta exatamente a ideia que estamos encarregados de eliminar do vosso íntimo, visto desejarmos fazer que compreendais esse futuro, de modo a não restar nenhuma dúvida em vossa alma. Por isso foi que primeiro chamamos a vossa atenção por meio de fenômenos capazes de ferir-vos os sentidos e que agora vos damos instruções, que cada um de vós se acha encarregado de espalhar. Com este objetivo é que ditamos O Livro dos Espíritos.”

A perfeição, pois, acerca da qual fala o espiritismo é aquela compatível com o estágio em que nos encontramos, respeitando a capacidade que tenhamos de conhecer nossas próprias imperfeições, avaliá-las no contexto encarnatório em que estamos inseridos e propondo-nos metas para debelá-las.

O Espiritismo, nesse sentido, longe de pretender reunir seres encarnados moralmente perfeitos, é uma filosofia capaz de nos fazer entender porque somos imperfeitos e porque, mesmo imperfeitos ou, ainda, dominados pelo mal, tendemos à perfeição. Faz-nos, desta forma, tolerantes com as faltas dos outros e com as nossas próprias faltas.

Vale lembrar sempre, nesse contexto, a forma como Allan Kardec, em “O evangelho segundo o Espiritismo”, trouxe de como reconhecer o “verdadeiro espírita”, ou seja: “por sua transformação moral e pelos esforços que faz para debelar suas más inclinações”.

Transformação implica necessariamente em esforço próprio que, por sua vez, está ligado ao progressivo conhecimento de si próprio.

Nisso reside a perfectibilidade. Esta, na verdade, está bem distante da perfeição que mora longe e da qual sequer podemos ter uma ideia aproximada.

Imagem de 0fjd125gk87 por Pixabay

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